26 de mar. de 2024

contrastes

 





lá fora é assim:

foge a lua ao ziguezague que mata e aflige

quando o sangue suja o beco



aqui dentro é assim:

fica a lua a flutuar na nuvem de lembranças

quando o beijo adoça a noite



passeio lá fora pelas savanas da morte

vendo os tigres e os leões rosnarem para tigres e leões

enquanto no chão rasteiro rastejam seres ignaros e ignorados

mergulhados no sangue ignóbil

com seus andrajos e suas pústulas

seres exangues e desesperançados

carne moída para a comida fácil de leões e tigres



mergulho em mim buscando águas plácidas

e mesmo em piscinas azuis de redemoinhos loucos

por onde rodo e rolo em loucas memórias

sou em mim mesmo meu porto de maré baixa

e não tenho pústulas nem rastejo exangue

pelos meandros de meus sofrimentos

e não sou carne moída de tigres nem de leões



pulo pela janela do entorpecimento e caio na luta febril

dos que buscam na fome a folha de alface da lata de lixo

escorregam os ideais de igualdade pelo ralo do esgoto

pululam os ratos mordendo narizes e bocas pálidas

perdido o direito de viver entre humanos rastejam

pelo espaço entre o olho vazado e a boca escancarada

mais podre que os dentes dos miseráveis abocanham-nos a todos

as fauces sempre famintas das engrenagens das máquinas de dólar



estou só dentro de mim olhando pela janela da minha esperança

e conjuro os encantos de jardins suspensos na tarde de calmaria

navego pelos mares de mim conduzindo o veleiro do desejo

e despejo os dejetos de minhas desesperanças no vazio do oceano

são meus olhos atentos os faróis de minha transnavegação

sinto em mim mesmo o sentimento do humano mais humano

de ser o caminho ainda que tortuoso para o cimo de minhas engrenagens

e a fome delas – das engrenagens – é que alimenta a visão do ódio do mundo



lá fora é assim:

eles juram a morte sobre os juros do dinheiro sujo de sangue



aqui dentro é assim:

juro de morte os assassinos das minhas noites mal dormidas



e tudo é assim:

apenas sonhos de campos de guerra ou campos de guerras de sonhos

matam-se apenas

matam-se





24.5.2022

(Ilustração: escultura de Matías Sierra - lector)

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