(Lucien Freud)
desnudo-me para ti
não exatamente a nudez de meu corpo
embora a nudez das carnes flácidas e velhas pouco me incomode
sou como sou e nada há a fazer sobre isso
mas desnudo para ti minha vida
meus pensamentos
aquilo que chamam alma e que eu chamo apenas o que eu penso
e quando me desnudo para ti
dispo para mim mesmo todas as mágoas
todos os dissabores
e conflitos
deixo que venham à tona figuras de minha vida
como o pai que nunca tive
ausente sempre e sempre distante
dele nunca ouvi uma palavra sequer que se parecesse com a palavra filho
abandonou-me por outros filhos
irmãos de sangue mas não de compartilhamento de emoções e de vida
temerosos talvez que lhes surrupiasse parte de alguma pretensa herança
de um pai do qual não queria nem mesmo um retrato na parede
sim
falo do meu pai como a sombra que se foi sem ter sido
não devia merecer de mim nem mesmo a queixa desses versos sofridos
deixemo-lo em seu túmulo em algum cemitério perdido nas montanhas de minas
que falta não fez nem falta fará à minha vida
desnudo-me para ti
para falar de minha mãe
não
não posso falar de minha mãe
que a dor de sua partida é dor que dói cada dia
cada segundo
picada de agulha no coração
saudade que se carrega em cada verso
em cada momento
fique minha mãe aqui dentro de mim apenas
como luz de uma sombra que não se apaga
de quem mais posso falar nesse desnudamento
de minha irmã que tão cedo se foi
sem ter visto crescer uma só das flores que deixou
já duas delas também estioladas
de meus irmãos homens o que foi pai no lugar daquele
e o que foi padrasto no lugar do que não houve
deixemo-los também
que os sentimentos diversos a cada um devotado
não merecem mais qualquer julgamento
cumpriram o que deviam ter cumprido
para que eu seja o que sou
nada mais
fujamos dos mortos
fujo dos mortos
não porque os tema ou porque não os cultue
fujo deles como se foge da sombra ao cair da tarde
estão lá como a sombra e não há o que fazer para nos livrarmos deles
deixemo-los e sigamos
desnudo-me então para ti dos trapos que foram os fatos de minha vida
a vida pobre na infância – padrão de minha classe social
num país em que só os abastados têm a comemorar os presentes de natal
inúteis lembranças
como serão inúteis quaisquer sentimentos de piedade improvavelmente despertados
não
deixemos a pobreza para os pobres e aos pobres toda a recompensa
de pensar que ganharão o reino dos céus
desnudo para ti minhas profissões
professor talvez a mais honrada
que tudo me deu num momento e tudo me tirou no momento seguinte
mérito e demérito de ensinar e nada aprender
que não seja apenas a impossibilidade de civilizar
não
não vale a pena nem mesmo que se apequene a já tão pequena alma que carrego
se vou despir-me
que não seja das poucas não misérias inqualificáveis
que a vida me serviu como pratos quentes e que eu descobri gelados
que não me dispa de minhas poucas certezas
e de minhas inquantificáveis incertezas
não posso tampouco despir-me da minha absoluta descrença
em tudo quanto cheire a metafísica
ou a deuses tísicos a zombar da pequenez humana
portanto
se queres ver-me nu
espera que seja eu apenas a sombra que passou e não deixou rastros
e verás que tudo que fui
tudo que sou
e tudo que ainda possa ser
torna-se nada porque nada
absolutamente nada
vale ou terá valido o esforço de minha vida
e assim
nu
nadificado
nuditizado
desqualificado
deixarei que as flores que vierem a nascer de minhas cinzas
tenham apenas um leve perfume da descrença absoluta
ah sim
acrescento um post scriptum
nesse meu retrato desnudo em preto e branco
não são essas minhas palavras
não são esses meus versos loucos
o meu testamento
que a vida que corre em minhas veias
tem ainda muito a correr e sofrer
6.10.2016
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