Dias de penúria e felicidade marcaram meus quinze primeiros anos de vida. Não lhes tenho nenhum sentimento de saudade nem desejaria que voltassem. Então, para que relembrá-los? Talvez para saber quem eu fui, quem eu sou. Para isso servem as memórias. E, proustianamente, vou, aqui, tentar desvendar mistérios, pequeníssimos, mas fundamentais mistérios de minha vida. Delimito no tempo essas memórias: os quinze anos, quando me formei no que nessa época se denominava ginasial. Precisamente o dia de minha formatura, quando, às voltas com o discurso que eu teria que fazer, como orador da turma, iniciou-se uma briga entre mim e meu irmão Marcos. Na verdade, ele é quem brigava comigo. Sexto filho de uma prole de que restaram apenas quatro irmãos – duas irmãs, Maria Amélia e Irene morreram ainda no puerpério, muitos anos antes de mim – tinha vindo ao mundo doze anos após aquele que era até então o caçula, Marcos, com quem vivia às turras. Tive, com ele, poucos momentos de distensão ao longo de toda a sua vida. Nossa relação era sempre muito tensa: temia-o mais do que o amava como acho que os irmãos de sangue devem amar-se. Era doente, o meu irmão, sofria de alcoolismo e, quando bebia, tinha crises de violência e rancor exacerbados, muitas vezes voltados para mim, como se eu tivesse culpa de ter nascido e tirado o seu lugar ou suas oportunidades de vida, sei lá, nunca consegui descobrir por que gostava de me xingar, de me agredir verbalmente. E nesse dia, em especial, tinha sido muito duro comigo: dissera que esperaria que eu crescesse, que eu me tornasse homem, para enfrentá-lo e, então, ele me daria uma surra. Sei, agora, que a promessa da surra era fanfarronice da bebedeira, mas vivi muitos e muitos anos atormentado por essa possibilidade, já que ele sempre foi muito mais forte do que eu. No auge da discussão, chegou meu padrinho de batismo, Geraldo Faria. Sim, eu tive um padrinho de batismo, não podia nunca ter escapado do catolicismo beato de minha mãe. Há uma foto ridícula de primeira comunhão, na qual um menino franzino, assustado, de terno jaquetão, calças curtas, sapatos (coisa rara) e meias brancas segura uma vela. Típica foto da época, padrão de vexames em datas específicas de que quase ninguém escapava. A fotografia não era algo comum, só os profissionais ousavam, com suas câmeras enormes, colocadas em tripés, atrás das quais o fotógrafo se escondia sob um pano negro, obter flagrantes de momentos históricos das famílias: casamentos, batismos, bodas e outras efemérides. Tergiverso, à Proust, para quem as memórias devem ser assim, oceânicas, longas, detalhadas, aborrecidas talvez para a maioria dos leitores, mas com o sabor de madalenas daquele momento específico de uma lembrança que desperta sensações que desatam nós que se enredam e desenredam em teias de sentimentos e de pedaços de vida. Nunca provei uma madalena. Nem mesmo qualquer mulher com tal nome. Minhas memórias gustativas prendem-se aos sabores quase primitivos de uma broa de fubá ou de um frango com quiabo e outras comidas típicas do interior de Minas, da velha Lavras, onde nasci. Voltemos ao meu padrinho, Geraldo. Era ele um tipo folgazão, amplo, bigode farto no rosto onde pontuava sempre um sorriso maroto. Era também uma espécie de contraparente – e eu me embaralhava nesses parentescos e nessas redes familiares, porque era filho de minha tia – não, ela não era exatamente minha tia, mas tia de meu pai – dona Elisa Faria, cujo marido... bem, é mais ou menos isso, são figuras que povoam mais a minha imaginação do que realmente lembranças concretas de sua real localização numa pretensa árvore genealógica de minha família, já que eu, por vontade e por circunstâncias, quebrei quase todos os laços que me prendiam à parentalha espalhada por aí. Meu padrinho Geraldo era, então, para mim, uma figura real e presente, com seu jeito brincalhão, com suas histórias e, hoje percebo algo que mal percebia à época, com sua possível cultura. Uma de suas histórias muito me intrigou e ilustra bem sua personalidade. Contava que, em sua época de estudante, vivia com outros rapazes em uma república. As repúblicas marcaram época: eram casas alugadas por grupos de estudantes forasteiros que iam estudar longe de suas cidades de origem. Transformavam-se, claro, em antros de farras e estripulias de uma juventude que contava com muito poucas opções de divertimento. Pois, nessa república onde morava meu padrinho, segundo ele, havia uma tradição entre os moços: no final do dia, depois do banho, todos se postavam às janelas para paquerar e conversar com as moças que passavam pela rua. Impecáveis, com suas camisas brancas de colarinho e gravata, mas completamente nus da cintura para baixo. Inocente, eu jamais atinei por que assim agiam os rapazes. Mas a história prossegue: um dia, Geraldo, moleque como ele só, descobriu que um grande espelho que havia na sala, se colocado num determinado ângulo, poderia fornecer uma grande oportunidade de pregar uma peça nos colegas. Assim, depois dos devidos ajustes na posição do tal espelho, ele seguiu o ritual de sempre, com os amigos. Porém, depois do banho, vestiu-se e foi para o portão, enquanto os demais rapazes postaram-se à janela. Divertiu-se ele às escâncaras com a reação das moças: elas paravam para conversar com os rapazes da janela e iam embora rapidamente, algumas ruborizadas, outras divertidas, com a visão de várias bundas refletidas no grande espelho. Também nunca soube – porque acho que ele nunca contou – como terminou essa patacoada. Era assim o meu padrinho Geraldo., com seu humor, suas histórias de uma juventude passada em algum lugar – seria Campo Belo ou Belo Horizonte? – completamente ignorado por mim, como também não sei até que nível de estudos ele completou. Sei que era culto, porque, naquele dia, ao chegar à minha casa, no momento mesmo da discussão com o Marcos, ele achou um motivo para me afastar da briga, me chamar de lado e me dizer algumas reconfortantes palavras e, principalmente, me entregar um presente: um livro de capa dura e vermelha, uma edição da FTD de Os Lusíadas. Não me lembro de mais nada desse dia, nem de como foi a cerimônia de formatura, tudo se apagou da minha memória, nenhum esforço recuperou os demais acontecimentos de uma data tão importante, ficou somente a memória da briga com meu irmão, porque está atrelada ao presente de meu padrinho Geraldo, por quem não tive oportunidade de chorar, muitos anos mais tarde, quando ele morreu. Choro-o agora, com todo o meu ser, porque uma lágrima de saudade não tem data nem hora para ser vertida por aqueles que marcaram tão profundamente nossas vidas, mesmo que no instante de um relâmpago, num momento crucial e salvador.
Joinville/SC – 4.6.2014