2 de fev. de 2019

memórias







ladrem os cães dentro da noite densa

queimem as lamparinas o querosene barato

minhas narinas se cubram de negra fuligem

maria clara me aguarde no portão e chore

os soldados do tiro de guerra marchem pelas ruas

o dia da pátria se cubra de um véu negro

ao som dos tambores que soam nas montanhas

à espera dos gritos de horror que ainda não ecoam

o presidente deposto coroe as virgens violadas

aos pés do santo do altar-mor da igreja matriz

de santana e ouça a confissão de pecados imberbes

o piano que soa pela noite complete o nevoeiro

os sons da marcha batida no pátio do colégio

avencas nos barrancos do riacho podre o areal

do barranco do campo de futebol o negro

que pisa devagar no chão de pó e pedra

morreu tão cedo sem que soubéssemos o mal

pisava em ovos e o avião que decola ao vento

levava a certeza de sonhos encurralados

mangueiras em flor e o vidro corta a carne

o sangue escorre no grupo escolar a tabuada

não sei não sei quanto é nove vezes oito

a bola de meia o ora-pro-nobis cheio de espinhos

uma noite mágica sob o corpo do amigo que voa

depois o concerto do jovem pianista premiado

o vento castiga as ondas da rádio nacional

o cantor solta a voz ao meio dia num boa noite amor

marinete se vai num dia de sol e choro

não há mais figurinhas nem gibis do tarzan na selva

macacos me lambam me mordam me fodam

o carpete do salão de bilhar a lua que brilha no céu

as putas dançam no cabaré infecto do fim da rua

a noite estrelada conta com o brilho das três marias

o poço onde mergulha o sonho não tem mais fundo

o cemitério contorna em pedras o mistério da vida

a hóstia consagrada tem gosto de trigo e água benta

cuspir já não pode o podre do mundo preso na garganta

e o podre do mundo é apenas uma punheta no meio da noite

a praça dorme envolta de sombras de árvores murchas

ressoam tambores pelas ondas do rádio

invadiram meu sonho quando cortaram as jabuticabeiras

a menina da janela sorriu quando eu passei

há locomotivas apitando na curva acordando os mortos

meu avô sobe a lenta ladeira tossindo a manhã

acordes de sonata ao luar pela rádio nacional

campeonato de bolinhas de gude à sombra do ora-pro-nobis

a bola de meia esgarça e desgraça os pés

a merendeira tem apenas um pedaço de pão com margarina

um dia cantávamos o hino nacional e o sol se punha

ao longe como algo inútil e completamente sem sentido

alguém desejou que o pássaro na gaiola se calasse

e esse alguém era meu irmão bêbado enlouquecido

porque seu filho estava muito doente e meu padrinho

chamou-me de lado e me deu um exemplar dos lusíadas

a rádio tocava apenas música clássica na sexta-feira

quando as matracas conduziam um cristo morto

as ruas tortas iluminavam-se à luz da lua cheia

e eu contava quantas estrelas havia nas três marias

subia a ladeira para a poesia quando anoitecia

escrevia poemas que ninguém nunca iria ler

ao vento do tiro de canhões que não troaram

escrevia tangos e canções de etéreos mistérios

ria às bandeiras despregadas dos mistérios da noite

porque a noite era apenas o pretexto da poesia

memória é isto uma pipa solta em tarde de agosto

aos olhos às vezes tristes de minha mãe

e o rio que lavra as palavras já não corre como antes

porque a memória só traz o que deve não o que conta 







29.12.2018

(Ilustração: Lavras/MG - foto antiga)

Nenhum comentário:

Postar um comentário