(Lavras: Pça. Dr. Jorge - c.1930)
(Para o amigo Vitório)
Hoje eu amanheci com cento e trinta anos.
Lembrei toda a minha vida, mas acima de tudo, lembrei
a vida de um amigo.
Vivi e revivi cada minuto,
cada dia,
cada semana,
cada mês,
cada ano
que juntos vivemos por esse mundo sem fim.
Crescemos juntos e juntos vivemos – não importou nunca
se um longo e tortuoso caminho nos separava;
não importou nunca se montanhas e vales
nos separavam. Não, não importou nunca.
Éramos amigos e isso bastava.
Revivi bondes e ruas tortas de uma cidade, Lavras chamada,
tão amada por ele, tão madrasta para ele.
Revivi jabuticabeiras e mangueiras em lenha tornadas.
Revivi campinhos de futebol ao longo da linha do trem.
Revivi poços e riachos de tardes molhadas.
Revivi o velho grupo escolar, a velha praça, os velhos amigos.
Tudo, tudo muito velho para nossa ânsia de juventude.
Revi e revivi lutas campais na velha praça,
onde o mocinho de revólver de espoleta espantava bandidos
e salvava mocinhas indefesas.
Sonhei de novo o nosso futuro nas asas de pássaros metálicos,
que ele um dia, mocinho de capa-e-espada,
cavalgou pelos sertões de Minas.
Sonhei de novo augustos sonhos de meninos pobres.
E não pude sorrir, como sorríamos, de cada piada torpe,
que nos contávamos nas noites de lua nas montanhas de Minas.
E não pude de novo me divertir com as sessões de cinema
a que teimávamos em assistir, nas manhãs de domingo.
E não pude de novo correr pelos campos e vales
como fazíamos em busca de aventuras fantásticas.
E não pude de novo rodar o pião,
soltar papagaios,
jogar futebol até a bola sumir na escuridão,
nem subir de novo na velha mangueira ao por do sol,
para ver a noite chegar.
Não, não pude de novo sentar na velha praça
ao pé da tipuana, para sonhar e trocar sonhos
que não realizaríamos nunca.
Por que não posso de novo ter os pés descalços?
Por que não posso de novo cantar a tabuada
sentado nas velhas carteiras do grupo escolar?
Por que não posso de novo sonhar
com a história do cavalo com a estrela na testa
que ouvíamos das velhas mestras no grupo escolar?
Por que não posso de novo subir os velhos morros
atrás da lua cheia? Por que não posso caminhar pelos caminhos
da Via Láctea e esperar surgir no céu o velho Cruzeiro?
Por que não posso de novo caminhar pelos trilhos
e passar com medo por túneis e casarões antigos?
Por que não posso rever no brilho de nossos olhos o brilho
das chamas de incêndios estranhos? Por que não posso de novo
bater continência no desfile do dia da Pátria?
Por quê? E meu coração se comprime, velho amigo, para lhe dizer
que sequei todas as lágrimas que tinha para chorar.
Porque, velho amigo e companheiro, não tenho mais
a sua presença de todos os dias – não importou nunca
a distância – na minha vida:
porque você, velho amigo, não devia, não, não devia,
mas você se foi para o mundo cinzento das lembranças distantes.
Eu? Eu sobrevivo. Sabendo embora que sobreviver
é tantas vezes olhar para trás e contar
os amigos que partiram, até que um dia
também eu me torne um número a mais na lembrança
de alguém. Não importa, companheiro velho,
amigo de tantos anos que não me lembro quantos,
você é e será sempre em minha memória
aquele que viveu comigo tantas vidas, tantas,
que hoje amanheci com cento e trinta anos: os meus
e os teus tantos. Que comigo os levarei, a esses anos todos,
enquanto existir. Adeus!
(Vitório Pereira Resende : 1944 – 2010)