29 de dez. de 2021

estranhos

 




estranhos num tempo estranho

trepam como gatos vadios

pelos becos escuros

agonizam seus orgasmos

nos trilhos retos de trens elétricos

brincam pelas matas ao som dos grilos

tosam seus pelos nos fornos siderúrgicos



são apenas estranhos num tempo estranho

espantalhos em campo de milho

braços abertos um para o outro

esquecidos agora de todos os antigos folguedos

a murmurar ao vento seus vazios segredos



19.6.2021

(Ilustração: escultura de Javier Marín)


26 de dez. de 2021

estranho olhar

 


 



pelos campos viceja o azevinho

enquanto no meu quarto a noite

enche o copo e o meu corpo de vinho

e a saudade bate o seu açoite

no peito ferido de estranhas paixões

cobrindo de sangue o pelourinho

onde deixo exangues impressões

de um tempo de luz e pavor

das noites e pernoites de desamor

entre pústulas de gozos esfomeados

no delírio torpe de meus espantos

no fetiche dos teus encantos

na cruz de fogo de teus abraços

enquanto nos campos o azevinho

decora de cores e vinho

o estranho olhar que tece os laços

da minha vida como a rede

que prende meu destino para sempre

na fogueira que arde sob a trempe

e com estrépito projeta na parede

a sombra do meu desejo perdido nas trevas

pelo olho com que me olhas e me entrevas



4.9.2021

(Ilustração: Alyssa Monks)

23 de dez. de 2021

estranha ferida

 



quero o silêncio do último canto do grilo

quero o silêncio do desabrochar da pétala de rosa

quero o silêncio do último suspiro

da corda de um violino na última nota do concerto

quero o silêncio do ponto no final de uma trova

quero o silêncio da lua nova

quando eu possa sozinho dentro de mim

exsudar de meus olhos em gotas de alecrim

o desejo de que um dia essa lua e as estrelas

surjam no céu das minhas tardes de espanto

e quando eu pudesse vê-las

através do meu pranto

que essas lágrimas dissessem de cada dia da minha vida

em que não pude mitigar

em que não pude curar

dentro do meu peito esta estranha ferida



2.11.2021

(Ilustração: Oswaldo Guayasamín - prisionero, 1949)



20 de dez. de 2021

estio

 






espero teus beijos como a terra seca espera a chuva

na manhã de qualquer primavera cheia de espantos



o desejo bate na vidraça da janela e quebra as asas

se tu não vens para fazer jorrar de novo a seiva

nos meus braços ressequidos



não haverá prímulas e avencas nos meus trópicos

não haverá sementes no meu chão crestado

se os teus beijos não choverem húmus

que alimentem dos meus desejos a espera

e tragam o tempero exato para a minha flor exausta

colorir outra vez de vermelho

o cair da tarde desencantada dos teus mistérios



sou teu deserto a esperar gotas mágicas

ainda que amargas

para o tronco seco ao bico do pica-pau



que se abram asas para o meu desespero voar

para trás dos horizontes

cruzar o arco-íris

e deixar no fundo do lago

os ossos inúteis dos corpos ressequidos



que se dispam de sonhos as tuas asas

e voem no silêncio dos ventos alísios

que chovam os teus beijos na pele arrepiada

a fazer renascer minhas esperanças imateriais

e declarar enfim que meu estio

findará no renascimento das águas do teu rio





25.4.2021

(Ilustração: Jindrich Styrsky - marriage, 1934)

17 de dez. de 2021

espanto

 



para que o espanto

seja o grão que alimenta

a vida

semeia-se o pranto

para colher a pimenta

ardida



nos olhos o futuro brilha

- onda que tudo arrebata

e no meio da tempestade a ilha

é porto seguro do tédio que mata



para que o espanto

seja oxigênio que se respira

não deixes que o canto

se torne a mentira

que se canta no dia a dia

- na manhã que se inicia

ergue o braço e inspira

o ar da esperança

busca a luz da verdade

não temas a mudança

que logo a liberdade

- sol imorredouro

será nosso tesouro



que seja o espanto

a erguer o seu canto

que seja nosso guia

para um novo dia




8.9.2021

(Ilustração: James Ensor - masks looking at a  tortoise - 1894)

14 de dez. de 2021

escolha (poema com pós-escrito inútil)

 






quando eu era jovem eu fui velho

agora que sou velho eu sou jovem

mas o corpo não sincroniza uma idade com a outra

não adianta ser isto ou aquilo

quando o jovem que se vê um velho

não viveu porra nenhuma

não adianta ser isto ou aquilo

quando o velho que se vê jovem

não tem no corpo porra nenhuma de vigor



(o exato sentido disto ou daquilo é ser o que se é sem correr atrás de ventos que não movem moinhos quando os moinhos não estão com suas pás na direção correta)



talvez seja besteira

talvez seja bobeira

pensar uma coisa e sentir outra

ou sentir o que não se é

o sentimento não muda a realidade

nem a realidade matura o sentir



ser apenas o que se é

talvez seja o elixir que está na taça da vida de cada um

e bebê-lo seja a única escolha



o pós-escrito inútil:

derramá-lo (ao elixir) é buscar o espanto

e nem sempre o espanto da vida

consegue trazer vida a um coração machucado




21.11.20121 (São Vicente / SP)

(Ilustração: escultura de Franz Xaver Bergman 
(or Franz Xaver Bergmann) - 1861–1936) 

11 de dez. de 2021

época da inocência

 





relendo edith wharton



numa sociedade convencional

as regras são muito claras

para o bem ou para o mal

à jovem a quem te declaras

nunca dirás que em ti se disputa

um sentimento de força tanta

que te leva a amar uma puta

mas te casas com uma santa



8.3.2021


(Ilustração: Berthe Morisot - devant le miroir -1890)


8 de dez. de 2021

epifania

 


sonhou e desejou tanto o poeta

uma epifania

que o tornasse um grande esteta

lido e apreciado por toda gente

que um dia

assim de repente

lhe surgiu

como um raio que fulgiu

no meio da noite e da escuridão

a musa da poesia

supreendentemente rota e rasgada

quase nua e mal tratada

bem no meio da pandemia



assustou-se o poeta

com tal visão sem sentido

já que tanto sonhara

já que tanto desejara

uma bela inspiração

uma jovem alegre e de belo porte

que aquela aparição

pareceu-lhe muito mais a morte

do que a esperada poesia



pensou bem por que teria

sido o seu desejo enganado

por tão vil patifaria

e não encontrando solução

pensou e pensou e como era um poeta

um poeta que nunca dizia não

abraçou enfim a musa feia e fedida

nos seus rotos trajes de mendiga

lambeu-lhe até mesmo uma e outra ferida

do seio murcho e da face encardida



ajoelhou-se a seus pés e pediu

que aquela pobre e velha senhora

de musa da poesia travestida

acendesse de novo o seu desejo

mesmo sem qualquer epifania

e que fosse sem nenhum pejo

a partir daquela hora

a sua companheira e a sua alegria

já que se resignava

como sua musa velha e feia sugeria

a ser um poeta de pobre poesia



seu desejo a musa logo atendeu

e partir daquele dia

o pobre poeta muita poesia escreveu

mas nunca ninguém jamais o leu





29.9.2020

(Ilustração: Aleah Chapin)


5 de dez. de 2021

emoções

 





quando não se tem mais nenhuma escolha

é preciso que furemos a bolha

que aspiremos o ar de volta aos pulmões

para sentir da montanha o suspiro matinal

arrostar as emoções

montar num foguete para o espaço sideral

lançar nossos espinhos como faz o ouriço

correr atrás do sonho encolhido no cipoal

de desencantos que nos maltrata

porque só nós sabemos o que é isso



5.5.2021


(Ilustração: Leonor Fini, 1960)

2 de dez. de 2021

em busca de ouro

 





se tu me lavras

- e escalavras

em busca de ouro

dou-te o meu desdouro



tudo o que faço

é isto – amar o laço



se te toco

e se te provoco

é para que tu te aguces



e se me deixo lavrar

e escalavrar

é para que tu te debruces

sobre minhas lavras

e escalavres as palavras

que de lá podes tirar



porque não há ouro nem prata

só palavras e dor que não se acalma

nas minas dentro dessa lata

dessa lata de lixo que é minha alma



30.10.2020

(Ilustração: Edvard Munch)