(Zdzisław Beksiński)
Assisti há dias a um programa de
televisão sobre a vida de Hosmany Ramos (*). Estudante de medicina,
especializou-se em cirurgia plástica. Médico famoso e brilhante, conquistou a
sociedade e começava a ganhar notoriedade. De repente, sua vida muda
completamente e ele volta-se para o crime. Passa a assaltar e matar. Preso, não
consegue explicar o motivo por que deixou uma trajetória que se vislumbrava
brilhante, para dedicar-se à vida criminosa.
Por outro lado, comecei a pesquisar a
vida de Carrol Lewis, autor de Alice no país das maravilhas. Filho de pastor,
teve uma educação rígida. Professor emérito de matemática e lógica, fotógrafo e
escritor brilhante, manteve com menininhas de dez, doze, treze anos sempre
relações amistosas, fotografando-as, muitas vezes, nuas. Sua paixão foi Alice,
filha de um pastor, seu amigo (**). Diz-se que chegou a pedir sua
mão em casamento, mas teve negado o pedido. A mãe de Alice rasgou todas as
cartas que ele escreveu para a menina. Morreu solteiro. Mas suas obras
ficcionais e sua vida levam a muitas conjeturas sobre suas reais intenções com
as amiguinhas que ele fotografava. Possivelmente, hoje seria tratado como
pedófilo. Não se pode provar que sua pedofilia semi-enrustida o levasse a
cometer qualquer ato libidinoso com as meninas. Só o que se pode conjeturar é
que ele teve tudo para isso. O que o impediu?
A bíblia é um amontoado de histórias e
causos exemplares. Ainda que lhe
neguemos qualquer valor como documento (e à bíblia só se deve dar valor como
histórias e lendas de um povo!), pode-se utilizar seus exemplos como ilustração
de qualquer tese. Assim, temos o causo
de Jó. Posto à prova pela divindade, a tudo resistiu com paciência e
passividade. Como explicar a síndrome de
Jó? Muito poucos que estivessem em seu lugar suportariam um décimo do que
ele sofreu.
Casos da vida moderna. Um juiz de
direito mata um advogado porque este abalroou seu automóvel na garagem do
prédio onde ambos moravam. Crime por motivo fútil. Mas vem alguém e diz que é
preciso buscar nas horas (sejam quantas forem) antecedentes da vida do
assassino as causas para sua violência. O estrago no carro pode ter sido apenas
a gota d’água. Mas quantos na mesma situação fariam o mesmo? Ou seja, se todo
mundo que tem problemas ou uma série de dissabores sair matando o primeiro que
lhe enche o balde, o mundo teria mais assassinos dos muitos que hoje tem. O Jó
bíblico mataria?
Diante de uma situação em que um ser
humano poderia matar outro, cada um terá reações diferentes. Muitos matarão.
Mas muitos outros recolherão sua raiva, suas frustrações e respeitarão a vida.
Por quê? Qual a regra e qual a exceção?
Acredito, em termos utópicos e
absolutos, que o pior crime é tirar a vida de outro ser humano. A vida é o
único bem que não pode e não deve ser tirado, por ser única e insubstituível.
Os homens criaram os deuses para
tentar explicar o que era difícil de entender. Depois os deuses passaram a ter
vida própria e passaram a julgar o homem, sempre pelas regras criadas pelo
próprio homem. Por isso, na maioria dos casos, os deuses são violentos e
sanguinários. Exigem sacrifícios e não admitem deslealdades. Punem com a morte
os desvios de sua doutrina. Por outro lado, premiam o homem com a imortalidade.
Assassinos e vítimas, todos têm uma alma imortal e, portanto, uma segunda
chance. Tendo a vida eterna, seja ela no céu ou no inferno, há sempre uma
segunda chance. E, para melhor confundir as idéias humanas, os deuses, muitas
vezes, oferecem uma sacanagem suprema: a possibilidade do arrependimento e do
perdão. Logo uma série de argumentos falaciosos e uma série de crenças absurdas
passaram a constituir um conjunto de regras e sistemas ainda mais absurdos e
falaciosos que o homem denominou religião. Religião que o religaria ao seio de um pretenso criador do qual ele, o homem,
através de seus desvios de conduta (pecados)
para com essa divindade, num certo momento afastou-se.
O veneno deísta inoculou na mente do
homem a noção de que a vida humana, sempre precária, pode servir de moeda de
troca diante da divindade. Não há morte, apenas passagem. Então, o crime de
morte não deve ser encarado como algo assim tão grave.... É como roubar a
carteira de alguém: pode-se obter outra. E perdão foi feito para se pedir... e
obter! Desde que haja arrependimento!
Quando se acredita que a vida é única
e insubstituível, que não há deus ou deuses que possam fazer renascer um ser
sem vida, que não há nenhuma possibilidade de outra vida seja em que dimensão
for, passa-se a ter em relação a si mesmo e ao outro uma postura completamente
diferente da postura dos deístas de qualquer religião.
Mas, para chegar a isso, é preciso
despir-se de todo e qualquer sentimento de “espiritualidade” e passar a ser cem
por cento materialista. Uso o termo materialista por ausência de palavra melhor
e para que, embora chocadas, as pessoas compreendam o que eu quero dizer. Ser
materialista é acreditar que a vida é matéria e somente matéria. É não ter
qualquer ilusão sobre vidas futuras, reencarnação, deus, deuses, deidades,
espíritos, almas, céu ou inferno. É despir-se de todo e qualquer conceito
religioso ou de qualquer filosofia utópica de permanência ou eternidade do
homem. E isso é um exercício muito difícil, para muitas pessoas que, arraigadas
a suas crenças, pensam ser o materialista um monstro a querer destruir o homem.
Mas é justamente o contrário: ser materialista é querer construir um novo
homem, muito mais humano e muito mais respeitador da vida que qualquer outro em
toda a história. Um homem que não precisará de freios religiosos que se
transformam em desculpas que justificam todas as ações criminosas.
Acredito, e isso é uma crença muito
pessoal, que, dentro da cadeia evolutiva, quando o homem tomou consciência do
primeiro crime contra um outro homem, isso deve ter disparado um mecanismo de
sobrevivência que se instalou na sua mente: matar outro ser humano é atentar
contra o futuro da raça. Mas o crime estava cometido e essa ação também incutiu
no ser humano, através de algum circuito ou sinapse cerebral, ou em algum gene,
ou em alguma fórmula advinda de uma série de complexos químicos que interferem
no cérebro, a noção e a origem da violência como forma de autopreservação. Isso
pode estar mais ou menos ativo em cada um, o que determina muitas vezes a sua
trajetória de vida. Assim, gêmeos, que têm exatamente a mesma origem e vivem
exatamente no mesmo ambiente, podem seguir caminhos opostos em relação à
propensão para a violência. Por quê?
Porque há dois mecanismos em oposição
dentro do homem: o instinto de sobrevivência da espécie (que condena a violência
contra outro ser humano) e o instinto de autopreservação (que admite a
violência contra outro ser humano e é diacronicamente observável através da
história). Então, o homem precisa, para sufocar o instinto de autopreservação,
criar salvaguardas éticas de tal potência, que anulem todo o seu deísmo e suas
crenças ancestrais de crime e arrependimento, que são crenças, numa só palavra,
salvacionistas.
Assim, quando um Hosmany Ramos parte
para a vida de crimes injustificáveis, o que deve ter acontecido é que, num
momento qualquer de sua vida, as salvaguardas éticas baixaram a guarda e o gene
ou a sinapse ou o complexo químico da autopreservação assumiram o controle. Por
outro lado, possivelmente essas mesmas salvaguardas éticas impediram que as
pequenas taras de Carrol Lewis se transformassem em pedofilia e, até mesmo, em
assassinato. Então, há seres humanos cujas salvaguardas éticas estão plenamente
ativadas e outros em que estão “adormecidas” ou minimizadas, por um motivo
qualquer. Como ser racional, no entanto, mesmo nos casos em que elas estejam
enfraquecidas, se o homem se convence da univocidade e impossibilidade de
substituição da vida humana, ele pode subjugar, com bastante possibilidade de
sucesso, seus instintos assassinos, sem se tornar frustrado ou doente
mentalmente. No entanto, e aí vai mais uma crítica muito pessoal ao deísmo, se
ele subjuga seus instintos por motivos não-éticos, mas religiosos ou meramente
sociais, isso pode torná-lo extremamente amargo e doente, por gerar frustrações
que o levarão para outros caminhos igualmente perigosos de desvios de conduta.
Os jós bíblicos são entes bastante raros e, possivelmente, também frustrados,
se não desenvolverem como salvaguarda ética a noção de respeito total e
absoluto à vida humana.
Esse tipo de raciocínio nos leva a
alguns preceitos e mudanças de costumes fundamentais, para que o homem violento
desenvolva em si salvaguardas éticas. Acredito que, ao adotar tal sistema
racional de pensar e agir, o homem começará a tomar consciência de que ele é o
deus criador de seu próprio destino e só depende dele dar o primeiro passo para
assumir essa função. Para isso, ao tornar-se materialista deve:
- defender
a ideia de que um ser humano, em hipótese alguma, pode tirar a vida de
outro ser humano; corolário: mesmo diante de um crime de morte, em
qualquer circunstância, fica abolida a pena de morte;
- lutar
para que, diante de um crime de morte provado ou confessado, o ser humano
que o tiver cometido deva ter uma pena mínima de, pelo menos, trinta anos
de afastamento total de convivência da sociedade, sem qualquer
possibilidade de diminuição dessa pena, sem qualquer privilégio, dentro de
regime carcerário fechado, onde deverá passar por processo de
reabilitação; diante disso, o julgamento do crime terá por finalidade
apenas acrescentar mais anos a essa pena mínima, diante de fatos que
comprovem ter sido ele cometido por motivos torpes etc.;
- lutar
contra a idéia de que o crime de morte possa ser tolerado ou que as penas
para ele sejam abrandadas por legislações lenientes e coniventes com uma
situação criada por crenças absurdas em arrependimento e perdão;
- ser
um ativista pelo desarmamento civil: um cidadão honesto e integrado na
sociedade não precisa de armas para se defender, isso é função específica
do estado, através de seus organismos competentes, cujo uso de armas
também deve ter algum tipo de controle;
- ser
um pacifista: todas as guerras são injustas e não há conflito que não
possa ser resolvido pela via diplomática;
- ser
um cidadão que lute pelo controle do estado por mecanismos cada vez mais
aperfeiçoados, para evitar o surgimento de ditadores de qualquer espécie
ou de líderes belicistas e expansionistas;
- ser
defensor da natureza, do ambiente e das reservas naturais da Terra, pois o
futuro da humanidade está indissoluvelmente ligado à preservação do mundo
em que vivemos;
- incentivar
e apoiar todo tipo de pesquisa científica que busque melhorar as condições
de vida do homem, adotando, no entanto, postura crítica e ética frente a
qualquer utilização de seus resultados que possa prejudicar o ambiente e o
próprio homem.
Não é possível, claro, eliminar de vez
a violência do homem, mas não custa, diante do fracasso do modelo deísta até
hoje adotado pela humanidade, buscar novas utopias e tentar, assim, preservar a
humanidade de seu maior flagelo. Acabar com a fome, a miséria e a desigualdade
requer ações de natureza econômica e política, mas acabar com a violência, seja
individual ou coletiva, requer um tremendo esforço de mudanças de paradigmas
conceituais que eliminem ou diminuam drasticamente os sentimentos religiosos da
mente humana, para que as salvaguardas éticas possam prevalecer. É uma utopia,
mas uma utopia precisa de um primeiro passo para virar realidade. Quem se
habilita?
(*) Linha
Direta, Rede Globo, 25/09/03.
(**)
Há uma hipótese recente que reabilitaria Lewis Carrol: sua paixão teria sido a
mãe de Alice e o rompimento com a família teria sido a descoberta, pelo marido,
de tal paixão.
3 de
outubro de 2003
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016