26 de dez. de 2008

São paulo desconstruída



 porque te conheço, estremeço

- porque te amo, te estranho –

e te costuro em versos enquanto

constróis labirintos dentro de mim


e porque me perco em teus labirintos

me sinto puxado por um fio que não sabes

aonde me levas

és na minha mente

uma megaluz de encantos e desencantos

calidoscópica miragem

na cena de minhas muitas memórias


- minha santa infernal são paulo de estranhezas e certezas -

diáspora de rios que te comem por baixo

a carne mal-amada de redemoinhos de amores

e prazeres e sofreres e de encantos mil


na cruz vermelha de tua bandeira

há certezas inauditas

de todas as tuas conquistas –

padres e mamelucos travestidos de tua pobreza

e também de tua riqueza –

centro convexo de concavidades altaneiras

do planalto ao mar

para o salto infinito de tuas ambições


teus rios te devoram,

teus homens te devoram,

tuas mulheres te devoram

e tu mastigas todos eles a cuspir poeiras

de caminhos e fuligens de chaminés,


lentas as carruagens que te construíram,

velozes os ventos que te dão asas


teus poetas não te entenderam

e te declararam inóspita e desvairada


nada de ti se perde

tu a tudo transformas em transgênicas longevidades

e partes a bufar caminhos por onde não os há:

pontes e viadutos não te distinguem da paisagem inútil


do alto inspiras ao que aspiras

e vives de teus pecados

como prometeu acorrentas-te à carne

para salvar o sonho

e quando escapas da alternância dos maus profetas

que te comem os olhos

acomodas-te a teus anseios de distantes horizontes


entrelaça teu destino ao meu,

santa são paulo dos desprazeres


entrelaça o teu sonho ao nosso,

santa são paulo dos desfazeres


entrelaça o teu cabedal ao sonho

e sobe para o teu posto de guerreira tupinambá

na ascese de antropofagias anti-europeizantes,


santa são Paulo de todos os quereres


do jongo ao samba na roda da saracura,

tu és bastilha de cadinhos de raças e contra-raças,


tu foste o que tens sido sempre,

apesar dos sonhos comidos,

dos caminhos destruídos,

das pontes perdidas no horizonte de teus anseios:

talhada a flecha e a tacape

a foices e a martelos de deuses de todos os cantos

caminhas para o teu destino de soberba e fé


miseráveis sombreiam teus viadutos que a nada conduzem,

enquanto os ricos escoam teu ouro

por paisagens rompidas em subterrâneas vias,

e ratos podres sobem do seio do rio de águas grossas

para o poder no topo de agulhas que buscam o infinito,


és negra branca amarela parda em multi-azuis-amarelos

-amarelecidos brasões de bandeiras e desentradas

por vias nunca de agora até sempre pisadas

por teus bravos desbravadores de trilhas,


tuas choças de aço te corromperam os intestinos

e vomitas a fuligem negra

de arrotos de aço e cobre e ácidos sulfúricos sulfídricos

em sulfanoses e esgares de mitos não resolvidos,


teus parques de anônimos urucuns e grumixamas

estranham o beijo que o asfalto celebra,

e neste asfalto tua história tem flecha e bala


esmagaste um dia teus filhos em celas pútridas

e abençoaste teus renegados assassinos,

transbordaste lágrimas por serpenteantes exéquias

por teu herói montado em máquinas luzentes

e por aquele que, ungido,

em teus braços adormeceu na ante posse do poder,


se contraditas tuas agonias

em esgares de palácios impávidos

nas sagradas colinas de teus fundadores,

desesperas teus filhos

em angustiantes torneios de sobrevivência

e abraças o desconhecido de longes terras

como teus salvadores,


és áfricas nos seios de tuas negras

és europas nos desenhos de teus jardins.

és américas na velocidade de teus arrojos,

és asias de silêncio e força em teus olhos de espanto,


abriste tuas pernas para o mundo

e agora prostituis o útero da mãe terra

em vesgos esgares de anoréxicas amantes

no cadafalso de leis inauditas,


és o berço de heróis malditos

nas chamas de histórias de sangue na serra da mantiqueira,

e foste resistência quando rasgaram teu peito,

tornas-te emblema no grito pela liberdade,

mergulhas no sonho de peixes mortos

nos teus rios de engodos,

és mameluca gente a correr como baratas tontas

em dias de gala na marcha fúnebre de teus exércitos imberbes,

sonhas o meu sonho

e transmites via internet o carma antigo

de que deves crescer muito além de ti mesma,


ó santa são paulo,


oh santa são paulo de piratiningas,

tuas cheias serviram o peixe a todos os povos

que antes de existir tua floresta de cimento e sangue

cruzaram teu solo na pegada do peabiru

oh santa são Paulo

de macambúzios povos

de peles claras e olhos azuis


loucas avenidas de luz e som

sujas ruelas de mel e mijo,

minados campos ancestrais o teu paulistano espigão,

floridos os campos do futuro

que a cada dia ergues e desconstróis,

campos elísios, elísios campos

de ventos alísios e de bois de venta,

de caminhos inúteis que não te permitem saíres de ti,


ó santa são paulo,


oh são paulo de pauis e putas,

são podres os teus poderes

são impuros os teus sonhos

e os sonhos de teus inimigos


tens no entanto a nobreza do altiplano

e quando te rejuvenesces no amarelo das quaresmeiras,

tinge-se de vermelho o teu pôr de sol em dias de carnaval,

serpenteia pela montanha o teu cortejo de almas penadas

a buscar esmeraldas que o sonho esculpiu

nas feridas da terra que povoaste,


santa achiropitta


santa de almas loucas no sobe e desce de bondes imaginários

a conduzir sonhos impúberes de funcionários públicos,

colinas de aço a contemplar horizontes que não mais alcanças,

teus pilares são pilares de esperanças

para aqueles que erguem cada centímetro

de teus sonhos verticais

- tuas pirâmides de aço e vidro


jaçanãs, jaçanãs, rios de jaçanãs,


peitos coloridos de verde e amarelo

a pintalgar o canto de tuas asas que embricam

em fornos de aço

a construir moinhos de dons quixotes

e sanchos panças a brandir lanças

em ilhas de prosperidade e mel,


teus ventos redemoinham teus sonhos

e ecoas mais alto o grito de teus ipirangas,


mataste o grito de teus primevos gentios

que habitavam anhagabaús e jaraguás,

no teu peito pulsa

o coração de aço do operador da bolsa de valores,


quem te compra, quem te compra,

ó santa são paulo,

oh santa são paulo,


riscos de laser em teu céu de chumbo,

riscos de faca em esquinas semafóricas de perigos e drogas,

teus filhos te odeiam,

ó santa são paulo,

te odeiam porque não podem te odiar,

e reclamam teus anseios

e restauram teus brios em ouros de palácios encantados

e em teatros de europeia estirpe,

abraças com teu charme o charme do europeu,

encantas com teu encanto a sutileza

de todos os teus orientais,

batizas nas cinzas de teu fogo

todos os árabes em judeus convertidos,

todos os judeus em árabes transmutados,


teus sábios desdenham de ti,

teus convivas não agradecem o banquete,


és mais brasil

que todos os demais brasis

és mais amazônica

que todos os que em ti sonham o teu sonho,

mais estranha ainda

na estranha gente de olhos de estanho,

essa gente que vem por ti

de longes terras de estranhos falares e esgares,

para cumprir com seus sonhos o teu destino,

para cumprir com suor e sangue as tuas desesperanças,


contemplas do alto de tuas colinas

os teus rios magros e sujos

e desdenhas teu povo tísico de fuligens de motores,

teu povo que corre ladeira abaixo,

teu povo que corre rio acima,

teu povo que corre escadas abaixo,

teu povo que corre elevadores acima,

impulsionados todos por tuas alucinações e paixões,


odeio-te,

ó santa são paulo,

oh são paulo de maus humores e bons amores,


amo-te,

ó santa são paulo,

oh são paulo de maus amores e bons humores,


mas não te amasse mais que tu me odeias

mas não te odiasse menos que tu me amas

nesse jogo o teu destino se cumpriria em mim

como eu cumpro em ti


chega-te a mim

ó megalópole de iras e dor e prazeres impensados

a correr pelos campos de outrora para o sempre,


sê o teu próprio cadinho de metamorfoses

e serei eu o teu profeta

a endeusar em versos teus destinos e tuas verdades,

encanta-te de mim, encanta-te,

e no museu aberto de tuas chagas de flechas e tacapes

esculpirei teu semblante no bronze,

no bronze dos sinos de tuas catedrais,

para sempre e sempre,

como todo aquele que um dia se vergou

aos teus desencantos nobres

ou aos teus encantos mais pobres


se te estranho ainda,

não te enlaces em minhas dores,

guarda, guarda, enfim, para o poeta exausto

o cálice bento de tua juventude

de quatrocentos e tantos anos

ó são paulo,

oh santa são paulo

de meus desalentos e de minhas esperanças


- nossa sempre (in)feliz-cidade...

 

 

Isaias Edson Sidney

 

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(Ouça esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/6Kub2z6GvCL89oyCF2S6Qs?si=3eLFr8QmQyej03ckzJk81w)

Um comentário:

  1. Deixou-me com lágrimas nos olhos, caro poeta! Bravo!!!!

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