10 de mar. de 2024

epifania da solidão


 



na casa de minha tia o relógio de parede marcava o tempo

tiquetaqueando o lento passar das horas

nas paredes brancas e nas tábuas do longo assoalho de madeira encerada



o garoto pobre que ali dormia

quando o casal viajava

nada sabia daquelas longas noites

senão o prazer de uma casa melhor

e toda ela inteirinha para si

um quarto amplo e cobertas quentinhas

sobre um colchão macio



não vigiava o vazio da vida no tique-taque do relógio

porque a vida era cheia de aventuras

e de futuros imaginados ao som do velho relógio

seu monótono tiquetaquear de horas alongadas

nos macios sonhos de alongados sonos pelas manhãs preguiçosas



era um tempo de bem-te-vis e jabuticabeiras em flor

e pela noite de lua nova

os passos do menino ressoavam pelos corredores

da velha casa de seus tios viajantes



os bem-te-vis que gritavam para a tarde sonolenta quase noite

e as jabuticabeiras vestidas de noiva

que trocavam o botão nevado por pérolas negras de doce sabor

são hoje apenas pedaços de sombras

um falso tiquetaquear de vida

a bater em seu peito envelhecido



não há mais noites alongadas de sonhos e esperanças

não há mais sonhos a serem sonhados

não há mais jabuticabas explodindo na boca

não há mais bem-te-vis brigando pelas tardes

não há mais o velho casarão e seu relógio de parede



na noite da cidade grande

onde o matraquear do vento

traz apenas ruídos de motores

e vozes temperadas de angústia

o menino temperado pelo tempo

olha no espelho vazio a cabeça branca

e ouve de novo o velho tiquetaquear

não do relógio da parede da casa dos tios

mas dentro do peito o coração

na epifania final da minha solidão




5.5.2022

(Ilustração: Franz Krischke (1885-1960) - Old Clock)



Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/25c1EULqnatMVxSmePtB77?si=6hbHzR4XQaOz-o94B9Et3g

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