(Di Cavalcanti - o boêmio)
(à Fernando Pessoa)
No bar
qualquer tarde de quase-verão.
Sento desconfiado e chamo o rapaz
o escanção
diriam os portugueses
e peço um chope bem gelado
há uma certa
ambivalência
no ar as pessoas parecem estranhas
no largo Santa Cecília
às pessoas que passam
aos fregueses do bar aos mendigos da rua a todos parece haver
fantasmas de tempos imemoriais parados no tempo
a restabelecer no espaço de um bar a ordem
de uma era que já não há mais
uma era
perdida entre o sonho e a lembrança e o bar
e o bar é apenas o porto pobre perdido entre a poeira do tempo e a memória
ao som suave e sensual
da crooner
à voz de uma
orquestra embutida num teclado
ensaiam-se algumas notas de um samba de outrora para a viagem
de agora
é só uma questão de compassos a mais ou a menos tento
observar as pessoas que ali estão
compenetradas em conversas tão inúteis tão inúteis tão
inúteis como
inútil é o próprio bar alçado ao vento da tarde quase-noite noite que
não virá ainda parada na esquina a esperar que o sonho
tome a memória ou a memória abarque o sonho e o senhor calvo da mesa à frente contempla o copo
cheio com os olhos vazados
o paletó de sombra e a gravata de desenho animado da Disney
na cara os dentes amarelos entre o bigode ralo
e o lábio leporino a sorrir para
o ar jovial da donzela cara-de-prostituta sentada à sua frente e o som
da voz da crooner ecoa em ondas de suave entardecer
a embalar a risada de um grupo de negros
que comemoram talvez as férias do escritório a beber muito
a falar muito
a abraçar uns aos outros assim que chega cada novo convidado
a cidade
é o cenário improvável dos sonhos da moça que não é feia
mas também não é bela que entra que sai várias
vezes
e acaba sentada à mesa da calçada olhando furtiva o tempo no pulso
e tenho vontade de lhe dizer que fora eu o esperado
não estaria ela sozinha à mesa de um bar num canto perdido do largo de Santa Cecília calo-me porém não quero a língua a tripudiar
da doce espera solitária de uma jovem desconhecida perdida no tempo
na tarde de quase verão num canto de bar de um tempo
que não é o meu e
um longilíneo rapaz de jeito doce e efeminado
olha-me longamente de longe na certa
avaliando se posso ter ali sentado sozinho as possibilidades de seu desejo
ignoro meu sonho está longe e o som do samba me embala
para dentro de mim e para a periferia da memória e cada gesto que faço
não mais pertence ao tempo em que estou e os vultos
que passam os cheiros que ficam no ar os ruídos de vozes de arrastar de cadeiras
o chope que enregela a língua a suavidade de seda
da voz da sambista a cantar canções de outrora de agora
o motor dos automóveis que param um instante
na esquina
e prosseguem em busca dos sonhos mais loucos de cada passageiro
o olhar dos mendigos do outro lado da calçada
descrentes do mundo a engolir a sopa que o exército da salvação
ou qualquer outro exército metido a resolver com sopa os problemas do mundo
despejaram para eles em garrafas de Coca-Cola cortadas ao meio
eles ali a beber aquela coisa úmida e pegajosa que os manterá
vivos por mais uma noite que impedirá talvez que a barriga ronque
e o ronco provoque a ira da fome mais longa e o brilho da lua
na faca afiada soletre o nome da morte
e acabe de vez com a fome que ronca
o mistério da permanência
o mistério da resistência
o bar é o porto o porto seguro aonde não chegam
o olhar e a fome dos mendigos do outro lado da rua no meio da praça
a aconchegar os trapos para mais uma noite de sono e pesadelos
a cidade aos poucos aquietar-se-á mas o bar
o bar não
o bar
acenderá luzes aumentará os sons ampliará os sonhos
embalará romances expelirá remorsos destruirá amizades
despertará ciúmes destruirá ilusões porque o bar é só
seguro porto
para quem vive lá fora para quem o vê com os olhos de fome
para quem não vive em seu tombadilho regado a cerveja
a cachaça ou a uísque paraguaio em sumos e sucos
e ervas e pós que
fazem sonhar em embalos inúteis de papos ainda mais inúteis
todos palhaços
da vida atores desempregados em palcos podres empregados
mal remunerados de escritórios virtuais contínuos de bancos
vendedores de quinquilharias e corretores de aluguel
e nesse estranho universo de criaturas perdidas
as putas
que gozam sinceras o amor mais fingido
são elas o porto inseguro na noite do bar
do bar
do bar de barganhas entre o sonho e a memória perdida nau
na esquina da praça a resgatar o ventre de loucos arroubos
a arranhar o pêlo de nucas suadas a arrebentar entranhas
do fundo da terra a arrepiar os parcos cabelos de velhos já
bêbedos
na orgia de sons suores na promiscuidade recente
de putas
e padres na mistura insolente de veados
e tarados
todos ali prontos para o motim alucinados pelo comando
tratados a bebida barata de preços extorsivos famintos sedentos
mendigos de vida mendigos de beijos a arrotar
pútridos passados
no esconder vidas que não viverão capados de amor inúteis
cidadãos do mundo cidadãos do tempo magros gordos
poetas e políticos
gente matizada de todas as cores
todos em massa de sonho tornados
todos em busca de si
todos que já levaram porrada muita porrada
transformados transtornados
todos
bobos da corte que à volta se forma da corte à morte da morte
à corte surdos e mudos da louca viagem passageiros constantes
perdidos fedidos
fodidos
trancados em si abertos
aos gases
do inferno que a embriaguez lhes arranca
animais no cio seios
bocetas e colhões em harmonia
profunda em profundo esgar
de morte de espera de mijos
de cada vez mais longos arrotos e peidos e sêmen
e o negro mistério cortado
com faca pairando no ar acima
de tudo
o fôlego
perdido a música encontrada a confiança
alcançada
a confissão arrancada e a
promessa quebrada o beijo a morte
a morte
ao norte
a morte
ao sul
a morte
a leste
a morte
a oeste
a morte
a bombordo
a morte
a estibordo
a morte
ao leme.
E o bar é isso e é mistério
é nau sem rumo
sempre encontrada.
Porque sobre tudo
e sobre todos
sobre
viverá.
23.12.97
23.3.2009
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