29 de mar. de 2024

coração vagabundo

 



tenho um coração vagabundo

de cão vadio de rua

a ganir pelos becos do mundo

esquecido de que há no céu uma lua



corre ele das pedras que lhe jogam

e atravessa os cruzamentos da vida

ignorando todos os que logram

pedir que que ele não mais agrida

os fascistas e todos os prepotentes



meu coração vagabundo é o cachorro

que odeia esses canalhas e mostra os dentes

aos que se escondem atrás do morro

para atirar bombas incendiárias

sobre o povo que pede aos presidentes

condições de vida menos ordinárias




10.11.2022

(Ilustração: Anita Malfati - as lavadeiras, 1920)




(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereços de podcast:

26 de mar. de 2024

contrastes

 





lá fora é assim:

foge a lua ao ziguezague que mata e aflige

quando o sangue suja o beco



aqui dentro é assim:

fica a lua a flutuar na nuvem de lembranças

quando o beijo adoça a noite



passeio lá fora pelas savanas da morte

vendo os tigres e os leões rosnarem para tigres e leões

enquanto no chão rasteiro rastejam seres ignaros e ignorados

mergulhados no sangue ignóbil

com seus andrajos e suas pústulas

seres exangues e desesperançados

carne moída para a comida fácil de leões e tigres



mergulho em mim buscando águas plácidas

e mesmo em piscinas azuis de redemoinhos loucos

por onde rodo e rolo em loucas memórias

sou em mim mesmo meu porto de maré baixa

e não tenho pústulas nem rastejo exangue

pelos meandros de meus sofrimentos

e não sou carne moída de tigres nem de leões



pulo pela janela do entorpecimento e caio na luta febril

dos que buscam na fome a folha de alface da lata de lixo

escorregam os ideais de igualdade pelo ralo do esgoto

pululam os ratos mordendo narizes e bocas pálidas

perdido o direito de viver entre humanos rastejam

pelo espaço entre o olho vazado e a boca escancarada

mais podre que os dentes dos miseráveis abocanham-nos a todos

as fauces sempre famintas das engrenagens das máquinas de dólar



estou só dentro de mim olhando pela janela da minha esperança

e conjuro os encantos de jardins suspensos na tarde de calmaria

navego pelos mares de mim conduzindo o veleiro do desejo

e despejo os dejetos de minhas desesperanças no vazio do oceano

são meus olhos atentos os faróis de minha transnavegação

sinto em mim mesmo o sentimento do humano mais humano

de ser o caminho ainda que tortuoso para o cimo de minhas engrenagens

e a fome delas – das engrenagens – é que alimenta a visão do ódio do mundo



lá fora é assim:

eles juram a morte sobre os juros do dinheiro sujo de sangue



aqui dentro é assim:

juro de morte os assassinos das minhas noites mal dormidas



e tudo é assim:

apenas sonhos de campos de guerra ou campos de guerras de sonhos

matam-se apenas

matam-se





24.5.2022

(Ilustração: escultura de Matías Sierra - lector)

23 de mar. de 2024

contradigo-me

 



talvez eu compre um disco

do Alceu Valença

talvez eu assopre o cisco

da minha descrença

 

compreendo enfim – como andarilho –

que sou dentro de mim

o estranho sem qualquer brilho

a caminhar sem fim

pelas rotas das estrelas e das montanhas

e talvez nem seja

o dono das minhas lembranças estranhas

nem a mosca que adeja

em torno da lâmpada azul

– se penso em mim como caminheiro

não sei se vou ao norte ou ao sul

sou apenas um poeta sem dinheiro

 

por isso – embora seja minha crença

não crer em nada e ser um feiticeiro

não vou comprar o disco do Alceu Valença

 

2.7.2023

20 de mar. de 2024

conquistadores

 




quem sabe o presente seja

o presente que você deseja

quem sabe o futuro

seja o furo

no espaçotempo de um tempo

que não existe nem persiste

no passo lento do sopro do vento



quem sabe quem vem do norte

trazendo vida ou traçando morte

quem sabe das multidões

que lutam contra as erupções

de vulcões extintos



quem sabe das taças de vinhos tintos

erguidas ao som de canções

das rainhas loucas do século XVI

quando do porto secreto

inflava as velas ao discreto

anseio louco de cada vez

que a lua cheia

no sangue que jorrava da veia

o conquistador erguia a cruz da morte

soprando o vento que vem do norte




18.11.2021

(Ilustração: grafitti de Banksy - New York)

17 de mar. de 2024

concerto para violão

 





voo ao vento o violão

na noite o vinho tinto

claro que estou recolhido

ao espaço mínimo de meu quarto

o concerto para violão de

francisco mignone

na tevê – no último volume



lá fora o calor da primavera

que mal começa e já parece verão



curto com os olhos atentos

as mãos do violonista às cordas do violão

como se tocasse – ele o concertista –

as cortas rotas de meu velho coração



ah! as velhas metáforas do sentimentalismo

o coração como o pulsar absurdo de todo meu ser



desce sobre mim a névoa dos dias idos e repetidos

a estranha sensação de estar só no meio da multidão

quando não há em meu quarto mínimo

senão eu comigo mesmo

eu – multidão de vidas antigas

e talvez nem sempre devidamente revividas

eu – o poeta solipsista em sua / minha rede

a ruminar versos e reversos da vida

enquanto ainda há tinta em sua / minha caneta esferográfica



o mundo lá fora a regurgitar

pólvora e pó de penugens de pássaros

o poeta – eu? – a lembrar – ou não – falsos momentos

à luz do luar



sempre foi assim

a solidão

o vinho

e agora o violão

o violão em concerto para o seu / meu desconserto do mundo

os saltos de memórias

os intervalos de novelas

os gritos de gol

a euforia de momentos de outrora no sempre agora

afora os estertores de úmidos lamentos



se sofro – ou não – os meus versos reversos

não revelam

e o concerto de violão chega ao fim

e o seu / meu poema estica-se pela folha

e como todos os meus – também do poeta? – tormentos

não terminam nunca

jamais





23.9.2023

(Ilustração: Shabby Chic - the guitar man)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:


14 de mar. de 2024

companheira

 

 



na noite nem quente nem fria

quando lá fora povoa-se o mundo de espectros malnutridos

esgueira-se por sob o vão da porta a nuvem branca da amiga solidão



não sei se serei eu a envolvê-la em meus braços

- mesmo fluida e melíflua nuvem -

ou será ela a cobrir-me com sua nívea calma de noite nem quente nem fria



sei apenas que ela vem para povoar de prazeres incontidos

cada palavra de meus versos

e cada verso de meus poemas confessionais



entregamo-nos aos anseios recíprocos e somos um do outro

companheiros idealizados e ideais

para preencher compartimentos cheios de esperanças vazias



mas não de todo vazios nós estamos da lágrima

que derrete o gelo de nossos abraços fraternais



25.11.2021

(Ilustração: Leonor Fini - Woman Seated on a Naked Man 
(Femme assise sur un homme nu), 1942)

10 de mar. de 2024

epifania da solidão


 



na casa de minha tia o relógio de parede marcava o tempo

tiquetaqueando o lento passar das horas

nas paredes brancas e nas tábuas do longo assoalho de madeira encerada



o garoto pobre que ali dormia

quando o casal viajava

nada sabia daquelas longas noites

senão o prazer de uma casa melhor

e toda ela inteirinha para si

um quarto amplo e cobertas quentinhas

sobre um colchão macio



não vigiava o vazio da vida no tique-taque do relógio

porque a vida era cheia de aventuras

e de futuros imaginados ao som do velho relógio

seu monótono tiquetaquear de horas alongadas

nos macios sonhos de alongados sonos pelas manhãs preguiçosas



era um tempo de bem-te-vis e jabuticabeiras em flor

e pela noite de lua nova

os passos do menino ressoavam pelos corredores

da velha casa de seus tios viajantes



os bem-te-vis que gritavam para a tarde sonolenta quase noite

e as jabuticabeiras vestidas de noiva

que trocavam o botão nevado por pérolas negras de doce sabor

são hoje apenas pedaços de sombras

um falso tiquetaquear de vida

a bater em seu peito envelhecido



não há mais noites alongadas de sonhos e esperanças

não há mais sonhos a serem sonhados

não há mais jabuticabas explodindo na boca

não há mais bem-te-vis brigando pelas tardes

não há mais o velho casarão e seu relógio de parede



na noite da cidade grande

onde o matraquear do vento

traz apenas ruídos de motores

e vozes temperadas de angústia

o menino temperado pelo tempo

olha no espelho vazio a cabeça branca

e ouve de novo o velho tiquetaquear

não do relógio da parede da casa dos tios

mas dentro do peito o coração

na epifania final da minha solidão




5.5.2022

(Ilustração: Franz Krischke (1885-1960) - Old Clock)



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/25c1EULqnatMVxSmePtB77?si=6hbHzR4XQaOz-o94B9Et3g

8 de mar. de 2024

como dizia Cartola

 

 

noite de lua cheia

abro a janela

para fruir a energia que vem da lua

 

mas [plagiando Cartola] que bobagem

a lua não tem nenhuma energia

simplesmente a lua ilumina minha saudade

e o meu peito se enche de felicidade


 

2.12.2023

(Ilustração: Anna Pismenskova - a lua cheia em 31 de janeiro)




5 de mar. de 2024

cio

 




no telhado do meu desejo uma gata no cio

reflete nos olhos de espelho o brilho das estrelas fugidias



dentro da noite - esquecida do frio

por seus trejeitos de felina -

corre sua unha assassina

por minhas costas arrepiadas de espanto

traça caminhos leitosos de espuma e pranto



cada movimento lunar de suas pernas

aperta-me os rins e sou tragado para seus abismos

amantes enlaçados para sempre nas noites eternas

do universo fechado de nosso acalanto

placas teutônicas sob nossos corpos provocam os sismos

do gozo fatal refletido nos seus olhos de gata no cio



cai a chuva das estrelas distantes

transborda o rio

expele o vulcão a lava que nos encobre

e arrebenta o dique represado durante os anos de exílio e saudade

para terminar esse poema numa rima pobre

na explosão da nossa felicidade



19.10.2021

(Ilustração: Hannah Yata - Crazy Erotic Paintings)

2 de mar. de 2024

cidade negra


 


a cidade de trevas dentro da cidade de luzes

das tumbas abertas brotam miasmas

na noite da cidade negra surgem cruzes

e dançam nas ruas estranhos fantasmas

 

o diabo torceu o rabo em forma de tridente

e o passo fúnebre de tristes coveiros

pousou nos ossos e nas caveiras sem dentes

cantando osanas e fugindo dos desordeiros

 

descem sobre o lodo do rio podre

pirogas velhas comandadas por anhangás

para lançar maldições às casas de adobe

onde o branco sangra as veias da paz

 

das antigas guerras entre tribos canibais

são traços eternos e etéreos as trevas

que a cidade negra cobre com jornais

no compasso das procissões medievas

 

cidade negra onde troveja e os raios

partem as árvores que servem de calabouços

para que em todos os dias de todos os maios

mostrem vazios os operários os seus bolsos

 

mata-se a fome de quem nega a fé

com restos das mesas dos ricos

e o pobre caminha pelas ruas a pé

quase nu com seus trajos impudicos

 

pululam na cidade negra os desencantos

que a luz da cidade que brilha por cima

não espanta nem com muitos cantos

de missas horrendas que Anchieta anima

 

sonatas acompanham as solenes danças

de ninfas pálidas nos fétidos palacetes

balançam para cá e para lá suas panças

alcaides que juram crença aos cassetetes

 

os porcos que pastavam chá onde havia

um fundo de vale sujo que agora brilha

cheiram cocaína na noite escura e vazia

acendem com notas de mil sua cigarrilha

 

não me perco em seus becos ó cidade

que és negra como o fundo do universo

sei que tua lama a tudo e a todos invade

menos as rimas desse meu torto verso

 

4.9.2022


(Ilustração: Tito Fornasiero - Metropoli - São Paulo)