na casa de minha tia o relógio de parede marcava o tempo
tiquetaqueando o lento passar das horas
nas paredes brancas e nas tábuas do longo assoalho de madeira encerada
o garoto pobre que ali dormia
quando o casal viajava
nada sabia daquelas longas noites
senão o prazer de uma casa melhor
e toda ela inteirinha para si
um quarto amplo e cobertas quentinhas
sobre um colchão macio
não vigiava o vazio da vida no tique-taque do relógio
porque a vida era cheia de aventuras
e de futuros imaginados ao som do velho relógio
seu monótono tiquetaquear de horas alongadas
nos macios sonhos de alongados sonos pelas manhãs preguiçosas
era um tempo de bem-te-vis e jabuticabeiras em flor
e pela noite de lua nova
os passos do menino ressoavam pelos corredores
da velha casa de seus tios viajantes
os bem-te-vis que gritavam para a tarde sonolenta quase noite
e as jabuticabeiras vestidas de noiva
que trocavam o botão nevado por pérolas negras de doce sabor
são hoje apenas pedaços de sombras
um falso tiquetaquear de vida
a bater em seu peito envelhecido
não há mais noites alongadas de sonhos e esperanças
não há mais sonhos a serem sonhados
não há mais jabuticabas explodindo na boca
não há mais bem-te-vis brigando pelas tardes
não há mais o velho casarão e seu relógio de parede
na noite da cidade grande
onde o matraquear do vento
traz apenas ruídos de motores
e vozes temperadas de angústia
o menino temperado pelo tempo
olha no espelho vazio a cabeça branca
e ouve de novo o velho tiquetaquear
não do relógio da parede da casa dos tios
mas dentro do peito o coração
na epifania final da minha solidão
5.5.2022
(Ilustração: Franz Krischke (1885-1960) - Old Clock)
Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:
https://open.spotify.com/episode/25c1EULqnatMVxSmePtB77?si=6hbHzR4XQaOz-o94B9Et3g
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