2 de mar. de 2024

cidade negra


 


a cidade de trevas dentro da cidade de luzes

das tumbas abertas brotam miasmas

na noite da cidade negra surgem cruzes

e dançam nas ruas estranhos fantasmas

 

o diabo torceu o rabo em forma de tridente

e o passo fúnebre de tristes coveiros

pousou nos ossos e nas caveiras sem dentes

cantando osanas e fugindo dos desordeiros

 

descem sobre o lodo do rio podre

pirogas velhas comandadas por anhangás

para lançar maldições às casas de adobe

onde o branco sangra as veias da paz

 

das antigas guerras entre tribos canibais

são traços eternos e etéreos as trevas

que a cidade negra cobre com jornais

no compasso das procissões medievas

 

cidade negra onde troveja e os raios

partem as árvores que servem de calabouços

para que em todos os dias de todos os maios

mostrem vazios os operários os seus bolsos

 

mata-se a fome de quem nega a fé

com restos das mesas dos ricos

e o pobre caminha pelas ruas a pé

quase nu com seus trajos impudicos

 

pululam na cidade negra os desencantos

que a luz da cidade que brilha por cima

não espanta nem com muitos cantos

de missas horrendas que Anchieta anima

 

sonatas acompanham as solenes danças

de ninfas pálidas nos fétidos palacetes

balançam para cá e para lá suas panças

alcaides que juram crença aos cassetetes

 

os porcos que pastavam chá onde havia

um fundo de vale sujo que agora brilha

cheiram cocaína na noite escura e vazia

acendem com notas de mil sua cigarrilha

 

não me perco em seus becos ó cidade

que és negra como o fundo do universo

sei que tua lama a tudo e a todos invade

menos as rimas desse meu torto verso

 

4.9.2022


(Ilustração: Tito Fornasiero - Metropoli - São Paulo)

 

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