31 de jan. de 2020

Trova - de dia a gente trepa





De dia a gente trepa, 

À noite a gente dorme: 

Segue a vida conforme 

Se goza ou se discrepa. 





16.1.2020

(Ilustração: Elizabeth Jaeger)

29 de jan. de 2020

voragem



na voragem do tempo me perdi

na voragem do tempo te encontrei

era o tempo de não mais ter tempo

e mesmo sem tempo te amei

agora que o tempo me mata

fica o contratempo de recear

não ter mais que um pouco de tempo

para realmente tudo te dar



30.12.2019

(Ilustração: escultura de Camille Claudel - 
study II for Shakountala, c. 1886)

27 de jan. de 2020

vida vadia








conta-se o tempo e não se conta a vida

não a vida que vivemos

a vida que ainda temos

mesmo que louca vadia encardida 





3.1.2020


Ilustração: escultura de Camille Claudel - the age of maturity)

25 de jan. de 2020

viagem de volta





navega o meu barco pelo asfalto

em busca de um tempo num espaço

que o vento que varre o cérebro levou

para debaixo de tapetes tecidos de teias

de aranhas caranguejeiras e carrancas

de místicas viagens por rios imaginários

onde o setestrelo fulgia noites sem lua

e as ondas de vento ventavam cheiros de mar

montanhas verdes de esmeraldas cobiçadas

e ouros jamais em joias transformados

altares de jesus crestados em custódias

de hóstias outrora consagradas

aos prepúcios de pérolas em rosários

de purezas e porosidades carunchosas

nas tábuas da lei o verso consagrado

desonrado do meu barco que busca

pelas pedras do caminho de outrora

o porto seguro que mudou de lugar

e a navegação do vento inútil depara

com o muro das águas endurecidas

nos olhos vazados de vontades impolutas



essa viagem de volta só existe

no laivo de arrogância e desejo inefáveis



nunca voltarei 



18.1.2020

(Ilustração: vista antiga da cidade de Lavras/MG)

23 de jan. de 2020

velho cemitério








o espanto das flores mortas

sobre túmulos desconhecidos

cruzes negras de crenças ancestrais

a abelha rainha no tronco da acácia

o carcomido arcanjo sem dentes

a abrir as asas rotas sob o vento

velho e abandonado cemitério

onde jazem sombras de pesos mortos

os gonzos de enferrujados portais

não mais se abrem ao olhar atento

tudo o que se vê são ruínas

de ossários há séculos abandonados

ao sol crepuscular de cidades mortas

entre alamedas de cruzes onde um dia

uma procissão de fantasmas obscuros

enterrou na tumba sem número

as esperanças de qualquer passo

que pisasse rumo a um amanhecer



28.11.2019 



(Ilustração: Marie Egner - old cemetery - c.1883/4)

21 de jan. de 2020

valsa triste




o rádio tocava uma valsa triste

- naquele tempo havia valsas

e todas as valsas eram tristes –

e eu suspendia um pouco a mão

do caderno e ouvia a valsa triste

tão triste como era a tristeza

que havia dentro de mim uma

tristeza do velho spleen dos

poetas que frequentavam minha

imaginação e fervilhavam poemas

tristes dentro de mim e eu queria

viver e morria em cada verso

voando ao som da valsa triste

que o rádio tocava na noite fria

de silêncios tristes e estrelas

distantes e eu amava o amor que

brotava daqueles versos tristes e

das estrelas distantes e eu amava

o amor que então brotava daqueles

versos tristes de poetas trágicos e

tentava fingir o que eles tão bem

fingiam escrevendo versos tortos

e tristes com rimas pobres e ricas

tristezas trazidas pelo vento suave

de noites quentes era assim o meu

aprendizado de amores que um dia

pisariam o meu peito e fariam do menino

que ouvia valsas tristes e lia poetas

ainda mais tristes e escrevia versos tortos

o eterno escritor de versos sem conserto





9.11.2019 

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

19 de jan. de 2020

trilhas



percorri as tuas trilhas

como formiga em busca do mel

meus olhos iluminaram teus recôncavos

meus lábios recontaram as tuas travessias

deixaste em minha pele o brilho dos teus pelos

e as fundas furnas das tuas reentrâncias

emborcaram meus desejos em languidezes

de praias desertas e mares revoltos

percorri as tuas trilhas

em busca de abismos e desertos sem oásis

para me perder sem possibilidade de retorno

e quando enfim os teus caminhos estreitaram

senti-me o ladrão crucificado por engano

a sofismar etenos anseios e vagas estrelas



23.12.2019

(Ilustração: Steve Hanks - contornos 1999)

16 de jan. de 2020

terra dos mortos



chegar à terra dos mortos

todos chegam

voltar da terra dos mortos

ninguém volta

já decretara o bardo inglês

sábio de dramas e possibilidades

tantas possibilidades de espantar o público

que volta do pai o fantasma

para o filho assombrar

aplaudem plateias os pobres de espírito

no arrepio do desterro

esquecidos todos que assistem ali

à cerimônia final do seu próprio enterro



29.12.2019

(Ilustração: Harry Holland)

14 de jan. de 2020

tempo perdido




os odores de um tempo perdido

nas badaladas de um relógio antigo

o cheiro de chuva chovendo sobre o pó

eflúvios de passos e gotas de âmbar

o tempo de repente pregado na parede

pintada de branco com a cal das lágrimas

uma fruta negra colada ao tronco

o bem-te-vi bicando o fruto da mangueira

a cerca de arame farpado e o bambuzal

um riacho de águas estranhas e um barranco

de areias com veios de ouro e prata

odores de jambo caído do bico do pássaro

a chuva chove a lágrima no canto do olho

desce o barquinho de papel na enxurrada

o sonho de hoje reverbera o passado

de passos e pessoas perdidas no tempo 




2.1.2020

(Ilustração: foto de Chema Madoz)

12 de jan. de 2020

sem sentido ou sem vestido algum




quando houver chuva na lua

dançarei seu sucesso insalubre

no passo do espaço entre o paço

e o fosso do poço no pêndulo

o tempo da técnica e cavam

a toupeira a caveira e o escravo

o túnel da desgraça por onde passa

o passo do gato e eu escapo do papo

da rã na manhã sem moscas nem

pássaros de pano e papel pregados

no pé de jambo tocando um mambo

à flauta que falta ao roqueiro

vezeiro estrangeiro montado

no carneiro sem tempo para ver

que há chuva na lua molhando a pele

da diva mais nua de todos os tempos 





23.12.2019


(Ilustração: Frank Frazetta - The Moon's Rapture)

10 de jan. de 2020

relicário do amor



um beijo estalado marcado no pescoço

o desenho de duas unhas nas costas

o cansaço da pélvis depois da longa cavalgada

os olhos baços depois do adeus

são todo o relicário de uma noite

e uma única noite foi tudo o que restou

na lembrança daquele amor eterno





18.12.2019


(Ilustração: Krzysztof Iwin - Ne soyez pas triste, 

qu'il aurait pu être pire)

8 de jan. de 2020

reflexões sobre a felicidade


quando coloco o som bem alto no começo do dia

para ouvir um concerto de violino

as folhas das árvores e o canto dos pássaros parecem

festejar aos meus olhos um momento especial de vida

isso é felicidade

quando leio um poema novo de um poeta desconhecido

e suas palavras calam fundo em meu cérebro

sinto o prazer de ver desvelado um mistério

isso é felicidade

quando aconchego a coberta ao meu peito esquivando-me

da noite fria lá fora

e sinto o calor de meu corpo aumentar pouco a pouco

e vir o sono reconfortante

isso é felicidade

quando saio à noite ao meu quintal e sinto o cheiro suave

da flor de maio

e olho para o céu a lua cheia entre estrelas pálidas

no silêncio absoluto dentro de mim

isso é felicidade

a vida é assim

feita de momentos apenas momentos

de êxtase ou de ausência

de olhar e sentir apenas sem quaisquer metafísicas

sem deuses ou divagações filosóficas

simples sentir em sincronia entre o bater o coração no peito

e o ruflar silencioso da asa da borboleta

ou o lento crescer da planta no solo encharcado

ou ainda a silenciosa rotação do planeta em torno do sol

o vento suave ou até mesmo o som do trovão após o relâmpago

essa a vida

feita de tantos eventos

sem olhares de misticismo

apenas a natureza em sua eterna festa que não é festa

que é só sua mutação lenta e constante através das eras

são todos esses momentos

partículas de felicidade

as únicas de que dispomos em nossa existência

porque a vida é feita de momentos

apenas de momentos

e a felicidade é só aquilo que sentimos de bom nesses momentos





8.12.2019 

(Ilustração: Leszek Sokol)

6 de jan. de 2020

recato



depois que mocinho beija mocinha

a tela grande exibe o the end

no escurinho do cinema

rapazinho e mocinha recolhem

as mãos das reentrâncias

e relevos tesos e terminam

a noite no portão da casa

da mocinha num último beijo

bem rápido

antes que a luz da sala se acenda





29.12.2019 

(Ilustração: Ada Breedveld)






4 de jan. de 2020

psicografia sonâmbula



queria tanto uma terra plana

onde fossem retos todos os planos

e planassem sobre as planícies planas

plátanos aéreos e voláteis platibandas

patinassem patos pelos prados

e as pedras podres pesassem tanto

quanto pesam as pedras pomes

na terra plana de planaltos altos

bolhas de sabão borbulham bolsas

de sangue podre de pobres pretos

polvilhando os pelos brancos

de arianos áridos de dentes podres

da boca aberta da baleia do profeta

que canta a canção da cantárida

para morder o bico dos seios túrgidos

de ninfas de nenúfares de rios fétidos

no palanque o padre e o pastor professam

a putaria da pátria dos patos e do patetas

e o estranho navio do pirata

voa sobre as ondas do mar de petróleo

gozando o pétreo peido da pátria



29.12.2019 


(Ilustração: foto de Louis Figuier, 1868: 
recolha da Lytta vesicatoria para preparação da cantárida)

2 de jan. de 2020

praça




ela morava na mesma praça em que eu morava

e eu passeava sempre pela praça e nunca a via

e ela morava ali na mesma praça em que eu morava

e eu brincava sempre na praça e nunca a via

e eu conversava com meus amigos ali na praça

e nunca nunca nunca a via na praça

a menina misteriosa que enlaçava meus sonhos

morava na mesma praça em que eu morava

mas eu não podia vê-la porque ela era uma fada

e fadas não se deixam ver passeando pelas praças

então eu a amava cada vez mais com essa inefabilidade

louca dos tempos em que se andava descalço pelas praças

porque a praça era o porto seguro onde a fada que podia

ser também uma ninfa de oceanos distantes que não existem

um dia passearia etérea como a luz do sete-estrelo

mas isso nunca aconteceu e eu vivia no espanto

de esperar que um dia aquela menina que morava

ali mesmo na praça onde eu reinava menino tolo

deixasse seu castelo [que ela só podia ser uma princesa]

para passear pela praça como qualquer menina

enredava-me nos meus sonhos e desejos e nada

a menina que morava tão perto estava sempre tão longe

e eu o menino tolo que a amava em segredo cada vez mais tolo





17.10.2019

(Ilustração: Alyssa Monks)