31 de dez. de 2017

poetiza







poetiza cada breve instante da tua vida

e encontrarás não a inefável e impossível felicidade

mas o claro equilíbrio de tuas forças

com as forças que governam mares e ventos

ouvirás melhor o canto do sabiá na pitangueira

terás então momentos de gozo na vida

o espaço entre o teu desejo e o teu pensamento

concertará em sons de sinfonias de brahms 

os teus anseios mais secretos e tu dormirás

o sono de plumas e pétalas através das madrugadas

desfia tuas conquistas de montes e vales

ao cavalgares teus próprios sonhos 

ilumina teu sorriso com as promessas do vento

deixa que seja o manacá da serra a perfumar tua pele

a poesia te espera em cada canto desvelado

no aconchego de teus pensamentos sem pesares





(Ilustração: Leonid Afremov)

11.10.2017

30 de dez. de 2017

meus poemas



(Francisco Brennand; A Grande Tartaruga - 1981)



porque os chamo poemas

são poemas o que escrevo

parecem livres parecem prosa

nascem no entanto presos

ao pulsar do meu corpo

àquilo que determinam

os lagos os rios os abismos

as cachoeiras e as estrelas

os mais negros infinitos

do meu cérebro em ebulição

nas suas sinapses enlouquecidas



que os apreciem alguns

que não lhes vejam sentido outros

que não se lhes afigure poesia tantos

que importa

se o que se enfileira em letras e sons

são pensamentos e sentimentos

atirados aos ventos e ao mundo

como folhas desalinhadas e arrancadas

de árvores sem raízes e sem frutos

semeadas à beira do caminho

e nascidas fortes porque é esse o seu destino

sem outra opção que não serem apenas vida




23.12.2017

28 de dez. de 2017

reflexões sobre o tempo



(Jennifer Morrison Godshalk)




preocupa-nos o tempo

sua passagem

os estragos que ele faz

o caminho que ele traça para o fim

o fim de todas as coisas que existem

o vilão enfim

de todos os males que nos afligem

de todos os percalços que nos marcam a vida



mas para o universo o tempo não existe

é completamente abstrato

porque o universo não está locado no tempo

sua existência depende apenas de dois elementos

espaço e movimento

se não houver espaço não haverá movimento

se não houver movimento não haverá tempo

o tempo é pois o filho do deslocamento constante

de todas as forças que comandam a existência do universo



tudo o que está no universo se move

e o próprio universo se expande elasticamente

para ocupar cada vez mais o seu espaço

e quando as forças esticadas ao extremo se extenuarem

o universo expandido ao máximo se contrairá

num buraco negro do tamanho do núcleo de um átomo

que explodirá liberando forças tão descomunais

que um novo universo será formado

então o tempo fará de novo todo o sentido

dentro do espaço e do movimento do universo


21.11.2017


27 de dez. de 2017

o velho



 (Norman Rockwell) 



olhei-me de longe

no espelho

não reconheci

o velho

quase gordo e meio calvo

os olhos

tão tristes e tão calmos

não eram

o que eu queria rever



devagar

então me aproximei

olhando-me

desconfiado e de esguelha

mais e mais

já olho no olho de tão perto

e lá no fundo

finalmente eu vi - no fundo de meus olhos

no fundo de mim

o velho de agora no jovem de outrora.




24.9.2014

26 de dez. de 2017

o sambista e o poeta


(Heitor dos Prazeres - roda de samba)





o sambista diz assim

a mulher foi embora

a gente faz um samba

arranja outra

e faz uma obra prima



já o poeta coitado

mulher vai embora

molha a folha de papel

com lágrima sentida

e quando vem a outra

dedica a ela os poemas

que já escreveu



3.7.2017

22 de dez. de 2017

sobrevivente



(Giorgio de Chirico)




a pedra da mesa absorve o vinho tinto derramado

o linho branco do guardanapo guarda a mancha

de sangue os talheres e pratos da mesa reverberam

como as teclas desafinadas de um piano numa

sala vazia de concerto depois da função da noite

o sobrevivente da batalha que não ocorreu não

sopra o cano da arma nem a gira nos dedos para

colocá-la de volta ao coldre como os cowboys de

antigos filmes de faroeste e apenas estatela os

olhos para o cavalo vermelho que ele encilha na

sua imaginação e some na treva da noite como o

fantasma de um cemitério desolado no alto de

uma montanha povoada de abutres negros

o corpo fica sob a mesa e sobre ele pingam os

restos de vinho tinto de um amor para sempre

congelado num campo de mistério e desatino




13.6.2017

21 de dez. de 2017

o tempo

(Leonid Afremov - When Dreams Come True)



há dois tempos, o tempo pequeno

que dura o tempo de um piscar de olhos,

da queda de uma folha,

do breve alongar de uma nota musical,

de uma paixão inescrutável,

de um grito de prazer ou de dor,



esse tempo não conta, é o tempo vivido,

o tempo que nos conduz ao centro de nós mesmos



mas há outro tempo,

esse, mais terrível,

consome nossa pele,

amolece nossos ossos,

escurece nossos olhos,

delonga nossos passos,

é o tempo dos meses que passam,

dos números que marcam

na folhinha da parede

cada ano que perdemos

num atroz e decisivo anseio,

esse o tempo que nos leva



escolha o seu tempo, meu amigo,

escolha o seu tempo, minha amiga,

e fiquem nele, não olhem para trás, deixem

que cada um faça o seu trabalho silencioso,

pois o tempo pequeno é também o tempo do gigante

e o tempo do gigante coabita em nosso peito

em cada batida de nosso coração

inexoravelmente

inexorável



não lutem o mau combate contra o tempo

seja ele qual for:

nosso destino de mortais traz ao tempo

o prazer de nos ignorar



porque, afinal, tudo o que vivemos,

tudo o que sofremos ou amamos

tem o dedo do vento

e o dedo do vento é apenas o lento

e oportuno destino

de cada lágrima que nossos olhos

produzirem

inexorável

inexoravelmente

como o tempo a nos roer

como o tempo

o tempo

tempo


25.7.2013




20 de dez. de 2017

tempo de vida


(Honoré Daumier; Three Amateur Musicians)




não tenho o vigor da juventude

tenho a força da palavra

quero apenas da vida mais trinta anos

para escrever a minha obra

e dizer de forma madura o que eu penso

não a afoiteza dos trinta anos de vida

quando nada havia a dizer ainda

embora tantos o tenham dito e escrito

de forma até mesmo irresponsável

criando paradigmas falsos de verdades

de verdades impolutas em que se acreditou

pensando ser a verdade final da vida

quando a vida a verdadeira vida ainda

não havia sido vivida

sendo esta a vida que se esconde

no cérebro falsamente envelhecido

de seres que sobrevivem

aos oitenta ou noventa ou cem anos

deixando murchar seus cérebros ao passar do tempo

quando na verdade há um novo espectro

a pulsar nas células vividas e a rejuvenescê-las

se houver a boa vontade de escutar novas águas

a destilarem veneno em suas ligações nervosas

não uma nova versão de juventude

mas a têmpera agora mais acesa

a observar com olhos de lince as regiões mais profundas

daquilo que se chama a alma humana

e nesses olhos não há véus de moralismos falsos

nem escárnios de vidas por viver

há apenas o desafio de não deixar morrer

a eterna estrela de novos amanheceres

sob a óptica enfim esclarecida

de espantos novos e novos desafios

não deve haver na mente velha

senão pensamentos novos e novos encantos

a compensar o passo trôpego e as feições cansadas

se declina a visão e os músculos não respondem

enganam-se e perdem-se aqueles que deixam morrer seus neurônios

cultive-se o velho espanto da vida que a vida

de sempre haverá nas palavras de quem

uma jornada completou mas ainda existe um tempo

que homem algum um dia sonhou


14.5.2017







19 de dez. de 2017

tempo



(Konstantin Somov - -Landscape-with-a-Rainbow)





tudo o que tenho de meu

de unicamente meu

é todo o tempo que o tempo me deu

herança atroz e atormentada

de tantos dias idos e vividos

matéria pendente de cada poro de meu corpo

preenchidos os vazios de pensamento

meu cérebro armando armadilhas

de futuros inexistentes



11.11.2017

18 de dez. de 2017

pássaros



(Ame Sauvage - le ballet des oiseaux)





frágeis porque belos

belos porque frágeis

encantam-me os pássaros

seu canto

suas cores

seu voo às vezes inconcebível

o trinar guerreiro da fêmea

em defesa do ninho

a dança de guerra do macho

a defender território

o desfile de truques

para o acasalamento

os pássaros pequenos dinossauros modernos

atestam que a natureza cumpre

nas suas asas

nos seus bicos

nos seus pés

a direita noção do viver e aprender


25.11.2017

17 de dez. de 2017

predador


(autoria não identificada)





sonho que o sol lambe teu corpo esguio

numa distante praia deserta dos mares do sul

acompanho teus passos lentos a marcar na areia

as pegadas fluidas de teus pés de fada

caminhas com o vento e com o vento desfolhas

os cabelos revoltos mal cobrindo os seios

tuas nádegas ondeiam ao sabor das ondas

no teu andar inocente de princesa solitária

espio tua beleza por detrás de uma pedra

e chega até mim o cheiro do teu corpo no cio



por que te contemplo escondido se és minha

pergunto-me no sonho a arranhar de desejo

a pedra lisa batida pelas águas do mar



estás sozinha e és minha e posso possuir-te

mas contemplo-te escondido e arrepiado



não sou no sonho que sonho em suores

do meu leito na madrugada quente

o teu amor que te afaga e te beija ardente



sou no meu sonho tresloucado a fera rude

que te cheira no ar os traços de teus desejos

e está pronta para atirar-se sobre tuas carnes

e estraçalhar teu corpo e roer teus ossos



sou teu predador faminto a sentir apenas o gosto

do sangue fresco a correr de teus seios fartos

não me importa quanta beleza exibes em tua nudez

ela apenas atiça a fome da fera faminta dentro de mim

e tu segues sem nada perceber no teu passeio lento

pela praia deserta ao sol e ao sal que salga e atiça

enquanto me debato em mim mesmo como fera

e preparo apesar de todo o meu amor por ti

para lançar-me a mais um banquete de amor e sangue





30.3.2017

15 de dez. de 2017

quatro estações



(Henri de Toulouse-Lautrec)



despetalo-me a teus pés

folha inútil na terra repisada e dura

de novo alimento de tuas raízes

enquanto te despes e te encolhes

embrutecendo tuas seivas em veias tensas



enrodilho-me a teus pés

esquecendo o vento que te fustiga

vergando-me à chuva e à névoa fria

sou teu manto de estrelas fugidias

tiritando o espanto de teus olhos mortos



abro para ti meus nervos gastos

corola em prantos de musgos e chuvas

ao beijo da brisa a vida que se guardou

nas tuas fibras o veneno do renascimento

escravo que te liberta aos sismos de gozos fáceis



compartilho-me contigo em banquetes de sal

o vento a brilhar na ponta de estrelas antigas

teu ventre em bulbos explode os espantos

de novos horizontes em fogo de sóis famintos

sou enfim teu mais ansiado espasmo o teu fim


9.9.2017




14 de dez. de 2017

verso encantado



 (Francisco Brennand)



encantou-se em minha garganta um verso

e ali ficou

não tinha muito mais para onde ir encantado que estava

às vezes subia ao meu cérebro e cabriolava por lá

outras vezes descia ao meu coração e me machucava um pouco

e até mesmo ousou descer até o ventre provocando arrepios

mas encantado que estava encantado continuou

nunca quis fazer parte de nenhum poema

não era a dele ser apenas uma linha dentro de um poema

era um verso encantado e porque tinha encantos

tinha também pudores e manias que todo verso assim cultiva

nunca pude tirá-lo de dentro de mim

não sei o que ele continha de beleza ou de filosofia

se era uma mensagem para a humanidade

ou apenas um simples galanteio de amor a uma desconhecida

podia ser que fosse apenas a imitação do canto de um passarinho

ou o consolo do choro de uma criança

podia ser que nem fosse nada disso e apenas se escondesse

porque era um verso simples um verso bobo que um dia

teve pretensões de tornar célebre um poeta desesperado

digo-lhe apenas e tão somente isto hoje

passados tantos invernos e sonhados tantos sonhos

encantou-se o verso em minha garganta

e ali ficou

13.11.2017







13 de dez. de 2017

o poema




  (Alfred Henry Maurer)



poema que nasce torto

não morre torto

porque torto é quem o tem por morto

não morre o poema sem que entorte

pelo menos a cabeça do poeta

e se tiver um pouco de sorte

abrirá com a senha secreta

o espaço entre a vida e o corte

que lhe promete o encanto

de se transformar em pranto

muito antes da morte


7.12.2017





12 de dez. de 2017

sei o que escrevo


(Albert Marquet -French, 1875-1947)



sei o que que escrevo

não sei o que você lê

minhas palavras são como seixos no rio

estão no poema para serem roladas

polidas

levadas pela correnteza das metáforas



meu verso pede palavras simples

dou-lhe palavras simples

meu verso pede estruturas góticas

dou-lhe pontudas arestas de templos mágicos



meu verso faz parte de um poema estranho

vivo o estranhamento tanto quanto você

meu verso compõe o que nem eu mesmo ouso

deixo a seu critério o espaço entre o sonho e som



sei ou às vezes nem mesmo sei

o que escrevo

não lhe dou a chave do cofre

porque já ela está perdida há muito

pelos meandros de meu desespero



sei o mundo que está dentro de mim

não sei o mundo que está em você

leia apenas os meus versos sem atavios

navegue em si mesmo e não em mim

sei às vezes o que escrevo

e escrevo às vezes o que sei

não só da vida mas de mim mesmo

o que é muito pouco para ser cobrado



os meus seixos rolados pelos rios da poesia

nem sempre têm a poesia que apregoam

paciência

segue a trilha até o rio e mergulhemos nele

ao encontrar-me à margem pescando palavras

somos todos pedras rolantes da vida

em águas que não nos matam a sede

nem peixes nem plantas

apenas pedras polidas pelas águas da vida


11.8.207

11 de dez. de 2017

odeiem-se




(Escultura de Albert Gyorgy, nature,eternelle)




odeiem-se uns aos outros

odeiem-se visceralmente

profundamente odeiem-se



mas assim como cada um não deseja morrer ou ser morto

respeitem-se uns aos outros

que no respeito enfim encontrem

não o ódio visceral com que se olham

mas a esperança de sobreviverem como seres humanos.







25.11.2017

10 de dez. de 2017

não se matem



(Paula Rego)




não se matem uns aos outros

que o não se matarem garantirá

não a vida eterna no céu do profeta

com as tais setenta mil ou oitenta mil

ou sei lá quantas mil virgens

mas que o teu neto te beije um dia o rosto

e ilumine a tua vida miserável

com a inocência de quem não sabe

nem o que disse o teu profeta

nem o que são sei lá quantas mil virgens



25.11.2017

7 de dez. de 2017

mendiga poesia




(Konstantin Somov)





nem musa tem a minha poesia

vestida com trapos que encontra no varal

nenhuma pintura atavia

seus olhos sem maresia e sem sal

olha a vida como ela é

caminha pela areia descalça e mendiga

e mesmo se lhe doem os cascalhos no pé

não espera quem lhe diga

qual o caminho a seguir

vai em frente como qualquer caminheiro

lambendo nas pernas cada ferida

que lhe cobra o caminho cada espinheiro

nunca se dá por vencida

a minha poesia

renasce a cada dia

e caminha sozinha

trêfega e mais empobrecida

e se antes mais sofria

agora caminha mais embevecida

pela estrada sem rumo e sem norte

vencendo em cada passo

um desejo de dor e de morte

23.11.2017






6 de dez. de 2017

ócio de amor





(Georg Emanuel  Opitz)




num oco qualquer, em qualquer lugar do mundo,

te espero sonhando, porque te espero dormindo;

mesmo que venhas no passo da brisa,

enquanto não chegas, preparo meu corpo

com a calma e o talento das ondas mais mansas,

colhendo enredos de doces mistérios

que prometes em teus enleios, quando chegares;

não venhas tão rápido, amada, que o tempo

de anseio deve alongar-se como se alonga

pela praia a sombra do luar; e quero,

quero muito antecipar teus suspiros

no farfalhar das folhas do teu caminho;

quero poder ouvir-te ao longe, no horizonte

da floresta, porque, devagar, felinamente devagar

deves tocar as pedras do caminho, que não te firam

os pés os seixos, nem os espinhos;

no devaneio da brisa, no canto do pintassilgo,

preguiçosamente te espero e preguiçosamente

deves enredar-me quando chegares

para que o nosso amor - sem nenhum espanto -

seja serpente em doce elegância de abraçar,

e goze, lento como o lento marulho do mar,

lento, como lasciva foi a formação da terra,

e tenha, depois, o doce cansaço do canto

de carros de bois subindo a serra.



14.9.2012/4.11.2012/29.11.2012




5 de dez. de 2017

teologia





(Jeff Faerber)





tu me dizes que tatuaste em tuas coxas

versículos da bíblia do velho testamento

então ao primeiro ensejo recito cada um deles 

até chegar ao teu novo testamento

e gemes como na cruz o teu profeta em gozos mil 

ele que só com madalenas celebrava



tantas vezes ali recitei minhas orações 

ali tantos cultos realizei em contrições

tantas penitências fiz ali pelos meus pecados

lida e relida toda a tua bíblia em teus enleios

que me considero hoje eminente teólogo

formado e diplomado na catedral úmida dos teus anseios





14.1.2017




4 de dez. de 2017

tempos de neblinas densas








aguardava ansioso cada número do pasquim

os tempos eram de nuvens negras e neblinas densas

mas o pasquim brotava nas bancas como lírios no brejo

as almas se iluminavam às tochas de uma procissão lúgubre de um cristo morto

as celas da amargura cultivavam modelos grotescos

de tempos passados

de tempos de galileu galilei

e eu aguardava esperançoso que as páginas do pasquim

trouxessem brilho de lua cheia àquela eterna sexta-feira

talvez um dia a vida se recuperasse como os lírios

que guardam no brejo seco em tempo de estiagem

os bulbos da vida que renasce sempre à primeira chuva da primavera




15.4.2017



3 de dez. de 2017

tempo sujo








era um tempo tão sujo

de dias tão cheios de lixo

de bueiros tão entupidos

de cheiros tão nauseabundos

que restos de sujeira permaneceram no ar muito tempo depois

ainda estão por aí a sujar nossos passos quando andamos pelas ruas

a ferir nossos narizes quando tentamos aspirar um ar mais puro



era um tempo tão sujo

de ações tão monstruosas

de ratos saindo dos esgotos

de águas fétidas e paradas

que ainda hoje há quem sinta no ar aquele mesmo cheiro pútrido

que ainda há quem pense que pisamos em calçadas enlameadas

o vento que sopra dos mares ainda tem o mesmo cheiro de peixe podre



sim foi um tempo muito sujo

de botas de merda na garganta

de cabrestos e arreios e esporas

quando o calar-se era tudo

e esse tempo deixou marcas em alimárias que alimentam o medo

e esse tempo arrancou peles que ficaram pelos caminhos desnudos

e esse tempo o tempo de tempestades não amainou as lembranças



se quero portanto um outro tempo

se queres construir uma nova estrada

se queremos enfim a esperança

deixem que as águas dos rios transbordem mais uma vez

fazei que as marés invadam as praias e tomem as escadas dos palácios

protestemos contra o peixe podre que querem fazer que engulamos





se quereis enfim dias de sol

estenderemos os lençóis manchados de sangue nas sacadas e quintais

arrancarei com os dentes as ervas daninhas que crescem nos jardins

carpireis as dores e as gramíneas para medrar do solo os girassóis



do tempo dos dias sujos

pretendamos o registro

de que fiquem no passado

mas não saiam da lembrança

para que a chuva da primavera

faça crescer a força da luta

e que todo sangue daquele tempo derramado esteja em nossas veias

e renasçam no campo as raízes de mangueiras onde cantariam os sabiás





12.6.2017

(Ilustração: Kris Kuski)

Você pode ouvir este texto na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num dos seguintes endereços:

- no podcast:



- no YOU TUBE:





1 de dez. de 2017

velha mangueira




 (Paul Bond)




quando menino

gostava mesmo de subir em árvores e ficar lá em cima olhando a vida

a mangueira de frutos redondos e casca fina e cor de rosa

tão difícil seu tronco enorme seus galhos frondosos

a última fronteira

a última árvore do quintal a ser conquistada

a mais desejada

um dia a perna alcançou os galhos acima dos troncos

e os braços finos tiveram força para suspender o corpo franzino

e lá fui eu menino

a subir e subir a montanha verde até chegar ao acolhimento

alta

enorme

pujante

de seus galhos mais altos podia-se ver o mundo o meu mundo

acolhia meu corpo suas bifurcações caprichosas onde me sentava

e lá ficava por horas e horas contemplando o nada

foi no alto dessa mangueira de proporções tão grandes

que pendurei meus sonhos e meus anseios

no lugar de cada manga que colhia com minhas mãos

disputando com sabiás e bem-te-vis o privilégio

de colher os frutos mais tenros

meus sonhos e anseios ficaram lá

nem sabiás nem bem-te-vis ousaram bicá-los

no respeito mútuo do menino que um dia jurou

nunca mais usar o estilingue para matar passarinho

se os passarinhos não bicassem meus sonhos e anseios

pendurados na mangueira e apenas os levassem pelas estradas de minas

espalhando-os quem sabe por aí para nascerem e crescerem e frutificarem

como mangueiras à beira dos caminhos

os passarinhos tanto cumpriram o que prometeram

que meus sonhos e anseios

levados por seu canto e suas asas

espalharam-se pelas estradas do mundo como sementes ao vento

e foi por causa do vento e mais que o vento as tempestades

com que o menino não contava que havia no mundo

que esses sonhos tanto se espalharam que ficaram todos

pelos caminhos do mundo ao sol à chuva aos ventos aos raios

e os sonhos e anseios que deviam ter frutificado

pelas minhas estradas e pelos meus caminhos escolhidos

mal brotaram e logo se estiolaram cobertos todos pela erva daninha

sobrevivente crestada ao longo dos caminhos de meninos

que um dia penduraram sonhos em seus galhos a mangueira

não o podia imaginar o menino tão forte e tão pujante

não sobreviveria à sanha de machados de lâminas de ouro



30.10.2017