nas lonjuras do pensamento
onde mora minha imaginação
encontro em forma fluida todos os meus poemas
de lá os trago com a força de minhas palavras
arrasto-os pelos caminhos
por entre as pedras e os espinhos
quando aqui chegam estão muitas e muitas vezes
mais maltratados que os antigos romeiros
que atravessavam o tempo e as montanhas
para cumprir uma promessa que nunca fora apalavrada
são poemas perdidos nos caminhos de outrora
são poemas perdidos nos caminhos de agora
vindos das lonjuras do pensamento
chegam a mim rotos e cansados
nem sempre a mensagem devidamente mastigada
sob as rotas vestes com que se me apresentam
trazem feridas não cicatrizadas
e cicatrizes bem-marcadas
enredados por versos e estrofes mal alinhavados
são poemas de angústia pelo tempo macerados
amordaçados e feridos pelas correntes das galés
atravessam oceanos de áfricas para as praias e florestas
de continentes estranhos e ameaçadores
- e muitos se afogam na travessia –
são poemas que gritam por respeito e liberdade
na flecha e no tacape do indígena expulso de suas terras
são poemas que gritam por respeito e liberdade
no braço forte e no ventre fértil do povo preto
e escrevem esse grito primal
no palimpsesto de peles negras e peles crestadas de sol
rasgam os caminhos não percorridos
estranham as crenças não confessadas
em quimbundos e nheengatus entrelaçados
combatem pelas planuras de tabas e quilombos
o combate inútil de antepassados triturados em moinhos de açúcar
trazem o quiproquó de tantas quizombas – esses poemas
trazem as batidas dos pés nus na poeira das aldeias
trazem o estertor da floresta na pisada do europeu
- onde há branco há dor – grita o espanto da pele parda
- onde pisa o branco não nasce capim – grita o cafuzo no pouso da arara
- não entra o branco onde canta o maracatu– grita o mameluco no terreiro
plumas de pássaros feridos
peles de onças pintadas
sangue na picada do urutau
são originárias as marcas do passo marcado do poema cantado
são extraordinários os cantos dos piagas e as danças dos orixás
e meus poemas não lutam contra a correnteza
os rios que os trazem não poluem minhas veias
os ventos que os sopram não envenenam meus pulmões
viajam das planuras do pensamento para as emoções do meu desejo
entrelaçam-se aos meus desencantos todos e a todos dá guarida
mascaram sua fome de estrada com as angústias de minhas impossibilidades
plumas de pássaros pintados
peles de onças feridas
sangue do urutau na ferida
não edulcoram os percalços
não lamentam as chibatadas
trazem – esses poemas sem eira nem beira – dos sertões e das florestas
das campinas e das grutas mais fundas
crestados pelas lonjuras do pensamento
o sentimento de um mundo que se faz e refaz apesar de tudo
e sopram na minha pele – enfim – o arrepio da vida
só o arrepio da vida
16.4.2024
(Ilustração: Odilon Redon: illustration pour les Fleurs du ma, de Baudelaire)
Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:
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