era um tempo assim sem eira nem beira
os pés desnudos pulavam amarelinha
corriam soltos pelas ruas tortas
e pelas hortas e morros da velha cidade
a água do riacho amornava o corpo
escorria os cabelos e escondia os lambaris
entre o lodo do fundo e as pedras redondas
no peito o ar da primavera abria vontades
de bolinha de gude e peladas malucas
pela tarde afora
o sol olhava o menino zureta a correr sobre os trilhos
e a maria-fumaça apitava antes da curva
bota fogo maquinista
bota fogo maquinista
corre moleque
corre moleque
a fagulha te queima
de cima do mais alto galho da mangueira
um fiapo de tarde escorria pelos olhos
e o vento trazia do morro distante
o som da ave maria
no fogão a lenha a sopa fervia
e fervia também a água do banho
a unha preta da topada numa pedra
exigia atenção e reprimenda de mãe
os sobrinhos do capitão à luz da lamparina
enchiam a noite de pensamentos pecaminosos
de roubar jabuticaba do quintal do vizinho
a noite quente passava rápida
o sono sem sonhos apressava a vida
o pão com margarina e o café leite
acordavam a preguiça de subir o morro
sentar no banco do grupo escolar
ouvir histórias de um gigante que levava nas costas
o curumim que se chamava brasil
(um dia no meio da aula a menina irene
- preta como no poema de bandeira –
perdeu seu lápis e a classe toda
e até mesmo a professora já preocupada
com o castigo que nos iria dar
se puseram pelos cantos a procurar
até que perdido não estava
o tal lápis da irene
preso
esquecido
lá nas tranças da menina)
era um tempo sem eira nem beira
de folganças e brincadeiras
ciranda com as meninas
pega-pega com todo mundo
tiros de espoleta na guerra dos cowboys
o menino zureta correndo na praça
atrás de um menino índio que um dia foi embora
deixou nos olhos uma certa melancolia
e a sombra inalcansável de aldeias distantes
era um tempo em que se era quase feliz
ao ouvir o canto do sabiá na mangueira
e o barulho da chuva no telhado sem eira
nas noites sem lua
nas noites de sonhar acordado
com aventuras de santos e andores de papas
no terço da mãe a rezar para o menino
as utopias de um mundo cada vez mais triste
de um mundo cada vez mais sem eira nem beira