27 de out. de 2017

ninguém ouvirá o teu canto





(Yves Tanguy)






ninguém ouvirá o teu canto

gestado e grunhido em madrugadas frias

desesperado adeus de sonhos acalentados

grito outonal de uma mente enfim liberta

pronta para o salto da ponte sobre o rio da vida e da morte

encachoeirado rio agora depois de tanto tempo represado

preterido o tempo jogado ao fogo

que nem águas claras o podem apagar

ninguém ouvirá o teu canto

solene como o canto da graúna

sobranceira estátua sobre a montanha

inútil destino de todos os desencantados

rarefeito canto à margem do oceano

no qual o rio se desfaz em sal

desespere-se o cantor inutilmente levado pela correnteza

náufrago sem destino a bater nas pedras e a debater-se na espuma

no sonho o grito enfim da floresta

o desenho frágil e sutil da esperança

três vezes o canto do bem-te-vi

três vezes o coração bate mais forte

atroz o destino do teu canto

ó náufrago inútil a desafiar a morte

sabe-o de cor a população inteira

que não se importa mais com teu desvario

pretérito mais que passado o teu gemido implora por ser ouvido

enquanto mugem nas orquestras o desalento de trompas desafinadas

passaste e não viste o tempo correr

secaste e não viste o sol crestar tuas pétalas

sem asas e sem alento correste inutilmente

pelos campos de espinhos e sarças em fogo

o beijo da aragem a medrar teu fogo

o canto das águas a fugir do teu logro

pensa e canta ainda se tiveres voz

que o teu canto de vida a morte exsuda

nos campos férteis de margaridas e espinhos

o espaço entre cada nota de teu roufenho canto será todavia preenchido

pelos dedos ágeis de tua mais ferrenha e feroz inimiga e terás enfim morrido

sem pejo

sem nojos

sem arrepios

longe

muito longe de todos os teus anseios e ensejos


4.4.2017




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