30 de jul. de 2024

mormaço

 




no meio da tarde o mormaço

a brisa tem a respiração de um gato

não sei se o que agora abraço

seja a lembrança de teu retrato

ou a sombra amarga de um beijo

que num dia assim de muita preguiça

despertou em mim o teu desejo

o fogo que em meu peito se atiça



na minha rede o balanço suave

esconde em teias meu desencanto

e ante que venha a chuva e lave

do meu peito as penas do meu canto

despejo em lágrimas minha saudade

esqueço todos os momentos vividos

que nem sei se foram de felicidade

e deixo que o mormaço da tarde

embale meus sonhos mais queridos



sou eu a brisa que sopra como um gato

és para mim muito menos que um retrato





27.2.2023

(Ilustração: Paul Bond - Pious Birds Of Good Omen)





27 de jul. de 2024

Morituri

 




Bate o vento no arvoredo,

Para esconder de mim este segredo:

Por que morreram os que tinham de morrer?



Rola o tempo

Nas asas do vento,

Passam vultos pelos quintais,

E cada vez mais

Eu escondo em minha mente

A resposta que me faz temente:

Por que morreram os que tinham de morrer?



Não sei se choro

Ou apenas deploro

O tempo que reitero

Neste poema insincero

Que não satisfaz minha mente faminta

E faz que eu pressinta

Que o arvoredo que se agita ao vento

É apenas meu grito lançado a esmo,

O grito de angústia em que tento

Responder para mim mesmo:

Por que morreram os que tinham de morrer?



Sei que um dia,

Numa noite ou tarde fria,



(E não posso dizer talvez)

Chegará a minha vez,

[Diz o vento no arvoredo,

O vento que me traz medo],

E eu, que não sei por que vivo,

Direi do alto de minha morte

Que o lamento que cultivo

Não é por azar nem por sorte,

Mas por tudo quanto a vida

Já me fez sofrer.

Como não haverá nada mais a fazer,

Terei a maldita resposta, afinal,

Àquela pergunta fatal:

Morremos todos, porque temos de morrer.





27.6.2024

(Ilustração: Caravaggio)









24 de jul. de 2024

miasmas de um tempo morto

 




rasteja pelos esgotos da cidade o meu pensamento

lateja o meu entendimento como perdigotos da meia idade

[desditosa a luz que me cega ao fim do túnel

quando não há túneis em meu corpo por onde corram

os miasmas de um tempo morto]

desespera o verso torto em busca de alexandrinos

mordem com seus podres caninos as jugulares

dos deuses dos altares dos bandeirantes ancestrais

para que jamais do esgoto surjam de novo

como zumbis a assustar o povo



latejam perdigotos nos esgotos da cidade

apodrecem as igrejas e as catedrais

comem-se vermes nas pousadas sertanejas

busca-se a inútil verdade pelos caminhos inteiriços

balança o enforcado como bandeira inconsútil

ao vento do tempo pelos caniços a chamar o povo à prece

e nada do que penso realmente padece

do sonho ou do pesadelo que na esperança torpe

entope de beijos escrotos os esgotos dessa metrópole



[todos os desejos que nascem na cidade

florescem no tempo morto ao sabor da dor e da morte]





27.10.2023

(Ilustração: Tarsila do Amaral - Composição (figura só) - 1930)

21 de jul. de 2024

meus oito anos

 



aos oito anos acabara de aprender a ler

e lia

lia até me arderem os olhos – não! isso é Alberto Caieiro

recomecemos:

aos oito anos – quando mal acabara de aprender a ler -

lia à luz da lamparina

tatibitateando

um livro que não acabava mais – a vida de dom Bosco

aquele santo estranho da igreja católica

[era católico nessa época – como católica era a minha mãe)

aquele santo estranho que previu uma cidade

num paralelo qualquer do hemisfério sul

e hoje essa cidade se chama Brasília

[e eu não sei se é fato ou lenda tudo isso]

então aos oito anos eu lia e prometia que seria

que seria o quê – um gênio? – não fui nunca um gênio

das esferas todas da vida

não passei daquela que se chama mediocridade

apesar de rascunhar uns poemas por aí –

mas escrever pobre poesia não torna ninguém um gênio

– é preciso ter heterônimos talvez

– ter as vozes d’África talvez

– exaltar os guerreiros da tribo tupi

– sofrer abusos e morrer cedo - sei lá enfim

enquanto isso aos oito anos Mozart compunha uma sinfonia

porque Mozart conhecia Bach e conhecia os filhos de Bach

Mozart aos oito anos compôs sua primeira sinfonia

[e eu não se é lenda ou fato tudo isso]

sei apenas que eu - aos oito anos - li meu primeiro livro

um livro que me deu minha mãe talvez

um livro que contava a vida de um santo católico

– um estranho santo católico -

– apenas isso: li um livro – aos oito anos –

sobre a vida de um santo

e depois

fui jogar bolinha de gude com meus amigos

 

19.2.2023

18.7.2024

 

 

(Ilustração:  Jan Miense Molenaer (Dutch, b. ca. 1610–1668) - The mable game)


Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, num dos seguintes endereços:

No podcast:

https://podcasters.spotify.com/pod/show/isaias-edson-sidney7/episodes/MEUS-OITO-ANOS--de-Isaas-Edson-Sidney-e2m8rla?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTAAAR1PBMiiz4GEkxpz4nnxe3p1J6QxgyzXyrC24S9e3BlstP-_sosZpdgy0iY_aem_rT5Ne5wbUfq1epNbIFMKMg

No youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=Qfw_ip2PaHg



18 de jul. de 2024

males de amor






males de amor

não importa de onde vêm

pungem o peito amante

e transformam o mal em bem

mesmo que a dor constante

não tenha refrigério



são os males de amor

[que - como o desejo deletério -

- vá o sofredor

para onde for - ]

provocam o desfazimento

de esperanças sem fim

quando todo o sofrimento

parece estrelas de cem mil pontas

num rosário ateu de cem mil contas



19.2.2024

(Ilustração: escultura de Bernini: êxtase de Santa Teresa)

15 de jul. de 2024

mais uma vez outono

 





mais uma vez outono e mais uma vez é noite

quantas vezes já escrevi que é noite de outono

e que mais uma vez estou só



quando me visita uma longa sombra

não me assusta o seu negror

nem me assusta mais a solidão



divaga minha mente pela noite

[é outono – não que não me esqueça]

em busca de memórias perdidas

numa outra noite há tanto tempo distante

que cobre o pó de uma estranha lembrança

a saudade de uma saudade que já não sinto

sinto apenas nostalgia de uns olhos negros

que um dia polvilharam de esperança

uma estrada que não era para mim



no tempo de outrora

[e era outono]

havia o espanto

dos pés nus

nas pedras do caminho

a caminhada iniciada

tinha olhos à frente

não tinha nenhum objetivo



sábio não sou agora

como nunca fui no passado

corro no entanto

pela estrada deserta

sabendo que tenho de mim

uma pedra negra

bem no meio do caminho

[roubei a pedra do poeta

não roubei sua poesia]

para mais um tropeço

que será talvez o último



e nesta noite de outono repetida

a solidão que me espera

será de invernos cada mais invernosos





28.4.2024

(Ilustração: Thomas Moran, 1837-1926, Autumn)

12 de jul. de 2024

lonjuras do pensamento

 







nas lonjuras do pensamento

onde mora minha imaginação

encontro em forma fluida todos os meus poemas

de lá os trago com a força de minhas palavras

arrasto-os pelos caminhos

por entre as pedras e os espinhos



quando aqui chegam estão muitas e muitas vezes

mais maltratados que os antigos romeiros

que atravessavam o tempo e as montanhas

para cumprir uma promessa que nunca fora apalavrada



são poemas perdidos nos caminhos de outrora

são poemas perdidos nos caminhos de agora

vindos das lonjuras do pensamento

chegam a mim rotos e cansados

nem sempre a mensagem devidamente mastigada



sob as rotas vestes com que se me apresentam

trazem feridas não cicatrizadas

e cicatrizes bem-marcadas

enredados por versos e estrofes mal alinhavados

são poemas de angústia pelo tempo macerados



amordaçados e feridos pelas correntes das galés

atravessam oceanos de áfricas para as praias e florestas

de continentes estranhos e ameaçadores

- e muitos se afogam na travessia –



são poemas que gritam por respeito e liberdade

na flecha e no tacape do indígena expulso de suas terras

são poemas que gritam por respeito e liberdade

no braço forte e no ventre fértil do povo preto

e escrevem esse grito primal

no palimpsesto de peles negras e peles crestadas de sol



rasgam os caminhos não percorridos

estranham as crenças não confessadas

em quimbundos e nheengatus entrelaçados



combatem pelas planuras de tabas e quilombos

o combate inútil de antepassados triturados em moinhos de açúcar

trazem o quiproquó de tantas quizombas – esses poemas

trazem as batidas dos pés nus na poeira das aldeias

trazem o estertor da floresta na pisada do europeu



- onde há branco há dor – grita o espanto da pele parda

- onde pisa o branco não nasce capim – grita o cafuzo no pouso da arara

- não entra o branco onde canta o maracatu– grita o mameluco no terreiro



plumas de pássaros feridos

peles de onças pintadas

sangue na picada do urutau

são originárias as marcas do passo marcado do poema cantado

são extraordinários os cantos dos piagas e as danças dos orixás



e meus poemas não lutam contra a correnteza

os rios que os trazem não poluem minhas veias

os ventos que os sopram não envenenam meus pulmões

viajam das planuras do pensamento para as emoções do meu desejo

entrelaçam-se aos meus desencantos todos e a todos dá guarida

mascaram sua fome de estrada com as angústias de minhas impossibilidades



plumas de pássaros pintados

peles de onças feridas

sangue do urutau na ferida

não edulcoram os percalços

não lamentam as chibatadas

trazem – esses poemas sem eira nem beira – dos sertões e das florestas

das campinas e das grutas mais fundas

crestados pelas lonjuras do pensamento

o sentimento de um mundo que se faz e refaz apesar de tudo

e sopram na minha pele – enfim – o arrepio da vida

só o arrepio da vida



16.4.2024

(Ilustração: Odilon Redon: illustration pour les Fleurs du ma, de Baudelaire)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:

9 de jul. de 2024

limonada

 





todos os dias a vida me dá um limão

- faço a limonada e bebo-a ao almoço



as limonadas que faço me ajudam

a digerir melhor os alimentos

a manter uma boa reserva de vitamina c

a hidratar-me para os dias de calor

a não perder líquido nos dias de frio

por isso sou grato aos limões que a vida me dá

só isso – isso apenas – nada mais





8.10.2923

(Ilustração: Pierre Bonnard)


 

6 de jul. de 2024

limites

  




acordo

[noite ainda]

abro a janela

penso – vou ver

o dia nascer

e logo me dou conta

de quão limitadas

são as palavras

as ilusórias palavras

com que traduzimos

[ou tentamos traduzir]

a natureza



não

o dia não nasce

sabemo-lo todos



e mesmo que o saibamos

paira sobre nós

a doce estupidez

da metáfora

de que o dia nasce

- e isso nos conforta



24.2.2024

(Ilustração: Pierre Auguste Renoir)

3 de jul. de 2024

juramento falso

 





juro que eu gostaria de ser coerente

mas nenhum poeta digno desse nome

flertou um dia com esta senhora – a coerência

e os poucos que o fizeram

levaram na cara a gargalhada do destino

despirocaram do trapézio pitagórico

que balançava sob a lona estrelada



do circo de horrores chamado de vida e de outras coisas mais

caíram de bunda no espinheiro santo da coroa do crucificado



por isso – amado descontente de meus perjúrios –

aceite que meus versos sejam tortos

que meus olhos estejam mortos

[ainda que enxerguem estrelas arruinadas no fim da rua]

aceite que eu jure para você que deus não existe

e que rezo todos os dias para que isso seja verdade





12.9.2023

(Ilustração: Piet Mondrian)