31 de mai. de 2023

teatro em ruínas

 



tenho dentro de mim um teatro em ruínas

onde o destino me pregou todas as peças que sempre quis

nenhuma delas com sucesso de público ou de crítica

vistas apenas por mim e uns poucos espectadores

que nunca aplaudiram ao final do espetáculo

sempre interrompido antes do segundo ato

diante da mediocridade das dores de amores ali representadas



mesmo quando me vestia de palhaço

era sempre o clown triste e sem qualquer graça

gargalhando para mim mesmo diante da plateia vazia

quantas vezes chorei lágrimas de alvaiade

sozinho no meu camarim

perdido o tempo da comédia

não chegando ainda o tempo da tragédia



quando as luzes da ribalta acendiam

dançava comigo mesmo o tango angustiado

da minha solidão mais profunda



mesmo quando insistia com algum pretenso amigo

que me fosse ver no palco

[mesmo que se eximisse de me aplaudir – não me importaria]

recebia apenas a promessa vazia e nunca cumprida

com um vago sorriso de desdém nos lábios

que diziam uma coisa

enquanto lia nos olhos o seu desprezo e meu vexame costumeiro

enquanto ruía em mim todo o urdume

e o palco desmanchava-se roído pelos cupins



hoje o que contemplo dentro de mim

esse teatro em ruínas desabado sobre os meus patéticos espetáculos

descubro enfim que a vida só reserva o som e a fúria do talento

para uns poucos que vendem corajosamente a sua própria vida

para iluminar a vida de centenas de personagens

que só agem e se movimentam e sentem e sofrem

ali naquele palco absurdo

à frente de plateias atentas e espantadas

com o fato de que aquele ser que ali está – ator ou atriz –

arruinou dentro de si o seu próprio teatro da vida

para levá-los – aos espectadores – ao sonho impossível

de entender a si mesmos ao aplaudir suas apresentações ao final

de espetáculos escritos pela mão inelutável da morte

a morte que transforma em ruínas dentro de nós o teatro de nossas vidas

antes do ato final





16.3.2022

(Ilustração: Baile de máscaras - Verdi)

28 de mai. de 2023

tatuagem

 




no angu que borbulhava

na panela de ferro redonda

sobre a trempe do fogão a lenha

havia o calor mais quente

do sorriso de minha mãe

e quando no prato

o creme amarelo se misturava

ao branco do arroz

e ao moreno do feijão

a pequena coxa do frango

tecia na minha boca urdumes de beijos

que outrora num tempo sonhado

seriam de novo o alimento da vida

mas o crepitar da madeira

cozinhando o fubá de moinho d’água

deixou para sempre na minha memória

lembranças de mãe

que às horas amargas adoça como a sombra

de um beijo nos lábios da mulher amada

e essa lembrança me consome dia e noite

como o suspiro de horas mortas

que arrepia o desejo

e marca no meu rosto

a tatuagem de uma saudade

de angu cozido na trempe de um velho fogão a lenha



20.6.2021

(Ilustração: minha mãe e eu aos 17 anos)

25 de mai. de 2023

tarde demais

 




despejei de minha memória até a última gota

todo o sumo amargo de seu desprezo

restou dentro de mim o vazio de sua sombra

no tanto de angústia acumulada na poeira do tempo

(e a gasta metáfora me satisfaz por me lembrar

que você é poeira do meu tempo de menino)

e essa angústia – mesmo pó – ocupava em minha mente

um espaço não desejado que nem eu mesmo pensei que existia

agora não sei mais se desejei um dia

que você me visse e me quisesse como filho

ou me deixasse como testamento

um gesto – um olhar – um toque – um deus te abençoe

aquilo que da pele e da mente nunca sai

- agora – agora o tempo não há mais e não há mais

qualquer possibilidade de arrependimento

- do seu arrependimento – pai



28.7.2021

(Ilustração: Paul Bond - Sins of the father)

22 de mai. de 2023

sonhos de Maquiavel

 





sonhei com Nicolau Maquiavel

(era ele além de escritor e filósofo

um renomado escultor da velha Itália)

levou-me a seu ateliê para contemplar

como esculpia sua nova obra – um espanto –

disse-me ele – para futuras gerações



entre tantas peças e mesas e manivelas

bustos mal-acabados de antigos poetas

pedaços de príncipes e reis destronados

e toda uma tralha estranha e suja

lá no canto do cômodo um monte de barro

um monte de barro feio e fétido



do barro – disse-me ele – faço a obra-prima

não de mármore nem de pedra dura

do barro mole que se amolda às mãos

e fez-me pegar e sentir a massa obscura

que cheirava mais que mil chiqueiros

putrefata massa amorfa e fedorenta



– fede que nem chiqueiro – meu príncipe

reclamei com maquiavel tapando o nariz

– fede que nem peido de demônio – disse

o escritor dublê de escultor – e riu-se

gargalhou mesmo do meu espanto

mexendo um pouco no barro nojento



– se obra-prima vai ser – eu comentei –

só se for para as pocilgas reais enfeitar

pois qual rei ou qual potentado

irá com tal monte de merda de capeta

seus salões atapetados enfeitar

e os narizes da nobreza desafiar



(nem mesmo aquele escultor que apresentou

como obra-prima – um penico – tanto ousou)



– de merda de porco será meu príncipe

a obra-prima de meu engenho e arte

e não se preocupe meu amigo com o cheiro

misturas secretas para a liga eu tenho

tornarão cheiroso e formoso o capitão

para muitos que nele se espelharão



dito isso mexia e remexia a merda de porco

as mãos hábeis do escultor maquiavel

acrescentando líquidos e sortilégios

que sua mente febril conhecia

e pelo aposento cada vez mais rescendia

o cheiro do monte de merda de porco



(enojado daquilo tudo até tentei acordar

mas ao cabo a curiosidade me fez continuar)



já a massa fervilhante e fedorenta tomava

pouco a pouco os ares e as formas humanas

e maquiavel maravilhado com a própria obra

dizia coisas inteligíveis e citava antigos esconjuros

e eu ali a contemplar o nascimento – não da pedra

mas de um monte de merda – de um novo príncipe



sim meus amigos e súditos da velha Itália

dizia-me maquiavel que sua obra-prima

não iria precisar da martelada de Michelangelo

assim que estivesse pronto para o mundo

para o mundo sairia andando como gente

por artes e artimanhas de antigos feitiços



e de fato feio e duro e fedorento lá estava

o produto final das mãos de Maquiavel

um sujeito estranho e mal fardado

nada tinha de sua época – o século XVI

embora me parecesse à primeira vista

já tê-lo visto em sonho ou pesadelo



– meu caro escultor e também filósofo

que sujeito é esse que apareceu do barro

(a pergunta que não se calava eu fiz)

mas maquiavel com sua cara de Nicolau

riu de mim e respondeu – não é herói

de meu tempo – meu caro – mas do seu



– que herói é esse que tem cara de vilão

(meu espanto lhe arrancou gargalhada)

– vilão e além de tudo um sujeito ignaro

que vai dar muito trabalho no seu tempo

e você meu caro poeta que se espanta

nem vai reconhecê-lo por seu faro



realmente já não fedia tanto o sujeito

depois de todo o jeitoso preparo

e o pior é que me pareciam familiares

o rosto a pose o jeito bem militares

então acordei e percebi num estalo

– da bosta criara Maquiavel o Bolsonaro





12.2.2023

(Ilustração: Romero Brito)

 

 

 

 

 

 

 

 

19 de mai. de 2023

sonho que voa

 






à noite sonhamos os sonhos que não escolhemos

acordados sonhamos os sonhos que queremos



as armadilhas da noite se desfazem quando acordamos

as expectativas do dia distanciam-nos do que sonhamos



a vida pode ser cheia de som e fúria como disse o bardo

e cada sonho que voa sem destino é mais um petardo

vindo de um tempo no qual guardamos nossa sensibilidade

para destruir o presente e da vida qualquer possibilidade





13.9.2019

(Ilustração: Piet Mondrian - árvore vermelha, 1908)

16 de mai. de 2023

sombra triste

 



no meio da noite

numa noite de inverno

a sombra triste

que em mim habita

senta-se diante de mim

para uma conversa sombria



sou pouco avesso a confissões

mas ouço o que ela quer

- a sombra triste que saiu de mim -

e respondo-lhe que sim

que me pesa às vezes o silêncio

dos cômodos vazios da velha casa

e ela – a sombra triste –

balança a cabeça em concordância

pois acompanha por todas as noites

meus passos lentos

e meus silêncios sombrios



levanta-se então da velha cadeira

e como a sombra triste que é

retorna ao aconchego de meu peito

onde há muitos anos reside

e de onde me vigia




26.6.2022

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

13 de mai. de 2023

O DIABO DISSE...

 


... porque os anos cinqüenta rompiam nas ondas do rádio, a marchinha martelando minha cabeça – “pega o retrato do velho/ bota no mesmo lugar/ que o sorriso do velhinho/ faz a gente trabalhar” – mas eu não sabia quem era o velho, ainda cheirava a cueiros, como se dizia, no alto de meus cinco anos, eu não sabia que o sorriso do velho se apagaria alguns anos depois e deixaria transida uma nação, e o rádio era o tênue contato com o mundo, um mundo misterioso que vinha em ondas hertzianas a povoar minha imaginação através de vozes, sons e músicas que saíam aos borbotões daquela caixa preta sobre a cômoda, em torno da qual os adultos – minha mãe sempre cosendo uma bainha ou arrematando um vestido, meus irmãos bem mais velhos e alguns poucos vizinhos – se assentavam com olhos de futuro e ouvidos sonhadores e eu ficava ali, ao redor daquelas figuras reais, sozinho comigo mesmo, a viver com amigos imaginários os sonhos e folguedos de criança, e acho que foram esses amigos que me socorreram no dia em que as chamas da chaminé de estopa do trenzinho de caixa de fósforo pularam para a minha perna e, durante seis meses, imobilizado numa cama, tentava entender como o cheiro tão bom da gasolina se transformara em tanto sofrimento e pudera fazer estrago tão grande, e minha mãe, para ter um pouco de sossego, enquanto pedalava noite a fora a velha máquina de costura, deixava ligada o dia inteiro a caixa preta que povoava meu quarto de carnavais, de teatros absurdos e de fogueiras de são joão, e ali, a ouvir as vozes que pareciam vir do além, de terras que eu não sabia que existiam, entre sonhos e brinquedos, no espanto de uma dor que doía como o cão, na lenta percepção de dias cada vez mais curtos, o rádio materializava em meus ouvidos nem sempre atentos um conhecimento tão distante de mim, um mundo entrevisto apenas entre as sombras da imaginação, reduzido aos limites daquela cidadezinha perdida no sul de minas e, então, numa noite de quase inverno, já fria e triste, devia ser maio, pois minha mãe redobrava suas rezas e suas costuras, apertando no peito a fita azul das filhas-de-maria, as ondas do rádio trouxeram, como um redemoinho de medo que virou pavor, pavor que se transformou em pesadelos e pesadelos que se cristalizaram em noites insones, a notícia de que, ali, bem perto, na cidade vizinha, ocorriam eventos extraordinários, e havia um padre, e havia rezas e preces atemorizadas, e havia um povo à noite escondido em suas casas, e havia um exorcista, que o demônio, o demônio em pessoa estava aprontando das suas e se apoderara do corpo de um inocente e expelia pela boca de um cristão profanas profecias e loucos impropérios e eu ouvia aquilo e meus pêlos arrepiavam e eu não dormia à noite pensando que o diabo estava tão perto e ele podia a qualquer momento vir para o meu quarto, quantas desobediências à minha mãe e quantas palavras feias eu tinha na boca e o diabo estava tão perto, tão perto, e um dia a voz grave que vinha do rádio avisou que o diabo estava ali, que o diabo iria falar, uma mensagem que podia mudar tudo, mudar o quê, eu pensava, e eu sofria, e eu arrepiava de medo em minhas febres noturnas e chorava de medo da injeção e de medo do que o dianho, o cão, o coisa-ruim, iria dizer que pudesse mudar tudo ... ah, eu não podia esperar para ouvir, eu não agüentava esperar, tão longa a noite e tão fria e tão tarde, e eu tinha que dormir e crescer para uma vida que se alongava à minha frente, isso nos inícios dos anos cinqüenta e eu era muito pequeno e minha cabeça não estava pronta ainda e não podia nunca entender dessas artes demoníacas que vinham através do rádio e eu pensava – tão inocente eu era – que a voz dele, a voz do diabo, devia ser diferente de todas as vozes e eu sonhava todas as noites um pesadelo em que o diabo, que estava ali, na cidade vizinha, já se aproximava de mim, caminhava para mim, eu sei que ele estava vindo e sei o que ele disse, sim, eu sei, bem lá dentro de minha cabeça, hoje mais branca ainda que a cabeça de minha mãe que, aos trinta anos, depois de um grande desgosto, amanheceu assim de repente numa nuvem de primavera, eu sei que devia saber o que ele disse, oh, minha culpa, minha máxima culpa, eu não consigo me lembrar, era inverno, ou quase inverno, eu queria remir minha culpa, lembrando, e queria de volta a fé perdida, entendendo, entendendo como um cheiro tão bom quanto o da gasolina pôde fazer estrago tão grande e entendendo por que o velhinho cujo sorriso prometia fazer a gente trabalhar, alguns anos depois, deu um tiro no peito e deixou transida uma nação, mas agora que tudo já passou eu tenho certeza de que o longo inverno sobreveio porque, naquele começo dos anos cinqüenta, quando eu tinha apenas cinco anos e uma vida pela frente, ouvi e não consigo me lembrar o que o diabo, que estava na cidade vizinha, tão longe de meus sonhos e tão perto de meus pesadelos, num fim de outono e começo de inverno, quando eu tinha apenas cinco anos e me embalava nas ondas sonoras do bom e velho rádio, buscando mitigar as dores de uma perna ferida, quando eu tinha apenas cinco anos e não podia nem ao menos imaginar que não ia nunca mais poder votar no velhinho da canção, e eu não consigo, não consigo me lembrar o que, afinal, o diabo disse...





Quinta-feira, 3 de outubro de 2002

(Ilustração: Francisco de Goya- the spell)


(Você pode ouvir esse texto, na interpretação do autor, neste link de podcast:

10 de mai. de 2023

solitária mente

  




cabisbaixo vou pisando os meus sonhos

pelas ruas de meu bairro

conversando com as minhas musas – ainda existem musas?

alinhavando nos meus passos os sonhos mal costurados

de passados das penumbras renascidos

solitária a minha mente vaga

elaborando versos que não escreverei jamais

beijando lábios que não beijarei jamais

abraçando abraços que não terei jamais







o tempo nos passos não conta o rosário de orações

que meu pensamento ateu não mais remói

porque as igrejas barrocas do sol a pino

são sombras rudes de seres tão solitários como eu

enterrados vivos nas ruas desta grande cidade



piso e repiso lembranças do meu eu de um tempo morto

quando as pedras da calçada queimavam meus pés

numa cidade perdida no tempo da memória

e o tempo da memória é um tempo inconsútil

roto embora pelas pedras do caminho



sou agora apenas eu e minhas sombras

sou agora apenas um poeta que não crê mais em nada

sou agora apenas um poeta que caminha e pensa

sou agora apenas um poeta que ainda caminha e sonha

sonha solitário

a mente perdida nas montanhas de outrora





22.10.2021

(Ilustração: Marianne von Werefkin - 1860–1938)



7 de mai. de 2023

situação delicada

 


lagartixa – você

a subir pelas paredes

goteira de chuva – eu

a escorrer parede abaixo

essa a triste situação

a que o tempo nos trouxe

mas espero em breve

galgar contigo os degraus

da escada de jacó ou qualquer outra

que nos grude de novo no espasmo

de um longo e prazeroso orgasmo

 


22.12.2021

(Ilustração: Apollonia Saintclair: le sphinx, the unanswered question)


4 de mai. de 2023

Sinfonia de Mahler

 




Para nós – humanos – a noite

Chora mais mistérios

Que uma sinfonia de Mahler



.............................................



Não há felicidade no brilho das estrelas

Há apenas para os nossos olhos mortos

O brilho das estrelas

No espaço profundo

Profundo o espaço profundo



.............................................



Que girem anéis de planetas distantes

Em torno de gigantes planetas distantes

O sono do humano é profundo

Profundo o espaço em volta

Em trilhões de anos luz



.............................................



Toca-se Mahler em sons profundos

De mistérios da vida e das galáxias

Pensa o humano consigo

Na solidão da solidão de sua voz inútil

Que uma sinfonia de Mahler toca o abismo profundo

O abismo profundo da alma do ser humano

A alma deslavada do ser humano que nunca teve alma

Nem abismos onde mergulhe e se afogue

Mesmo que ouça mil vezes a sinfonia de Mahler

Mesmo que olhe mil vezes o abismo de Nietzsche



.............................................



Para nós – humanos – os mistérios da noite

São apenas mistérios da noite

E se pensamos nos mistérios da noite

Pensamos apenas nos nossos próprios mistérios



.............................................



E não é preciso ouvir Mahler

Para concluirmos que nós – os humanos – ainda que

Pensemos em nossos mistérios

Não temos mistérios nenhuns

Temos apenas a vida a ser vivida

E a música de Mahler

Que nunca deveria ter sido ouvida



12.3.2023

(Ilustração: Max Oppenheimer (1885-1954): 
Gustav Mahler conducts the Vienna Philharmonic)





1 de mai. de 2023

sina

 



podia um dia ter aprendido

a desenhar

para com o fantasma voador dançar com pigmeus

e depois prender piratas nos mares do caribe



podia um dia ter aprendido

a cantar

e com os três tenores ter formado um quarteto

viajando por mares nunca dantes tão cantados



podia um dia ter aprendido

a tocar um violão ou um violino

ou mesmo um simples tambor

para encher de sons a minha própria vida tão surda e tão vazia



podia um dia ter aprendido

a dançar

ou quem sabe até mesmo ter aprendido

a pular

como os atletas olímpicos e paralímpicos

para dançar e pular sobre nuvens de aluguel



podia ter um dia aprendido

a pintar

misturar cores e sentimentos

sobre o linho ou sobre o papel

para estarrecer o mundo com moinhos de vento

e girassóis e céus de todas as cores



mas o tempo era torto

(o meu tempo foi sempre assim – torto)

por isso hoje escrevo poemas

para transpor em versos minha vida e meus problemas

só para que não me sinta morto



21.3.2023


(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau - Dante e Virgílio no inferno)