10 de out. de 2016

desnudo-me






(Lucien Freud)




desnudo-me para ti

não exatamente a nudez de meu corpo

embora a nudez das carnes flácidas e velhas pouco me incomode

sou como sou e nada há a fazer sobre isso

mas desnudo para ti minha vida

meus pensamentos

aquilo que chamam alma e que eu chamo apenas o que eu penso

e quando me desnudo para ti

dispo para mim mesmo todas as mágoas

todos os dissabores

e conflitos

deixo que venham à tona figuras de minha vida

como o pai que nunca tive

ausente sempre e sempre distante

dele nunca ouvi uma palavra sequer que se parecesse com a palavra filho

abandonou-me por outros filhos

irmãos de sangue mas não de compartilhamento de emoções e de vida

temerosos talvez que lhes surrupiasse parte de alguma pretensa herança

de um pai do qual não queria nem mesmo um retrato na parede

sim

falo do meu pai como a sombra que se foi sem ter sido

não devia merecer de mim nem mesmo a queixa desses versos sofridos

deixemo-lo em seu túmulo em algum cemitério perdido nas montanhas de minas

que falta não fez nem falta fará à minha vida

desnudo-me para ti

para falar de minha mãe

não

não posso falar de minha mãe

que a dor de sua partida é dor que dói cada dia

cada segundo

picada de agulha no coração

saudade que se carrega em cada verso

em cada momento

fique minha mãe aqui dentro de mim apenas

como luz de uma sombra que não se apaga

de quem mais posso falar nesse desnudamento

de minha irmã que tão cedo se foi

sem ter visto crescer uma só das flores que deixou

já duas delas também estioladas

de meus irmãos homens o que foi pai no lugar daquele

e o que foi padrasto no lugar do que não houve

deixemo-los também

que os sentimentos diversos a cada um devotado

não merecem mais qualquer julgamento

cumpriram o que deviam ter cumprido

para que eu seja o que sou

nada mais

fujamos dos mortos

fujo dos mortos

não porque os tema ou porque não os cultue

fujo deles como se foge da sombra ao cair da tarde

estão lá como a sombra e não há o que fazer para nos livrarmos deles

deixemo-los e sigamos

desnudo-me então para ti dos trapos que foram os fatos de minha vida

a vida pobre na infância – padrão de minha classe social

num país em que só os abastados têm a comemorar os presentes de natal

inúteis lembranças

como serão inúteis quaisquer sentimentos de piedade improvavelmente despertados

não

deixemos a pobreza para os pobres e aos pobres toda a recompensa

de pensar que ganharão o reino dos céus

desnudo para ti minhas profissões

professor talvez a mais honrada

que tudo me deu num momento e tudo me tirou no momento seguinte

mérito e demérito de ensinar e nada aprender

que não seja apenas a impossibilidade de civilizar

não

não vale a pena nem mesmo que se apequene a já tão pequena alma que carrego

se vou despir-me

que não seja das poucas não misérias inqualificáveis

que a vida me serviu como pratos quentes e que eu descobri gelados

que não me dispa de minhas poucas certezas

e de minhas inquantificáveis incertezas

não posso tampouco despir-me da minha absoluta descrença

em tudo quanto cheire a metafísica

ou a deuses tísicos a zombar da pequenez humana

portanto

se queres ver-me nu

espera que seja eu apenas a sombra que passou e não deixou rastros

e verás que tudo que fui

tudo que sou

e tudo que ainda possa ser

torna-se nada porque nada

absolutamente nada

vale ou terá valido o esforço de minha vida

e assim

nu

nadificado

nuditizado

desqualificado

deixarei que as flores que vierem a nascer de minhas cinzas

tenham apenas um leve perfume da descrença absoluta



ah sim

acrescento um post scriptum

nesse meu retrato desnudo em preto e branco

não são essas minhas palavras

não são esses meus versos loucos

o meu testamento

que a vida que corre em minhas veias

tem ainda muito a correr e sofrer





6.10.2016

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