29 de jun. de 2021

zureta

 




era um tempo assim sem eira nem beira

os pés desnudos pulavam amarelinha

corriam soltos pelas ruas tortas

e pelas hortas e morros da velha cidade

a água do riacho amornava o corpo

escorria os cabelos e escondia os lambaris

entre o lodo do fundo e as pedras redondas

no peito o ar da primavera abria vontades

de bolinha de gude e peladas malucas

pela tarde afora

o sol olhava o menino zureta a correr sobre os trilhos

e a maria-fumaça apitava antes da curva

bota fogo maquinista

bota fogo maquinista

corre moleque

corre moleque

a fagulha te queima

de cima do mais alto galho da mangueira

um fiapo de tarde escorria pelos olhos

e o vento trazia do morro distante

o som da ave maria

no fogão a lenha a sopa fervia

e fervia também a água do banho

a unha preta da topada numa pedra

exigia atenção e reprimenda de mãe

os sobrinhos do capitão à luz da lamparina

enchiam a noite de pensamentos pecaminosos

de roubar jabuticaba do quintal do vizinho

a noite quente passava rápida

o sono sem sonhos apressava a vida

o pão com margarina e o café leite

acordavam a preguiça de subir o morro

sentar no banco do grupo escolar

ouvir histórias de um gigante que levava nas costas

o curumim que se chamava brasil

(um dia no meio da aula a menina irene

- preta como no poema de bandeira –

perdeu seu lápis e a classe toda

e até mesmo a professora já preocupada

com o castigo que nos iria dar

se puseram pelos cantos a procurar

até que perdido não estava

o tal lápis da irene

preso

esquecido

lá nas tranças da menina)

era um tempo sem eira nem beira

de folganças e brincadeiras

ciranda com as meninas

pega-pega com todo mundo

tiros de espoleta na guerra dos cowboys

o menino zureta correndo na praça

atrás de um menino índio que um dia foi embora

deixou nos olhos uma certa melancolia

e a sombra inalcansável de aldeias distantes

era um tempo em que se era quase feliz

ao ouvir o canto do sabiá na mangueira

e o barulho da chuva no telhado sem eira

nas noites sem lua

nas noites de sonhar acordado

com aventuras de santos e andores de papas

no terço da mãe a rezar para o menino

as utopias de um mundo cada vez mais triste

de um mundo cada vez mais sem eira nem beira



29.3.2021

(Ilustração: foto de Fátima Alves - 

Lavras/MG e a Serra da Bocaina)













27 de jun. de 2021

volúpia da vida

 


 

 

que importa a lua

no alto dos céus

se você está nua

nos braços meus

 

talvez assim devessem começar

todos os poemas de amor

 

na lua o luar

na alcova o encontro

de dois corpos a gozar

 

assim pensam o amor todos o que pensam amar

enquanto o amor na verdade se esconde

em cada gota de suor que pinga do rosto

dos amantes que se esfalfam no gosto

no gosto amargado do gozo que não se sabe de onde

de repente aflora como corrente de preamar

todas as células dos corpos a inundar

no espanto renovado do orgasmo ancestral

que prepara os corpos dos amantes para procriar

 

e não há nenhum luar

e não há nenhum sino a tocar

e não há nenhum deus a condenar

os gestos e anseios bilhões de vezes repetidos

os olhos que se fecham e o gritos reprimidos

 

macho e fêmea

fêmea e macho

um no outro entretecidos

na voragem da morte apetecida

 

apenas dois mundos de células que buscam encontrar

um no outro a visceral volúpia da vida

de se eternizar

 

24.5.2021

(Ilustração: arte erótica japonesa 

- Keisai Eisen (1790-1848) c.1820)

24 de jun. de 2021

vivemos

 



abrir um vinho

e espremer a garrafa até a última gota

para celebrar a vida

a vida e seus mistérios múltiplos

seus mistérios e enredos

nas nuvens que se dissolvem em gotas

na gota que se solidifica em pedra

na pedra que está sempre no meio do caminho do poeta



anterioridades e posteridades

no lento caminho das estrelas

no antes e no depois da explosão das galáxias

nos rios que correm para o mar

nos rios que correm para o coração

no voo para o nada

no nada que é tudo

no espaço entre elétrons dentro dos átomos



abrir um vinho

e deixar que seu sumo de vida

dentro de mim

refaça lembranças e vivências

entre meus sonhos passados e meus despertares futuros

e celebre a vida no fundo de minhas retinas maltratadas

celebre o rio vivo que corre por meu corpo

para que seja eu a cepa de paladares dissolutos

na certeza de que ela – a vida – não descansa

nem nos deixa esquecer de cada minuto

que vivemos e vivemos e apenas vivemos



29.4.2021

(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905)

 - The Youth of Bacchus -1884)

22 de jun. de 2021

visões fugidias

 




1.

um riacho à luz da tarde

- mergulha o menino

e depois – ao sol – a pele arde



2.

o vento de agosto celebra

a pipa vermelha contra o céu azul

de repente a linha se quebra

ou foi quebrada – partiu a pipa para o sul



3.

o cuspe na ponta do capim

- dentro do buraco a aranha espia

um puxão e a bola de pelo e pernas

no meio do quintal olha para mim



4.

no campinho verde os botões em ordem

para o começo do jogo

a mão ágil aperta o centroavante contra a bolinha

mas o gato é mais esperto – impede o gol



5.

roda o pião na terra batida

rola a bolinha de gude para a birosca

bate a bola de capotão na trave tosca

- a terra é redonda, gira e é divertida



6.

na praça a gurizada grita

tiros espocam das armas de espoleta

corre uma mãe aflita

- não foi nada, entre mocinho e bandido

apenas mais uma treta



7.

roda a roda da saia rodada da menina

pisam os pés descalços a terra batida

cantam todos a queda da heroína

aos três cavaleiros prometida



8.

pela janela iluminada o som do piano

vai pouco a pouco crescendo

na rua o menino para: quer ouvir o soprano

- mas a mãe o chama

e ele – que pena! - tem que sair correndo



9.

lua cheia de sexta-feira da paixão

só se ouvem dentro da noite o canto

dos fiéis acompanhando a procissão

- dentro do menino, solidão e espanto



10.

choveu forte durante a tarde toda

a enxurrada desce ao longo da calçada

- os barquinhos de papel atraem a gurizada

levam seus sonhos para o rio – para o nada





11.

a manga madura no galho mais alto

o prazer do sumo numa só pedrada

- mas o sabiá foi bem mais esperto

do outro lado a fruta está toda bicada



12.

sentado na cadeira as pernas do menino

balançam no ar – espera o cozinhar do feijão

embaixo o lacrau também espera – clandestino

e pica talvez frustrado o focinho do cão





7.4.2021

(Ilustração: Cândido Portinari)





 

 

 

 

20 de jun. de 2021

vida real

 



às vezes me pergunto o que é a vida real

se tenho asas e não consigo voar

se tenho pernas e não consigo me ajoelhar

se tenho mãos e não consigo espancar

se tenho olhos e não consigo enxergar

se tenho orelhas e não consigo escutar

se tenho boca e não consigo mastigar

rezo todos os dias para um deus inexistente

corro ladeira abaixo ladeira acima e não vou a lugar algum

escrevo poemas para mim mesmo e nem sempre me espanto com isso

vejo o crescimento das raízes sob as plantas e sou apenas um escravo de rotinas

componho sinfonias sem saber uma só nota musical ainda que creia em beethoven

o que vomito fica preso em minha boca como musgo no seio das sereias

e a vida flui porque a vida é movimento

cada elétron ou qualquer outra nanopartícula de meu corpo estrela um filme de carlitos

porque a vida é real

mesmo que eu seja o fantasma da ópera cego surdo mudo aleijado e alijado do tempo

porque a vida é real

mesmo que eu sonhe o dia de beijar tua boca sem saber ao menos se tens boca para me beijares

e os anseios que sinto são apenas sintomas inapeláveis de minha incapacidade de saber se a vida é real ou não embora eu penso que sim que ela é real embora eu saiba que embora ela seja real ela sempre me faz mal muito mal

porque é assim a vida real

ou não

sei lá



1.4.2021

(Ilustração: Edward Hopper - Puro teatro)

18 de jun. de 2021

vida que passa




bebo todo dia meio copo de cachaça

quem sabe assim a vida passa

um pouco mais devagar



escrevo todo dia alguns versos loucos

quem sabe assim os meus dias poucos

cheguem mais devagar



leio e releio livros de histórias e poesia

quem sabe assim o meu dia a dia

escorra mais devagar



rememoro o tempo passado e tudo quanto fiz

quem sabe assim me sinta mais feliz

e o mundo gire mais devagar



tudo subterfúgio para enganar o tempo

assim como o moinho de vento

gira sua roda e o vento passa

passa e volta e roda de novo a pá

também eu rodo e me movo de cá para lá

vendo que vida mais depressa dela me escorraça



28.8.2020

(Ilustração: Victor Prouvé - la joie de vivre, 1902)

16 de jun. de 2021

vida de falácias

 




quando o êmbolo do tempo catapulta a vida

para os torvelinhos da extinção

em meio ao turbilhão da morte da emoção perdida

perde-se também o ser e seu coração

como um louco imerge nas águas profundas

de oceanos mágicos e florestas improváveis

para buscar no fundo das catacumbas

um futuro e uma vida de falácias inimagináveis



28.4.2021

Théodore Géricault - La Balsa de la Medusa, 1818-19)

14 de jun. de 2021

vida bêbada

 



bebo e bêbado balbucio

o bem da vida vivida e bebida

na bem bolada basbaquice da vida

da entreouvida bebida bêbada

do batido do bumbo na bomba

a bosta da óstia bombada

na bunda da bactéria

e nenhuma coisa na bosta

desta vida

pode ser mais séria

que a porra da vida bem bebida



6.6.2021

(Ilustração: Milio Burquin - La buveuse d'absinthe)

12 de jun. de 2021

véspera







a vida é vento que vem e não volta

volteia em vagas e volutas

vazante vergada à volta do rio

vertente em voltagens de vaga-lumes



vem e não volta o vento da vida

sem ventosas voltaicas à voz de voltaire

vozes vagas e vozes velozes de vogais

voos em volutas revoltas



a vida volteia e não volta ao vento

vaga às vozes velozes dos vórtices

salve-se a vida

salvem-se os ventos

salve-se você ao vento sem volta



3.1.2021

(Ilustração: Stanley Spencer - red magnolia)


10 de jun. de 2021

versos tortos

 





brinco às vezes com as palavras

piadas bobas com um trocadilho fácil

sei porém que estou navegando

muito longe de minha praia



não é meu verso um conjunto

de ocas palavras engraçadinhas



a montanha escarpada de meus poemas

espeta em seus píncaros a tristeza

e escalpela os desencontros da vida



espelha o que sinto o poema

quando mergulha do alto da montanha

para o fundo de um abismo

cujas águas abissais produzem o sal

o sal amargo de vãs tentativas

de compreender os caminhos cruzados

de desencantos e descontroles

nunca antes talvez imaginados

por poetas e filósofos muito mais sábios

que as tolas palavras de meus versos tortos

a buscar o rumo das estrelas

quando em baixo de meus passos

há apenas mundos mortos



25.9.2020

(Ilustração: Piet Mondrian - The Gray Tree, 1911)


8 de jun. de 2021

versos nus

 




às vezes dispo meu verso

como te despi um dia

pétala por pétala

camada por camada

até que te vi nua como nuvem

até que o vi – ao verso – nu como a lua



às vezes visto o meu verso

como te vesti um dia

pétala por pétala

camada por camada

até que te vi vestida como tronco

até que o vi – ao verso – composto como água



vestida ou desnuda a ti me rendo

vestido ou desnudo ao verso me entrego

seja eu o poeta que um dia sofra

seja eu o poeta que um dia sorria

tu és para mim o verso e a poesia

assim como o verso e toda a minha inspiração

são o caminho que me leva para ti



percorro-te como estrada deserta

assim como corro por sobre os versos de meu estro

és a nudez do meu canto

e meu canto é a nudez de tua entrega



5.12.2020

(Ilustração: Alfred Henry Maurer) 

6 de jun. de 2021

velhos casarões e sobrados

 




nos velhos casarões e sobrados

sombras escondem furtivos encontros

beijos em bocas nunca depositados

abraços mal esboçados

fogos da carne mal apagados

fugidios sustos



sob esconsos telhados e escadas rangentes

passos assustados e voos de pássaros noturnos e soturnos

fantasmas às bulhas com estalidos e ranger de dentes

corações mal amados

sob falsos lençóis escondidos

tracejam no ar os doces suspiros

de tempos escorridos

de tempos perdidos



portas que se abrem e se fecham e rangem

ao vento de nós entupidos

desejos enrustidos

que se abrem e que se fecham e que ranhetam

pelos corredores fendidos

aos passos agora compassados e inúteis



os sobrados e casarões outrora cozidos

em pedra e cal – agora tão volúveis

dissolvem-se no ar

à sombra de suas volutas e arcadas

os desvãos carunchados – dissolvem-se em pó

só os suspiros pelos ventos encanados – suspiros sofridos

de encontros e desencontros em bocas desencantadas

não mais batem os corações – não mais beijos

nem ensejos de abraços enlaçados

suspiram-se apenas vagas falenas e profundas solidões

pelos corredores vazios desses velhos casarões e sobrados



26.9.2020

(Ilustração: Andrea Kowch)



4 de jun. de 2021

velhice

 




velho envelhece e geme

geme e envelhece

e tudo quando teme

é um deus qualquer

não ouvir sua prece

e se o velho é mulher

além de rezar e tossir

só pensa nos filhos e netos

velhos e velhas

nunca são discretos

estão sempre a mentir

que está tudo bem

quando se sabe que têm

achaques e dores e reumatismos

saem lépidos e sozinhos

como se fossem jovenzinhos

e se trumbicam pelas calçadas

quebram braços e bacias

mas não baixam o facho

nem ficam por baixo

mantêm aceso o orgulho

para dar um sábio conselho

que não vale para nada

por que não há mais espelho

que o faça dar risada

quando anda pelas ruas

com três pernas ou andador

e se tu – jovem – insinuas

que ele vai depois sentir dor

reclamam todos de preconceito

que não assim tão antigos

que precisem ficar no leito

como se fossem pregos batidos

sem nada mais para fazer

e os velhos seguem na vida

como esperança perdida

sonhando sempre com o passado

lambendo cada dia uma ferida





26.11.2020

(Ilustração: Aleah Chapin, Seattle, Estados Unidos – 1986)





2 de jun. de 2021

urgências do amor

 




tem o amor suas urgências

e tem também seus desígnios e descaminhos

que nós simples mortais consignamos

como caprichos de asas ao vento



ajoellhamo-nos a esses estranhos poderes

para o alcance de tão poucos mistérios

que ao amor erguemos altares

e a ele dedicamos cultos insondáveis



quando enfim cumprimos suas exigências

o vento do ruflar de suas asas

faz-nos arder em inúteis brasas

e caímos no limbo de falsos caminhos e urgências




18.5.2021

(Ilustração: Apollonia Saintclair - Les matinales)