Uma avenida mais ou menos movimentada, em Lavras, subindo, subindo, passo pela igreja matriz, o velho prédio do grupo escolar à esquerda, vou subindo, devagar, pela calçada à direita, a manhã mal nascida, pouca gente na rua, poucos carros, quase um silêncio, não fossem meus passos na calçada, meus passos lentos, eu subo, eu subo a avenida, devagar, sou apenas um homem que caminha pela avenida, subindo, subindo lento, na manhã tão calma, e então eu ouço, uma batida forte, lá em cima, na esquina, então eu vejo, um carro atravessado, então eu percebo, um homem, um homem alto, magro, quase esquálido, branco, branco de susto, mas também um olho feroz na cara, ele abriu a porta e desceu do carro, e está armado, um revólver, um revólver na mão esquerda, um revólver negro, ameaçador, o homem desce do carro e caminha, passos largos, não corre, caminha, passos largos, desce pela rua, não pela calçada, pelo meio, bem no meio da avenida, àquela hora ainda o pouco trânsito da manhã mal nascida, àquela hora ainda uns poucos transeuntes, e eu estou subindo a avenida, eu paro, o homem vem descendo, com a arma, com a arma na mão esquerda, olhar resoluto, um titã no meio da rua, um homem armado, eu paro a alguns metros de um garoto, de um garoto de pouco mais de dezesseis anos, camisa xadrez, um garoto encostado no muro de uma casa, perto de um portão azul, um garoto, e eu paro, e o homem vem descendo a rua, passos largos, um ciclope de olhar feroz, ele nos vê, a mim e ao garoto, ele nos vê, ele nos olha, ele nos perscruta com seu olhar, e eu paro, extático, angustiado, eu olho para o garoto, o garoto não me vê, olha o homem, vê o homem, o garoto apenas olha, apenas vê e eu vejo o homem naquele segundo em que ele nos vê, e eu pressinto antes que ele faça o gesto de erguer levemente a arma, ele ergue a arma, eu vejo agora, o revólver negro, ele aponta, para mim, para o garoto, para um ponto qualquer entre mim e o garoto, e o garoto então se vira e me vê, o garoto me olha num rápido segundo, e eu vejo o seu olho e ele vê o meu olho, o garoto, não está assustado, apenas olha para mim, não mais que um laivo de segundo e volta a encarar o gigante armado que aponta a arma e da arma sai uma faísca, uma faísca que queima minhas retinas num átimo de segundo, não penso, não temo, não grito, e então eu pressinto, eu sinto, eu vejo, eu sei, não fui eu, não fui eu, e o garoto tomba lentamente, lentamente um corpo que emborca e cai e eu tento segurar, eu tento, e o homem segue, o homem segue o seu destino rua abaixo, e eu seguro o garoto, um portão se abre para um jardim, um pequeno jardim de uma casa, uma placa com letras azuis, creche igreja presbiteriana de Lavras, o portão que se abre e eu deposito ali o corpo do garoto, um corpo mole que se amolda aos meus braços, eu eu olho para trás e vejo o homem sumindo rua abaixo e eu grito, eu grito por quê, por quê, por que ele atirou, por quê? E acordo. Gelado. Um grito preso na minha garganta, dentro da noite fria de São Paulo, por quê? por quê?