31 de jan. de 2018

prisão










recolher as palavras mais complicadas

encaixá-las no verso decassílabo

do soneto perfeito mas sem rimas

é trabalho de ourives não de vate



por isso não quero o meu verso canário belga

a cantar em dourada prisão

mas sabiá e bem-te-vi a brigar pela manga madura

nas tardes de verão 







5.1.2018



(Ilustração: Camille Pissarro)


30 de jan. de 2018

foder-te é bom







foder-te é bom

e o faço com prazer

porém

mais do que foder-te

parece ser para mim

o prazer maior

a companhia de teu corpo

nu

a maneira como

te despes

o jeito como

te banhas

o esfregarmo-nos um no outro

nos beijos e carinhos

roçando o meu pau

em tuas coxas

minha mão em teus seios

o chupar-lhes os bicos e apertá-los

sugando a ambos ao mesmo tempo

a tua flor aberta à minha língua

o teu clitóris

um pequeno pino a vibrar

o teu tesão

nos lábios frios demonstrado

tua vontade de entrega e de gozo

os momentos de corpo com corpo

língua com língua

mãos a percorrer a pele arrepiada

então querida

mais do que foder-te

é de ti e de teu corpo esguio

que gosto tanto de ver

tocar e curtir

como o maior prazer

de meus dias tão longos e tristes


30.9.2017



(Ilustração: Edgar Degas)

29 de jan. de 2018

mundo louco







este mundo é louco

quando faz do muito

um muito pouco

ou quando inverte tudo

e faz que tenha voz

até mesmo o mudo

quando chama de feio o bonito

e o belo se torna feio

e ainda mais esquisito

quando vazio e cheio

têm o mesmo valor

porém exagera sem pudor

quando alguém morre

e então até o bebum

mesmo morto de tanto porre

deixa de ser nenhum

e vira um homem de bem

e o pobre que nada tem

aplaude o rico filho da puta

que bateu as botas gozando

de sua vida de labuta

e o político que roubou

tem na estátua uma coroa

da grana que lhe sobrou

para os filhos numa boa

no paraíso fiscal

a situação é tal

neste mundo de gente falsa

que funkeiro dança valsa

para ganhar um prêmio

de são pedro no além

e tem também

a história verdadeira

de poeta que vira gênio

depois de morto

mesmo que seu verso

seja sempre torto

e o papa abençoa

pedófilos e hereges

ah esse mundo tão louco

em que o muito vira pouco

e o pouco vira nada

quando enfim o pobre lucra

um caixão meia boca

e o rico de tão milionário

tem fortuna que não acaba

quando na terra desaba

o caixão custa o salário

de um ano de trabalho

do pobre que se estica

pra pagar a prestação

de um pedaço de chão

que só vai ser seu

depois que já morreu

este mundo é mesmo louco

quando tudo vira do avesso

e o direito agora é torto

o pouco vira muito

e o muito vira pouco


3.11.2016




 (Ilustração: Max Oppenheimer)






28 de jan. de 2018

musa improvável









(a.j.)





porra, mulher, preste atenção,

que eu podia até mesmo estar bêbado, é verdade,

in vino veritas, my sweet heart,

mais verdade há, assim, sóbrio,

no que estou te dizendo:

ouça, porra, ouça:

você é minha lagarta listrada,

não importa o que isso signifique

(li num verso de bandeira! é, isso mesmo,

o bandeira, o manuel do recife, poeta

que entendia como ninguém

de lagartas listradas, como entendia também

de mulheres e amores não correspondidos

e também os correspondidos: recife dos meus sonhos,

você foi o meu último alumbramento!

não o recife, não! você: você é o meu último alumbramento!)

você!

você é a minha lagarta listrada,

crisálida futura de minhas loucuras,

borboleta de minha liberdade,

(hay que endurecerse, pero...)

você

é

a

minha

lagarta,

lagarta listrada,

ah! ih! oh! ui... amor, amour, love, amore, amor, lieben, amor,

esperança de vôos possíveis e improváveis ou impossíveis, mesmo,

yes! yes! oui! sim! si! das ist... das ist... not yet... forbiden?

la vida es sueño,

sonho que sonho e que bebo

como vinho branco bem gelado...

porra, mulher, porra, te voglio tanto bene,

eu te amo, que bosta!

entenda, e não fique na sua,

como quem finge não saber de nada,

lagarta, sim,

sonho, sim, quand je pense qui tu penses! ah! quand je pense...

que porra! que mierda! eu te amo, ouviu?

não importa que você não queira ouvir

ou faça ouvidos moucos,

(você me obriga a expressões tão malucas!)

quanta (ou quântica!) emoção em ser lagarta listrada, não é mesmo?

quanta emoção em ser amada, não é mesmo?

mas quanta emoção em amar (e essa emoção é minha, ouviu? minha!)

e você tem que me ouvir, cacete! você tem que me ouvir!

há mais esperança de sonhos entre a lagarta e a borboleta

do que sonha em vão o poeta louco do país do fog,

que importa? never more, never move... mover neve... ah! é isto:

você é minha

futura

borboleta

de

sonho

e fog e fogo e sonho e sofro e sei que é você a minha lagarta listrada,

que nada, nada, rien, nothing, nada mesmo (y nadie!) pode impedir

que eu sonhe, que eu sonhe, que eu sonhe

(pues poesía eres tú! mientras miras mis ojos tus ojos negros

e negros et noir and black, black... blakout… me muero!)

em um dia te ver borboleta e sonho e vida e sol

e vento e via e vôo e ventoinha de moinhos de vento,

em noites de loucuras e amor, amor, amor,

minha lagarta mais do que listrada: meu voo ponderado

de física quântica,

meu sonho provável de asas, asas, asas,

e eu te digo tudo

isso,

e sei que você, você mesma, nunca entenderá

toda essa louca, louca, louca

declaração de guerra,

de guerra a todas as lagartas listradas que devoram

meu pé de manacá...

P.S.: (não! não estou bêbado: estoy loco por ti, amor, de amor, por ti...

mi dulce musa improvável, my sweet heart, mon amour, mi amore...

femme de mon âme,

ich liebe dich,

I love you,

je t’aime...

yo te quiero!

io te amo!

eu...

te...

amo...

porra!


quarta-feira, 3 de janeiro de 2001(madrugada)


(Ilustração:Adrien-Jean Le Mayeur de Merpres)

27 de jan. de 2018

na face do demônio









na face do demônio o rito de passagem

açulava a ganância da gangue

o poço abria-se para o nada

e o esgar noturno da morte encerrava

o apelo ao senso comum

enquanto isso o demônio soltava

os presentes que o inferno lhe incumbia

todos os anjos carbonizados cantavam hosanas aos altares

onde virgens dissolutas se sacrificavam

a gangue de otomanos afiava espadas

os rins estouravam sangue em bolhas

de sabão de coco com azeite-de-dendê

esse era o preço cobrado

o preço a pagar pelo rito inconcebido

na passagem do tempo de hoje para um impossível tempo futuro


8.4.2017



 (Ilustração: Zdzisław Beksiński - soldier)



26 de jan. de 2018

OLHOS FRIOS






porque eu só me lembro desse detalhe, não posso inventar o que não vi, não senti, não cheirei, só me lembro desse detalhe, um lenço verde, eu sei que não existem lenços verdes, mas não posso fazer nada, o lenço que eu vi era verde e pronto, o senhor pode me chamar do que quiser que eu não vou poder mudar a cor do lenço que eu vi, que era verde, verde como a folha daquela planta ali, que já não está muito verde, está precisando de um pouco de água, não é, eu também estou seco, seco de boca e seco por dentro, o lenço verde ou só sua lembrança me deixam assim, seco, esturricado, não sei o que fazer mais para agradar o senhor, se eu digo a verdade o senhor me dá porrada, se falo mentira, o senhor me dá porrada, eu estou em suas mãos, não posso fazer nada, mas que o lenço era verde, lá isso era, um lenço grande, mas não muito, o suficiente para dar a volta em minha cabeça e amarrar por trás, enfiado em minha boca, me sufocando, me machucando, e eu não via a hora de tirá-lo de dentro de minha boca, mas ele estava muito apertado, eu mal conseguia grunhir alguns ruídos e acho que a minha tentativa de grunhir irritou o cara que passou a me dar porrada assim como o senhor e eu não podia fazer nada, minhas mãos também estavam atadas atrás na cadeira e cada porrada que ele me dava parecia que eu ia cair com cadeira e tudo e essa perspectiva de cair assim amarrado e amordaçado com um lenço verde me apavorava porque eu sabia que, se caísse daquele jeito, ia me machucar feio, e então eu parei de grunhir mas o cara não parava de me dar porrada, na cabeça, na testa, no rosto, acho que comecei a sangrar pelo nariz, e ele parou de me dar porrada e me encarou, foi a primeira vez que eu consegui vê-lo, mas tão de perto que só conseguia enxergar os seus olhos frios, ele tinha olhos frios, não sei exatamente o que são olhos frios, mas ele tinha olhos frios, estou ciente de que dizer que alguém tem olhos frios não adianta nada, mas o que eu vou fazer, não consegui fixar a cor dos olhos dele, só me lembro que eram frios, olhos de assassino, olhos de quem mata pelo prazer de matar, só pra ver como o cara vai cair, eu não sei, só sei que vim parar aqui como testemunha e o senhor fica me enchendo de porrada




(Ilustração: Jone Bengoa)


25 de jan. de 2018

refúgio










refugio-me na ficção

romances

contos

poesias

encontro ali a humanidade

sem a premência do compromisso



erguidos os olhos

aquela dor ou aquela maldade

não contaminam meu sangue

como as dores e maldades

das páginas sangrentas dos matutinos

ou na voz compungida ou irônica

de âncoras da tevê com seu riso de plástico

gravata azul e cabelos arrumados de bonecas infláveis



a humanidade imaginada

compunge-me e confrange-me

mas não me destrói por dentro



as tramoias e os arrepdimentos

de um assassino russo

os lamentos de um corvo absurdo

os passos trêfegos da família Severina

as vinganças articuladas e empreendidas

a desesperança e a vitória diante da natureza

ou de condições adversas em planteta distante

tudo isso me comove e me revela

o ser que se diz humano

mas repito que

ao desviar os olhos são momentos que ficam

e não aporrinham o meu dia a dia

esse o refúgio desse despenhadeiro

de ódios

de lutas

de guerras

de bombas

de miséria

de mistificação

de exploração

e tantas outras desgraças

a que se submete o ser que se diz dono da Terra

mas que não é dono de seu próprio destino

abraçado a feitiços e demônios e deuses

que lhe corroem a vida por dentro e por fora




5.1.2018



(Ilustração: Francois Xavier Bricard -1881-1935 -; A Young Boy)




23 de jan. de 2018

moleque doido








passa o dia tirando xerox

espalhando folhas mortas

pelas mesas do escritório



almoça hambúguer com coca-cola



depois do almoço trepa na moto

sai pelas ruas levando envelopes

e mais folhas mortas

por outras firmas e outros endereços



a cidade comeu seu cérebro

ouve rap no fone de ouvido

aquelas letras longas e loucas

de negros rappers ricos do harlem



bajula o porteiro do prédio onde mora

para ele receber à noite a pizza calabresa

e deixar entrar (às vezes) a putinha da esquina

(quando sobra algum dinheiro)



paga no bordel a cada quinze dias

(um luxo!)

cinquenta reais por um boquete

porque é só um boquete que cabe no salário

se vira na punheta que é mais barata

quando o desejo aperta na cueca



encontra a turma no baile funk

onde esbanja talento no meio do salão

com piruetas que lhe valem de vez em quando

poder pegar nos peitinhos de uma menina

no portão do cemitério ali perto



o boné torto na cabeça assim de lado

marca a tribo que sai do baile junta

e abre todas as noites as pernas pra polícia

a cara no muro

o joelho tremendo

que as mãos bruscas encontrem restos

da maconha já fumada no salão



no domingo dorme a manhã toda

e só acorda na hora do almoço

pra comer macarrão com frango

na padaria da esquina

e tomar uma cerva que ninguém é de ferro



no apartamento imundo

onde sala e quarto se confundem

o radinho de pilha

tenta transmitir o jogo do corinthians

mas a saudade aperta e dá uma vontade

de voltar pro mato que não saiu de dentro dele

bicho escorraçado no meio da selva

de tijolo e cimento da cidade que o devora



sonha o sonho de todo moleque doido

sabendo que a vida vai e a vida vem

e sua vida continua no mesmo tom

trabalha e sonha e não vive

caçador que não sabe o que caçar



certa vez pegou dengue

e foi parar no pronto-socorro do hospital público

quase entrou para a fila do transplante de rim

e só não morreu porque são jorge não quis



o patrão não lhe pagou os dias parados

e ainda descontou das férias a grana não recebida

reclamou no sindicato e disseram

que não podiam fazer nada

(ele estava com as prestações atrasadas)



caiu da moto várias vezes

várias vezes entregou correspondência errada

só não perdeu o emprego

porque o patrão não iria encontrar outro idiota igual

(pelo menos foi o que secretária do chefe disse para ele)



tinha muito ódio no coração

e sonhava sonhos de vingança

contra o patrão

contra a secretária

contra o sistema médico

contra o mundo

mas um dia um pastor de rua

desses que usam terno preto surrado e bíblia na mão

lhe deu uma bíblia

(leia meu filho, leia, que jesus é a salvação)



desde esse dia frequenta a igreja do tal pastor

paga dízimo do parco salário

acha que está progredindo na vida

conseguiu ser promovido de tirador de cópia de xerox

e entregador de correspondência na firma e na rua

para ajudante de serviços gerais



agora usa até uniforme

para limpar banheiros e varrer o escritório

para juntar o lixo e quando falta a moça do café

é ele quem a substitui todo orgulhoso



o pastor pediu que ele aumentasse o dízimo

e ele está pensando seriamente nisso

porque afinal encontrou paz no coração

não bebe mais

não fuma

está namorando uma moça direita da igreja

não precisa mais tocar punheta

nem pagar pela putinha da esquinha

a única coisa chata é que ela

a moça direita da igreja

diz que na frente só depois de casar


21.4.2016


(Ilustração: Valquíria Cavalcante)










22 de jan. de 2018

POR QUÊ?










Uma avenida mais ou menos movimentada, em Lavras, subindo, subindo, passo pela igreja matriz, o velho prédio do grupo escolar à esquerda, vou subindo, devagar, pela calçada à direita, a manhã mal nascida, pouca gente na rua, poucos carros, quase um silêncio, não fossem meus passos na calçada, meus passos lentos, eu subo, eu subo a avenida, devagar, sou apenas um homem que caminha pela avenida, subindo, subindo lento, na manhã tão calma, e então eu ouço, uma batida forte, lá em cima, na esquina, então eu vejo, um carro atravessado, então eu percebo, um homem, um homem alto, magro, quase esquálido, branco, branco de susto, mas também um olho feroz na cara, ele abriu a porta e desceu do carro, e está armado, um revólver, um revólver na mão esquerda, um revólver negro, ameaçador, o homem desce do carro e caminha, passos largos, não corre, caminha, passos largos, desce pela rua, não pela calçada, pelo meio, bem no meio da avenida, àquela hora ainda o pouco trânsito da manhã mal nascida, àquela hora ainda uns poucos transeuntes, e eu estou subindo a avenida, eu paro, o homem vem descendo, com a arma, com a arma na mão esquerda, olhar resoluto, um titã no meio da rua, um homem armado, eu paro a alguns metros de um garoto, de um garoto de pouco mais de dezesseis anos, camisa xadrez, um garoto encostado no muro de uma casa, perto de um portão azul, um garoto, e eu paro, e o homem vem descendo a rua, passos largos, um ciclope de olhar feroz, ele nos vê, a mim e ao garoto, ele nos vê, ele nos olha, ele nos perscruta com seu olhar, e eu paro, extático, angustiado, eu olho para o garoto, o garoto não me vê, olha o homem, vê o homem, o garoto apenas olha, apenas vê e eu vejo o homem naquele segundo em que ele nos vê, e eu pressinto antes que ele faça o gesto de erguer levemente a arma, ele ergue a arma, eu vejo agora, o revólver negro, ele aponta, para mim, para o garoto, para um ponto qualquer entre mim e o garoto, e o garoto então se vira e me vê, o garoto me olha num rápido segundo, e eu vejo o seu olho e ele vê o meu olho, o garoto, não está assustado, apenas olha para mim, não mais que um laivo de segundo e volta a encarar o gigante armado que aponta a arma e da arma sai uma faísca, uma faísca que queima minhas retinas num átimo de segundo, não penso, não temo, não grito, e então eu pressinto, eu sinto, eu vejo, eu sei, não fui eu, não fui eu, e o garoto tomba lentamente, lentamente um corpo que emborca e cai e eu tento segurar, eu tento, e o homem segue, o homem segue o seu destino rua abaixo, e eu seguro o garoto, um portão se abre para um jardim, um pequeno jardim de uma casa, uma placa com letras azuis, creche igreja presbiteriana de Lavras, o portão que se abre e eu deposito ali o corpo do garoto, um corpo mole que se amolda aos meus braços, eu eu olho para trás e vejo o homem sumindo rua abaixo e eu grito, eu grito por quê, por quê, por que ele atirou, por quê? E acordo. Gelado. Um grito preso na minha garganta, dentro da noite fria de São Paulo, por quê? por quê?









sp/9/1/2013

21 de jan. de 2018

Lucas e o tempo







Voltam às aulas em revoadas as crianças, no quente fevereiro. A um pedido dos pais, afogados em compromissos, recolho em casa o Lucas e comprometo-me a levá-lo à escola, no primeiro dia de aulas. Tem cinco anos os Lucas. Mais alguns meses. E lá vamos nós, mãos dadas, trocando ideias pertinentes à sua idade, a seus gostos e brincadeiras. Rimos e caminhamos. Numa camaradagem comum entre avó e neto. Caminhamos. Mas o papo, de repente, esmorece. Seguimos por alguns instantes em silêncio, coisa rara em se tratando do Lucas, que papagueia sempre, língua solta, incomum para um garoto de sua idade. Fala sempre o tempo todo o Lucas. Mas, àquele sol de fevereiro, a caminho da escola, no primeiro dia de aula, Lucas se cala por instantes. Fica pensativo. Também me calo, respeitando seu silêncio meditativo e incomum. Mas não dura muito o silêncio do Lucas e ele o quebra dizendo para mim, nestes exatos termos, com esta ordem de palavras, um tanto inusitadas, mas é assim o meu neto palrador e correto nas suas palavras, tanto quanto pode ser correto um garoto de cinco anos. E Lucas me diz esta frase, saída sei lá de que profundas reflexões depois daqueles instantes de silêncio:

- Passou rápido o tempo, não é, vovô?

O tempo. Olho para ele. Num átimo, penso: que sabe tanto de tempo um garoto de cinco anos? Que sabe tanto da passagem do tempo o meu neto? Mas, sim. Ele sabe. Ele sabe e sente e percebe que, entre o final do ano letivo passado e o início deste, muito ele viveu, muitas coisas aconteceram. Idas e vindas à casa dos avós. Idas e vindas à casa das tias. Noites dormidas numa e noutra casa. Festas. Natal. Ano novo. Aniversários. Bolos. Brincadeiras. Passeios. Muito ele viveu. E o tempo, ah, o tempo: passou rápido, na sua engrenagem misteriosa. A clepsidra precisa ser virada, mas ele ainda não conhece essa metáfora do tempo. Só sabe de sua passagem. Só percebe sua fluidez e como deixa no seu caminho um longo e saudoso roteiro de vida, mesmo para um menino de cinco anos. Então, apenas olho para ele e concordo, sim, Lucas, o tempo passou. E seguimos os dois, de mãos dadas, rumo à escola, de novo rindo e conversando sobre as nossas banalidades, as banalidades normais entre um avô e um neto. Ah, o tempo! Deixemo-lo, deixemo-lo ir, passar, rápido como sempre, já que o não podemos segurar.




(Ilustração: Salvador Dali)


15.2.2017



 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


20 de jan. de 2018

Revisando Gonçalves Dias








“Minha terra tem mangueiras

Onde canta o bem-te-vi;

As aves, que lá gorjeiam,

Não gorjeiam como aqui.”




março/2017

(Ilustração: foto de Fátima Alves / Lavras, MG)



19 de jan. de 2018

noturno número 7








madrugada fria

o quarto escuro

Billie Holliday

do éter ao terno pranto

a lembrança não descansa

o rosto os olhos a voz o sorriso

não morrem nunca

não morrerão jamais

vivem comigo a cada segundo

nove meses foram

seus passos os meus passos

agora eternamente eu

grávido de lembranças

os meus passos são teus passos

no que resta

do meu caminho






 (Ilustração: Max Oppenheimer)


26.5.2017



17 de jan. de 2018

História de passarinho: o Lino








Adoro passarinhos. Não gosto de gaiolas. Mas... esta é uma história de um passarinho de gaiola. 

Tudo começou numa noite mais ou menos fria e chuvosa. Minhas filhas estacionaram o carro na garagem e notaram, no canto do muro, um pequenino vulto incomum. Desceram e foram verificar. Era um filhote de canário belga, tiritando de frio e todo molhado. Cataram o bichinho, levaram-no para dentro, aqueceram-no e ligaram para a mãe, para saber o que podiam fazer. Devidamente instruídas, partiram para uma loja de produtos para pets (odeio essa palavra, mas assim como condescendi com as gaiolas, vou-me acostumando a deixar de ser tão radical) e compraram tudo quanto um passarinho precisa para sobreviver, mais... uma gaiola!

De onde veio o passarinho ninguém sabe nem imagina. A casa das filhas tem, próximos, dois conjuntos de prédios de apartamento e, do outro lado da rua, um outro conjunto de apartamentos que conserva uma boa área verde, com muitas árvores. Mais alguns sobrados ao redor. O tal canarinho, ainda implume, mal conseguiria voar. Como chegou até ali? Como escapou de predadores? De gatos? De cães? Enfim, lá estava o canarinho. Agora, devidamente cuidado. Embora, na gaiola. Ficou-me o consolo de que não é ave nativa e não sobreviveria solto. Enfim... lá estava ele, o Nino. Nome que lhe deram. E que depois mudou, como irão ver.

Tornou-se o Nino o encanto de toda a família. Inclusive do neto de seis anos, que não gostou ou não entendeu que era Nino e passou a chamá-lo de Lino. Não é Lino, é Nino. Não, tem que ser Lino, decretou ele. E ficou sendo Lino quem para Nino havia nascido, ou não.

Passarinho cresce rápido. Logo emplumou. Bonitinho. Amarelinho. Agora, faltava cantar. Passarinho canta por obra e graça da natureza. Não, não é bem assim: passarinho aprende a cantar. Com os pais. E o Lino, bem, vocês viram, é órfão. Passaria a vida mudo ou a piar apenas, como piam todos os pássaros? Não pode. Afinal, ele é belga, não de nascimento, mas de origem. Portanto, nobre. E lá foi a dona Ada, a mãe, sempre pressurosa e meio espírito de São Francisco, a pesquisar na internet. E descobriu como ensiná-lo a cantar.

Pegou o celular, baixou vídeos de cantos de canários e colocou ao lado da gaiola do Lino, que logo se interessou e passou a acompanhar o canto daquelas aves. Para alegria de todos, passou a emitir os primeiros sons, foi aperfeiçoando e, em poucas semanas, já cantava como um campeão, como passaram todos a chama-lo. Cantava e canta tão bem quanto os mestres que teve através dos bits e bytes da rede mundial. Passarinho antenado. Tão antenado, que viciou em assistir a vídeos pelo celular. Agora, não pode ver uma pessoa com um celular nas mãos, que começa a piar alto e a pular desesperadamente, dentro da gaiola, até que o coloquem à sua vista e ele possa acompanhar o vídeo. 

E mais: aprende coisas impensáveis, com o meu neto, que tem com ele uma relação de companheirismo ciumento. Brigam os dois na disputa do celular, pois o garoto acha que o Lino tem mais direito ao celular e a vídeos do que ele. Brigam mesmo, como dois garotos, com o humano reclamando muito com o passarinho, que ele tem de ter paciência, que não pode ser assim tão egoísta, senão vai para o castigo. Quando não estão discutindo e brigando pelo celular, o garoto ensina pequenos truques ao pássaro, como a pular e agradecer, baixando a cabeça, quando para de cantar e todos aplaudem. O que provoca explosões de gargalhadas em minhas filhas e traz divertimento para toda a família.

Enfim, neto e passarinho cantor que aprende truques e alegra a vida, a nossa vida, num momento de tão grandes dificuldades, são tudo quanto não esperávamos, mas constituem, na sua relação de amor e alegria, tudo quanto desejávamos. Mais um bicho, agora de plumas delicadas e amarelas, a dar um pouco mais de sentido à existência humana. Mesmo que, infelizmente, engaiolado. Hélas!






(Ilustrações: Lino; fotos do autor do blog)


P.S.:

Lino, o passarinho, nos alegrou por muitos anos, mas passou como passam os passarinhos, em 26.11.2023, para tristeza de toda a família.


15 de jan. de 2018

Meus olhos







Meus olhos já não são tão confiáveis,

tenho lá os meus problemas,

mas não quero ver o mundo

senão pelas lentes com que nasci,

mesmo que, hoje, não sejam tão confiáveis.



O mundo que eu vejo é o mundo

que não se filtra por vidros que não sejam

os vidros que estão nos meus olhos

a filtrar a realidade às vezes torta

que só meus olhos reconhecem:

nem fotos nem filmes nem

qualquer outra forma de transmitir

a realidade seja aquela que os meus

olhos decodificam do mundo

que eu sinto ou pressinto

mesmo que não sejam

esses velhos olhos assim tão confiáveis.


Joinville/SC – 5.6.2014


(Ilustração: Auguste Renoir)



14 de jan. de 2018

Pensar e escrever






Entre o pensar e o escrever, mesmo os poucos segundos que separem o pensamento do ato são suficientes para que não mais escrevamos o que pensamos, mas sigamos por outras trilhas nem sempre tão seguras quanto aquelas que, arduamente, o pensamento havia sugerido que seguíssemos. Não sei se se perde algo ou se ganha algo, com essa armadilha posta em nossa tentativa de expressar aquilo que pensamos ou sentimos. Em todo caso, se não nos é possível escapar a essa estranha síndrome, contentemo-nos com o que sobra nas linhas concretas que aparecem aos nossos olhos e esqueçamos os sonhos impalpáveis com que os relâmpagos mentais nos iluminam de vez em quando, aos quais damos o nome de inspiração, mas que não passam de fugazes sinapses de nossos cérebros, a nos indicar caminhos novos ou até mesmo pequenas projeções de futuro a partir da experiência acumulada em nossos neurônios desde o nascimento. A compreensão de tal estigma – o lapso entre o pensar e o escrever – pode parecer cruel e desestimuladora do ato de escrever, mas não obsta a que tentemos sempre superar tal condição, para nos lançar na aventura quiçá ventura de transmitir ou deixar registrado tudo aquilo que insiste a nossa mente em fazer-nos crer que é importante, embora, muitas vezes, não o seja, mas apenas fruto de nossa veleidade de seres humanos imperfeitos que se julgam, no entanto, o ponto mais alto da evolução.


12.6.2017


(Ilustração: August Macke)


12 de jan. de 2018

insensibilidade







o mundo em pé de guerra e o poeta pensa na amada

faz versos de amor e paixão pelos seus olhos e seios

e pensam todos será o poeta assim tão desalmado e insensível

que não vê aquela mulher afegã destroçada pela bomba

que saiu do peito do menino islâmico faminto por virgens celestiais



no mundo a fome mata milhões de pessoas

e o poeta escreve poemas sobre o tempo e os instantes de vida

nefelibatismo regado a aliterações e metáforas

e todos acham que o poeta é isso mesmo um caminhante

das nuvens e dos sonhos apenas um pássaro canoro

e não sabem que no peito do poeta pulsa o peito murcho

daquela mulher africana que tenta aleitar o filho já morto

na foto que roda o mundo e tira do papa palavras duras

contra o capitalismo na sua fala ao povo e depois que ele

o papa fala ao povo sobre as dores do mundo

senta-se à mesa farta e come apenas uma tâmara madura

molha os lábios no vinho que lhe servem na taça dourada

pensando nos pobres e famintos do mundo



terremotos e vulcões e enchentes e secas e tantas outras tragédias

assolam o mundo e os seres humanos por aí a fora

e o poeta se encanta com a flor do mandacaru que nasceu

no quintal da sua casa e tece loas à lua lenta que ilumina a cidade

porque não pode o poeta cantar misérias do mundo

alienado se torna aos olhos de todos um poeta romântico

digno apenas das antologias dos estudantes mais jovens

um ser voltado apenas às belezas desse mundo

e assim o poeta que se entristece e morre aos poucos

em cada poema que sangra em seus dedos tem apenas o desejo

da louca escapada dos ventos que sopram pelo mundo

e não trazem nunca nenhum alento para a vida

porque são ventos movidos a dólares e máquinas

a alimentar a sede e a fome que não existem na mesa

dos verdadeiros donos desse mundo cheio de tudo

que não seja o derradeiro suspiro dos capitalistas



22.12.2017


(Ilustração:Almeida Júnior -leitura) 

11 de jan. de 2018

passos na estrada







medidos os passos

na estrada

traços perdidos

marcada à foice

a caminhada

entre ramos e cruzes

talvez só assim fosse

talvez

soprado o vento

em vez de luzes 

velas onde

a saudade precede

cada passo medido

não cede não não cede

o pranto 

ao espanto de ver 

cristais de futuro

daquele cada vez mais

solitário caminho

na pedra o duro

sentido do ir sozinho





26.5.2017

(Ilustração: René Magritte;  the mysteries of the horizon)

8 de jan. de 2018

vênus incorpóreas






houve um tempo quando eu não sei

sei que houve um tempo

muito tempo antes do agora

quando se usava apaixonar por mulheres nefelibatas

mulheres envoltas em sinfonias de Brahms

estrelas despencadas de galáxias impensáveis

musas de olhos solares e noturnas madeixas

nunca menos que vênus incorpóreas

seres de inauditas façanhas e doces empuxos

a singrarem em velas pandas os corações

pisando rosas e lírios em vales sombrios

sim eu sei que esse era um tempo de desesperanças



24.12.2017

(Ilustração: Eliseu Visconti)



6 de jan. de 2018

brejo das almas








nas noites de lua nova almas penadas

povoam meu cérebro e por ele passeiam

penso nas penas que cumprem penando

pelos pensamentos de meu cérebro

pois o pouco de pecados que lhes pertence

dispõe-nos todos à vontade de meu cérebro

sou-lhes grato às almas penadas

por carregarem minhas penas tantas

como se fossem delas e permaneço

no meu estado estável de inconsciência

permanente e pouco dado a perdas

irrecuperáveis – das almas penadas

a perderem-se nos abismos de meu cérebro

pouco permanece no meu pensamento

desprezo-me a mim e às penas pétreas

procuro pouso na lua nova das almas penadas

no breu de becos assustados de crimes

que não se perdoam e passo pela noite

espessa como um expresso sem parada

afogando no brejo da lua nova as minhas

penadas almas perdidas no meu cérebro




11.11.2017


(Ilustração:  Luc Lafnet  -1899-1939)



5 de jan. de 2018

velho lobo






nas sombras do interlúnio

vagueia ao vento o velho lobo

na busca de sangue novo

ou quem sabe

um banquete de vísceras e agonias

lambe lento a ferida do peito

pensando a saudade que lhe aperta

com o parafuso arrochado a virilha

sabe o velho lobo que as sombras

encilham o cavalo doido do desejo

e quando vier o novilúnio

estará de novo ausente essa espera

do espanto que lhe alivie as promessas

de mais uma noite de passos sem rastros




24.12.2017


(Ilustração:  Theodore Gericault )


3 de jan. de 2018

pequena aurora








antes do meio dia

levantar devagar

despir todas as roupas

ouvir música

fazer ginástica

defecar

tomar banho



isso desperta um pouco o corpo

isso esvazia o pensamento

faz de mim um quase vivo

e prepara meu eu inteiro

para viver mais um dia

suportar mais um dia

na prisão sem grades

de uma vida que se leva

sem muitos atrativos

escrevendo versos

lendo poemas

viajando pelo mundo

por bites e bytes

zumbi talvez de mim mesmo

sem outras ondas

que as ondas da mente



não sei se dessa pequena aurora

quando já o dia se curva

para a tarde que se estende

eu busco as trevas da noite

ou estremeço ao pulsar

de esperanças cada vez mais

distantes de uma vida que vive

nos escaninhos do sentimento

sem luz sem fé sem nada

que a faça olhar o sol

que a pequena aurora

traz na curva de um seio

no aconchego de um corpo

apenas sonho de noites

tão mal dormidas quanto

são os dias mal vividos




6.6.2017



 (Ilustração: escultura de Albert Gyorgy - solitude)


2 de jan. de 2018

rezo todos os dias







rezo todos os dias para deus me livrar

dos criacionistas

e mais

rezo fervorosamente a deus para que ele

me livre dele mesmo



que jeová reúna seus profetas

todos eles

de cristo a maomé e também

os velhos barbudos do antigo testamento

e leve todos eles a uma expedição sem volta

ao quinto dos infernos de dante

onde queimem suas línguas

seus livros

suas profecias



rezo todos os dias para que o mundo

se livre de padres e papas

de aiatolás e outros jumentos

todos idiotas da infelicidade humana

todos criados para assustar criancinhas

a reinar no entanto em templos suntuosos

maléficos áulicos de guerras e desgraças



a humanidade prescinde deles para fazer

suas guerras e alimentar seus ódios

sabem os homens se matar sem deuses

sabem os homens se odiar sem profetas



por isso rezo a minha oração de esperança

de que livres de deuses e de profetas

possam um dia qualquer de uma nova alvorada

os homens despertar e chutar seus traseiros

para viverem e se odiarem e se matarem

por si mesmos

até que descubram o respeito à vida como sinal

de que a barbárie começa a ser superada



8.7.2017


(Ilustração: Artemisia Gentileschi - Salome with the Head of Saint John the Baptist; 
ca. 1610-1615)