12 de jul. de 2024

lonjuras do pensamento

 







nas lonjuras do pensamento

onde mora minha imaginação

encontro em forma fluida todos os meus poemas

de lá os trago com a força de minhas palavras

arrasto-os pelos caminhos

por entre as pedras e os espinhos



quando aqui chegam estão muitas e muitas vezes

mais maltratados que os antigos romeiros

que atravessavam o tempo e as montanhas

para cumprir uma promessa que nunca fora apalavrada



são poemas perdidos nos caminhos de outrora

são poemas perdidos nos caminhos de agora

vindos das lonjuras do pensamento

chegam a mim rotos e cansados

nem sempre a mensagem devidamente mastigada



sob as rotas vestes com que se me apresentam

trazem feridas não cicatrizadas

e cicatrizes bem-marcadas

enredados por versos e estrofes mal alinhavados

são poemas de angústia pelo tempo macerados



amordaçados e feridos pelas correntes das galés

atravessam oceanos de áfricas para as praias e florestas

de continentes estranhos e ameaçadores

- e muitos se afogam na travessia –



são poemas que gritam por respeito e liberdade

na flecha e no tacape do indígena expulso de suas terras

são poemas que gritam por respeito e liberdade

no braço forte e no ventre fértil do povo preto

e escrevem esse grito primal

no palimpsesto de peles negras e peles crestadas de sol



rasgam os caminhos não percorridos

estranham as crenças não confessadas

em quimbundos e nheengatus entrelaçados



combatem pelas planuras de tabas e quilombos

o combate inútil de antepassados triturados em moinhos de açúcar

trazem o quiproquó de tantas quizombas – esses poemas

trazem as batidas dos pés nus na poeira das aldeias

trazem o estertor da floresta na pisada do europeu



- onde há branco há dor – grita o espanto da pele parda

- onde pisa o branco não nasce capim – grita o cafuzo no pouso da arara

- não entra o branco onde canta o maracatu– grita o mameluco no terreiro



plumas de pássaros feridos

peles de onças pintadas

sangue na picada do urutau

são originárias as marcas do passo marcado do poema cantado

são extraordinários os cantos dos piagas e as danças dos orixás



e meus poemas não lutam contra a correnteza

os rios que os trazem não poluem minhas veias

os ventos que os sopram não envenenam meus pulmões

viajam das planuras do pensamento para as emoções do meu desejo

entrelaçam-se aos meus desencantos todos e a todos dá guarida

mascaram sua fome de estrada com as angústias de minhas impossibilidades



plumas de pássaros pintados

peles de onças feridas

sangue do urutau na ferida

não edulcoram os percalços

não lamentam as chibatadas

trazem – esses poemas sem eira nem beira – dos sertões e das florestas

das campinas e das grutas mais fundas

crestados pelas lonjuras do pensamento

o sentimento de um mundo que se faz e refaz apesar de tudo

e sopram na minha pele – enfim – o arrepio da vida

só o arrepio da vida



16.4.2024

(Ilustração: Odilon Redon: illustration pour les Fleurs du ma, de Baudelaire)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:

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