1 de jun. de 2020

quando eu morrer



quando eu morrer [e isso é uma coisa que – garanto –

não gostaria que acontecesse] – não quero velório

nem flores nem lamentos nem que alguém algum dia

diga que de onde for que eu esteja estarei olhando

por quem quer que seja – porque não estarei em lugar

algum a não ser na memória de quem por acaso

se lembre de mim – também não desejo que joguem

meu corpo uma vala profunda e escura para gáudio

de vermes que não conheço: que vire cinzas - que vire

brisa – que vire nada [num lago ou rio ou canteiro de rosas]

e se quiserem elogiar-me e dizer o quanto fui isto ou aquilo

- esqueçam! – leiam minhas palavras [meu único legado

talvez inútil – talvez bobagens – talvez apenas delírios

de orgulho besta] – mas que elas prolonguem um pouco

mais uma existência – a minha – que vejo hoje e agora

quando não mais estou aí – também sem sentido embora

possa dizer que deixei sobre a terra um átimo de mim

nos genes de filhos e netos – mas ouça bem e me entenda:

não é isto o que você está lendo um testamento nem

a minha última vontade que devesse ser cumprida

- já que a importância que me dou fica restrita à importância

que me dou e tudo isso que aqui escrevi só tem realmente valor

dentro da arrogância de um arroubo de vontade que nem precisa

ser levada a sério – porque afinal de contas depois que eu

já estiver morto não me importam nem com o que de mim

tenha ficado nem o que de mim tenham todos já esquecido




10.1.2020

(Ilustração: Laura Knight - sundown-1947)



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