ladrem os cães dentro da noite densa
queimem as lamparinas o querosene barato
minhas narinas se cubram de negra fuligem
maria clara me aguarde no portão e chore
os soldados do tiro de guerra marchem pelas ruas
o dia da pátria se cubra de um véu negro
ao som dos tambores que soam nas montanhas
à espera dos gritos de horror que ainda não ecoam
o presidente deposto coroe as virgens violadas
aos pés do santo do altar-mor da igreja matriz
de santana e ouça a confissão de pecados imberbes
o piano que soa pela noite complete o nevoeiro
os sons da marcha batida no pátio do colégio
avencas nos barrancos do riacho podre o areal
do barranco do campo de futebol o negro
que pisa devagar no chão de pó e pedra
morreu tão cedo sem que soubéssemos o mal
pisava em ovos e o avião que decola ao vento
levava a certeza de sonhos encurralados
mangueiras em flor e o vidro corta a carne
o sangue escorre no grupo escolar a tabuada
não sei não sei quanto é nove vezes oito
a bola de meia o ora-pro-nobis cheio de espinhos
uma noite mágica sob o corpo do amigo que voa
depois o concerto do jovem pianista premiado
o vento castiga as ondas da rádio nacional
o cantor solta a voz ao meio dia num boa noite amor
marinete se vai num dia de sol e choro
não há mais figurinhas nem gibis do tarzan na selva
macacos me lambam me mordam me fodam
o carpete do salão de bilhar a lua que brilha no céu
as putas dançam no cabaré infecto do fim da rua
a noite estrelada conta com o brilho das três marias
o poço onde mergulha o sonho não tem mais fundo
o cemitério contorna em pedras o mistério da vida
a hóstia consagrada tem gosto de trigo e água benta
cuspir já não pode o podre do mundo preso na garganta
e o podre do mundo é apenas uma punheta no meio da noite
a praça dorme envolta de sombras de árvores murchas
ressoam tambores pelas ondas do rádio
invadiram meu sonho quando cortaram as jabuticabeiras
a menina da janela sorriu quando eu passei
há locomotivas apitando na curva acordando os mortos
meu avô sobe a lenta ladeira tossindo a manhã
acordes de sonata ao luar pela rádio nacional
campeonato de bolinhas de gude à sombra do ora-pro-nobis
a bola de meia esgarça e desgraça os pés
a merendeira tem apenas um pedaço de pão com margarina
um dia cantávamos o hino nacional e o sol se punha
ao longe como algo inútil e completamente sem sentido
alguém desejou que o pássaro na gaiola se calasse
e esse alguém era meu irmão bêbado enlouquecido
porque seu filho estava muito doente e meu padrinho
chamou-me de lado e me deu um exemplar dos lusíadas
a rádio tocava apenas música clássica na sexta-feira
quando as matracas conduziam um cristo morto
as ruas tortas iluminavam-se à luz da lua cheia
e eu contava quantas estrelas havia nas três marias
subia a ladeira para a poesia quando anoitecia
escrevia poemas que ninguém nunca iria ler
ao vento do tiro de canhões que não troaram
escrevia tangos e canções de etéreos mistérios
ria às bandeiras despregadas dos mistérios da noite
porque a noite era apenas o pretexto da poesia
memória é isto uma pipa solta em tarde de agosto
aos olhos às vezes tristes de minha mãe
e o rio que lavra as palavras já não corre como antes
porque a memória só traz o que deve não o que conta
29.12.2018
(Ilustração: Lavras/MG - foto antiga)
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