29 de ago. de 2024

novas memórias

 




cruzei contigo o rubicão das memórias

– meu inefável amigo de asas de metal –

juntos caminhamos pelos campos de nuvens

juntos refizemos riachos de águas arrepiantes



somos – eu e você – os pés que buscavam alegrias

somos – eu e você – os sonhos que povoaram

nas noites frias de um inverno que não acabava

as angústias de tempos e desejos incontidos



hoje o rubicão de nossas travessias aladas

está recolhido ao centro da terra seca

como secas estão minhas memórias de outrora

quando voávamos acima das montanhas

e construíamos nossas vidas nas asas

de metal e sonho do seu paulistinha



29.1.2024

(Ilustração: Vitório Pereira Resende, 
a quem são dedicadas essas novas e sempre memórias; 
foto sem data)

26 de ago. de 2024

nostalgia

 





releio meus poemas antigos

pejados muitos deles de erotismo

encontro em seus versos abrigos

para meu atual pessimismo



penso em como era feliz e sabia que o era

ainda que percalços houvera

mas tinha no seu corpo o porto seguro

a abrigar meu passado e meu futuro



vazio hoje me encontro – vazio de mim

vazio de ti e sem qualquer esperança

de despejar algum dia esse vazio enfim

numa taça de desejo e de bonança



abandonado aos humores de minha má sorte

e pelos humores que não mais pulsam dentro de mim

esse desalento me faz pensar na morte

ainda que minha vida esteja longe do fim



sou – amada de tantos prazeres agora impossíveis –

o náufrago em mim mesmo no deserto da falta de desejo

se meus enleios por teu corpo pareciam incoercíveis

mortos estão hoje sem esperança de qualquer lampejo





27.6.2023

(Ilustração: Maria Bashkirtseva - autumn)

23 de ago. de 2024

nós humanos

 




às vezes me pego pensando: o que sou?

quem eu sou?

indígena, preto, pardo, branco, amarelo, incolor?

olho-me no espelho: sou bonito ou sou feio?

tenho cabeça, tronco e membros – como todo ser humano

seja homem, mulher ou qualquer sexo,

seja preto, branco, amarelo, pardo, incolor, colorido.

penso, sonho, sorrio, choro, amo, odeio,

sou solidário às vezes

indiferente outras vezes

bonzinho ou maldoso, olho torto para umas pessoas,

olho com amor para outras e até mesmo com tesão

beijo, abraço, faço amor, como, bebo, tomo banho,

tenho pele, ossos, pelos, cabelos,

fico doente de vez em quando,

falo besteiras e também verdades

e só tenho uma certeza nesta vida: vou morrer

- infelizmente para mim, claro –

assim como todos os demais seres vivos que habitam

esse nobre e belo e instável e terrífico e tantas outras coisas mais

planeta

e nele vivemos todos e nele sonhamos todos e nele morremos todos

então quando penso no que eu sou ou quem eu sou

sei apenas que sou humano

e não sei por que – sendo todos humanos – nós que

pensamos, sonhamos, sorrimos e temos na cabeça um cérebro

e somos diferentes de todos os demais seres vivos deste planeta

onde há lugar para todos viverem

onde há lugar para todos sobreviverem

onde há lugar para todos conviverem

eu não sei e nunca saberei por que

precisamos matar uns aos outros

em nome de riscos no mapa [as fronteiras]

em nome de deus ou de deuses que nunca vimos

em nome de ideias e ideologias estúpidas e reducionistas

em nome de coisas tão estúpidas

quanto pretensas diferenças entre nós



nós – os seres humanos – que criamos e inventamos tantas coisas

tantas – que não cabem num poema

que não cabem num livro

que não cabem numa biblioteca

que não cabem em lugar algum

mas cabem em nosso cérebro

esse cérebro que pensa e sonha e cria

nós – os seres humanos – que temos esse cérebro

que é a máquina mais perfeita da natureza

nós – os seres humanos – ainda somos tão bárbaros

que ainda não criamos nem inventamos uma verdadeira civilização





2.11.2023

(Ilustração: Marc Chagall - le paradis)

20 de ago. de 2024

nona sinfonia





Beethoven detona na noite o meu tédio

o vinho barato desce como néctar

o sonho flutua de novo no meu cérebro

o sangue que corre em mim fica mais puro

aromas de futuro emergem de meu peito



Beethoven detona na noite o desalento

a vida ganha impulsos de novidade

ninfas de tempos da inocência emergem

como gotas de bálsamo nos olhos secos

e o canto perdido encontra o pássaro

e o pássaro voa nas asas da música



Beethoven explode em mim novos desejos

no canto final da nona sinfonia





28.4.2023


(Ilustração: Kristina Milakovic, Beethoven)

17 de ago. de 2024

mendicidade

 



houve um tempo em que eu achava

que a felicidade fosse

a sobremesa de arroz-doce

com bastante canela em pó polvilhada

feita por minha mãe no fogão a lenha

e eu andava pelos matos e pelas ruas tortas

sempre descalço a me enfiar em qualquer brenha

atrás de passarinhos e frutas nas hortas

às vezes proibidas e muitas vezes inacessíveis

e isso era o que me fazia feliz

sem pensar que eram inatingíveis

os sonhos que sonhava acordado



a tal felicidade estava ali no colchão de palha

estava ali no jogo de futebol bem pegado

na pipa que mais alto voava e na malha

do tempo que se perdia esperando o vento

e foi o tempo perdido pensando na felicidade

que me deu a certeza de que tudo o que tento

em minha busca insana é na verdade

o encontro de mim comigo mesmo

no final de um poema escrito a esmo

onde não há nada além do que minha mendicidade



14.12.2022



(Ilustração: Edward Burne Jones - King Cophetua and the Beggar Maid)


VOCÊ PODE OUVIR ESTE POEMA, NA VOZ DO AUTOR, ISAIAS EDSON SIDNEY, NESTES ENDEREÇOS:

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14 de ago. de 2024

noite insone

 




nesta noite de fim de inverno

já quente o ar que prenuncia dias tépidos

possa talvez sonhar

sonhar acordado – bêbado de insônia –

com o silêncio dos canhões



não há corpos estraçalhados sob a minha cama

nem os noticiários da tevê ousaram mostrá-los

mas sei que eles estão lá

nos campos distantes – cobertos de entulho

ou sob os pianos mudos da nota dó coberta de pó

sei que estão a me espreitar

com seus olhos vazados voltados para o infinito

com seus risos escancarados à nossa indiferença



e a noite insone me consome

sinto mais que vejo ou sei que os passos de fantasmas

pisam tímidas flores de primavera

e penso apenas que tenho medo

muito medo dessa humanidade

que joga com a morte os dados viciados da vida



12.9.2023

(Ilustração: Francisco de Goya - shooting in military camp)

11 de ago. de 2024

noite de reis

 





delira o menino

é noite de reis



o cortejo ilumina

as pedras do caminho

e levanta a poeira

pelas ruas dos pobres



delira o menino

nessa noite de reis



a congada desata

visões de lonjuras

somente sonhadas

cabanas - baobás



dos negros rostos

de cada brincante

escorrem os rios

de áfricas leoninas



ao passo marcado

ao som dos tambores

giram estandartes

na dança dos santos



alucina o menino

pela noite de reis



seus olhos abrasam

e a rua iluminam

ao repique da viola

ao bailado das cores



insuflam-se ao vento

as saias rodadas

máscaras que dançam

misturam-se às cores



espreitam no céu

estrelas fugitivas

do cinza das nuvens

fulge em luz a lua



adormece o menino

na noite de reis



manhã de sol claro

acorda o menino

na sua lembrança

o som de atabaques

da noite de reis



que viu o menino?

por seus olhos baços



nem cores nem brilhos

não viu o menino

fechada em seus olhos

apenas a noite

(a noite de reis)







12.2.2024

11.8.2024

(Ilustração: Márcio José Cintra - Congada)

8 de ago. de 2024

No Jabaquara

 




- Encontrei uma arara rara no Jabaquara.

- Mentira mentirosa.

Não existem araras raras no Jabaquara

Só existem araras raras em Araraquara.

- Talvez um pintassilgo rosa?

E para ele dei um pouco de farelo...

- Nem rosa nem amarelo

Que pintassilgo não existe ali.

- Um pica-pau? Comendo um lacrau...

- Comendo um lacrau?

Ah! Era então um bem-te-vi.

Que lacrau no Jabaquara

Não é coisa assim tão rara...

- E bem-te-vi?

- Está sempre por ali,

Gritando te vi, te vi, te vi...

- Ah! Agora entendi:

Tem ali muito bem-te-vi,

Um pássaro valentão,

Quando grita te vi te vi

Espanta tudo quanto é ladrão!




1.5.2024

(Ilustração: Centro Cultural Jabaquara,
 
foto da internet, sem indicação de autoria)

5 de ago. de 2024

Não era ainda o tempo da solidão

 





Não era ainda o tempo da solidão

Quando caminhei pela tarde byroniana

À margem do Tamisa

Com todos os poetas Fernando Pessoa

No século dezesseis



Em meio ao fog da lua mal surgida

O fantasma de assassinos em série

Cheirava o ar procurando carne fresca



Não era ainda o tempo da solidão

E os poetas profetizavam spleens

Tocando de leve com seus pés de nuvem

As pedras roladas da margem do rio



Não era ainda o tempo da solidão

E a marcha dos pés descalços dos poetas

Multiplicava-se em ventos e velas

Sonhando felizes pela vastidão dos mares



Flanavam e falavam os poetas

Que havia mundos desconhecidos

No além-mar

Onde dormiam dragões de olhos esverdeados

E do poço profundo da ambição

Jorravam as águas de março que levavam na pororoca

De rios de sangue

Os encantos e desencantos da funda floresta tropical



Não era ainda o tempo da solidão

E a tarde londrina declinava sob pontes podres

A luz da lua flutuava agora sobre as águas

Onde boiaram as vísceras dos poetas mortos

E mortas estavam todas as esperanças

Devoradas pela fome dos deuses



Para iluminar a noite fria da faca do assassino

Não se acendia nenhuma lâmpada de Argand

- Era apenas uma noite byroniana sem qualquer amanhã

Pois não era ainda o tempo da solidão





2.6.2023



(Ilustração: Johannes Jelgershuis, em 1820: Livraria Pieter Meijer Warnars 
em Vijgendam Amsterdã iluminda por uma lâmpada de Argand)

2 de ago. de 2024

musas mortas

 





se nem sempre pulsa em meu peito

a inspiração

eu me pergunto – por onde anda

a deusa despida de meus versos



despojo-me de mim ante seus devaneios

a buscar na plenitude do universo

o canto orfeônico das estrelas mortas



sob a alva manhã de primavera

somente o canto dos pássaros

no espanto do fruto maduro

faz renascer o esplendor

de me recompor em estranhos poemas

para que a vida – que pulsa em minhas veias –

se reanime em sangue e suor e lágrimas

todo eu em mim mesmo desfeito em líquidos

no caldo primal de universos nascentes



no peito o coração que bate calmo

sustém o susto de continuar vivo

e eu sou – em sumos e células –

o poeta que regurgita

em versos de palavras tortas

as dores todas do mundo

e choro dentro mim

todas as minhas musas mortas



29.11.2022

(Ilustração: Juan Medina)