31 de jul. de 2018

fragilidade






quando te contemplei adormecida

amada

o leito desfeito como um lugar comum

de nossos delírios e desejos

quando te vi ali entre lençóis o corpo desnudo e flébil

vi em ti a minha própria fragilidade exposta

terrivelmente exposta

em tua carne branca a meus instintos oferecida

e já possuída

e vi o quanto sou eu o elo mais tosco e quebradiço

de uma relação nascida dos teus encantos

e então amada então

minhas asas inertes revelaram meus desatinos

ao sentir na pulsação dos teus seios

que minha desesperança pousara em planícies

há muito extintas e lavadas por lavas e fogo

de um vulcão há tanto tempo adormecido

que a devastação de minha alma

fez de cada estertor de teu ventre o meu túmulo

onde depositei somente o meu desespero

e agora eu sou a teu lado enquanto dormes nua e fértil

a ilha perdida no oceano de vidas sem futuro





11.7.2018


(Ilustração: Alyssa Monks)




29 de jul. de 2018

estrelas da ursa








brilhem as estrelas da ursa

que leopardi contemplou

do jardim da sua casa

brilhem as estrelas belas

no céu à luz de si mesmas

distantes embora atiçadas

aos meus olhos de um tempo

de luzes ao tempo de outrora

sem esplendores e brilhos

que não sejam pálidas fogueiras

infinitesimais pontos de luz

jamais às estrelas da ursa

empanem um laivo sequer

do brilho do canto do poeta

brilhem as estrelas distantes

aos meus olhos de hoje tão

próximas às trevas tremendas

de um tempo em que a noite

descia seu véu abissal

e explodiam em luz e brilho

as belas estrelas da ursa

que vagamente veem-se agora

do quintal da minha casa


29.5.2018

27 de jul. de 2018

esperança








sei que um dia tu virás comigo

ouvir estrelas em campos de linho

soprar o vento em campos de trigo

atiçar o dragão e correr pelo caminho

onde pousam meu desejo e os teus encantos

virás eu sei apesar de todos os desgostos

que a vida transformou em doces prantos

e viveremos ternos caprichos de muitos agostos

a tua esperança aos meus passos acoplada

e então a vida será tudo e a dor será nada


4.6.2018

(Ilustração; Konstantin Somov - evening rendezvous)




26 de jul. de 2018

dentro da noite







está gelado dentro da noite

e dentro da noite estou eu

o meu corpo a minha mente

estão os meus sonhos

congelados dentro da noite

ao vento que sopra do sul

às gotas de geada que caem

de plúmbeas nuvens carregadas

não há caminhos nem lumes

a grota negra engole meu futuro

a cada passo no charco infecto

tenho a consciência do desespero

mas não me desespero

os meus olhos estão frios e mortos

meus passos autômatos me levam

cada vez mais para o abismo

sei que sonho embora acordado

sei que penso embora inutilmente

os desencantos congelam minhas veias

mais que o frio gélido da noite

espero um sol mas sei que a alvorada

nunca mais chegará nesta grota profunda

onde minhas lágrimas empedradas

rolam para o fundo e pavimentam a descida

na qual ferirei as solas de meus pés

deixarei minha pele e minha carne

gastarei até o último instante as unhas

de minhas mãos a cavar a terra podre

e talvez numa outra noite ainda mais negra

atinja no fundo o inferno de mim mesmo







6.6.2018



(Ilustração: Zdzisław Beksiński)




24 de jul. de 2018

aurora







quanto mais negra a aurora a anunciar a tempestade

mais canta o poeta a esperança de que o raio ilumine

não a nuvem negra que empareda o tempo da tormenta

mas o caminho entre as montanhas por onde seguir cantando



mesmo que o vento traga apenas restos mortais de águas

pútridas (o anseio estilhaçado em pedaços de redes inúteis)

o peixe mergulha ao fundo do oceano a fugir do predador

e se mistura feliz entre os corais e os rochedos que o disfarçam



não cai o pássaro do ninho às bátegas de chuva se por acaso

passou todo o inverno a entretecer os fios e ramos

(arquiteto e operário num mesmo bater de asas solícitas)

e agora ensaia à chuva o canto de outros bicos protegidos



assim vive a esperança ao canto às vezes inútil do poeta

assim caminham todos os que baqueiam embora e se levantam

e o tempo amarga cada pegada que na montanha deixam os pés

enrugados e feridos a galgar o lento caminho sempre para o alto 





13.6.2018


(Ilustração: Luis Ricardo Falero)

22 de jul. de 2018

amor roubado







noite insone ao lado do telefone celular

o recado que não retorna a ligação que não se atende

ela tem olheiras profundas quando vai para o trabalho

o celular junto ao peito quem sabe a qualquer momento

o namorado dê sinal de vida um toque apenas um toque

o sinal abre e ela espera na calçada o olhar perdido

o celular junto ao peito o celular então toca o toque dele

ela sabe aquele funk é o toque dele enfim o retorno

ela tira o celular de entre os seios de sobre o coração

e olha por um momento extasiada a foto dele

e aperta a tela para atender até que enfim e ouve

as únicas palavras oi amor sou eu oi amor sou eu

e ela vê a moto rápida um raio a virar a esquina

e morre em seus ouvidos oi amor sou eu sou eu








6.7.2018

(Ilustração; Kiéra Malone)



Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no podcast:


- no youtube:


20 de jul. de 2018

viagem








dois pequenos lagos de promessas onde navegam sonhos

os dias claros ali passeiam por sobre tulipas estranhas

e os ventos não arrepiam o arvoredo baixo que os contornam



as bordas do vulcão vermelho são capazes de malabarismos

entre suspiros de enternecimentos as palavras e os gestos

a haste que vai e vem e os encontros fortuitos e poderosos



logo abaixo os pequenos picos pedem bocas ávidas de leite

e o mel que derramam sustentam paixões dissolutas

entretenimentos para tempos de verão ou inverno não importa



assim se percorre mais um pouco o país do evangelho do desejo

e a floresta negra esconde a macia caverna onde se gestam

futuros e onde se colhem paixões profundas do momento



o pequeno sino ali toca a música de todos os tempos

assinalando à ansiada estertoração dos sentidos a mágica

a mágica lembrança do big-bang a explodir estrelas



e então se chega aos anéis que só se abrem à passagem

do dragão se a batalha for líquida e entre promessas infinitas

porque ali está enfim a aurora que prenuncia o paraíso 





13.6.2018




(Ilustração: François Boucher, Ruhendes Mädchen -1752)




17 de jul. de 2018

vento






na rua calma de fim de tarde de repente

um vento arisco levanta a saia da moça

e deixa que somente eu veja o segredo

que ela esconde e só mostra a quem

guarda ouro em barra em bancos suíços





8.6.2018


(Ilustração: Maria Doina Cublesan - la solitude)





14 de jul. de 2018

veleiro









o vento venta



inflada a vela

o veleiro voa

navega à vaga

arrasta a vida



arrosta o vento

enrosca a vela

naufraga o sonho



deságua em vagas

o aguaceiro

naufraga a vela



o barco enfim

sufraga a morte

o vento amaina



a vida é vela



levada ao vento

vale o que sopra

o vento à vaga


24.5.2018



(Ilustração: Gustave Courbet - the wave)






11 de jul. de 2018

tristesse







sabe aquela noite profunda e escura

sabe aquela noite de tempestade e fúria

sabe aquela noite de frio intenso

quando todas as forças mais terríveis da natureza

se uniram numa só madrugada sem fim

o vento o frio o breu a chuva

das nuvens negras ao abismo apenas

raios iluminam de quando em quando

essa noite de terror e sofrimentos

de rios que inundam e casas que desabam

a morte rondando os berços onde dormem

as crianças esquecidas dos pais para sempre

os braços que somem na voragem

a desesperança plantada em cada peito

essa noite que o dia agora ilumina

essa noite maldita que deveria para sempre ser esquecida

essa noite amiudou-se num átimo

e encontrou o seu abrigo dentro do meu coração

e está aqui com jeito de ficar por muito muito tempo






30.5.2018

(Ilustração: Nicola Samorì)

9 de jul. de 2018

tango







abro a janela e o sol espanta a noite

de dentro de meu quarto

não de dentro de mim



leio até me lacrimejarem os olhos

os poetas loucos e os loucos poetas

não adianta



esfrego vigorosamente o chão

e deixo-o limpo de toda a sujeira

também não adianta



ingiro o que dizem ser a droga da felicidade

e espero um sorriso no rosto

mas ele não vem



à noite que ameaçava eternizar-se dentro de mim

peço então que se vá embora ao som de um tango

ao som de um tango bem marcado e bem tangado

e um tango bem tangado reorganiza enfim

uma a uma as sinapses de meu cérebro

e as asas do anjo torto que em mim habita

não se derretem mais ao calor do sol

não não se derretem mais não se derretem

pelo menos por um tempo de voo

por um tempo de voo que me permita

pousar no galho de uma mangueira em flor





9.6.2018


(Ilustração: Odires Mlazho)





7 de jul. de 2018

solidão








redemoinha em meu cérebro o pensamento

quando estou só comigo mesmo

inventam-se ideias

regurgitam-se emoções

sonham-se sonhos

despertam-se lembranças

águas turvas de sensações tornam-se claras

escancara-se à dor de viver o regozijo do encontro

não há complacência ao desencanto

e o canto do encontro do vento com as águas

ressuscita o silêncio do meu ser

para fazer-me a unidade de mim com a humanidade

ter enfim todo o universo num só suspiro

e tudo quando nesses momentos aspiro

é continuar tecendo teias em que me enrede

até que o cérebro cansado se desfaça em luz



28.6.2018


(Ilustração: Paul Signac - 1863-1935, French)








4 de jul. de 2018

raízes podres








no tempo de raízes podres o sol se põe mais cedo 

o vento não traz alento enquanto o canto triste do fogo-apagou 

reboa na mata morta de terra em cinzas onde os bois pastam 

ruminando as folhas secas de um passado de flores e frutos 

o boi comeu a floresta e o homem come o boi e come a raiz podre 

que o boi rumina em surdina no fim do ciclo ao ciciar do vento 

a cidade distante não sabe de bois nada sabe de ventos 

a cidade distante é feita toda ela da raiz podre da floresta 

e morre um pouco mais a cada peido do boi que comeu a mata 

santos os dias em que não houve um rangido de morte 

ou um ronco súbito da motosserra debulhando o dente podre 

de quem mora sob as toras de aço do viaduto progressista 

o vento que sopra do capim seco queima a face do agiota 

e o sol açoita a bunda do dono do banco em busca de papagaios 

o boi comeu a mata e a mata agora mata o boi e mata o homem 

com as raízes podres do veneno que o vento venta nas ventas 

do capitalista que queima na caldeira do trem de ferro 

as últimas toras da última árvore pau-brasil que havia na margem 

do rio podre que vira o leite da criança que não verá o sol 

que se perdeu mais cedo atrás do rochedo nu da cidade morta 



20.6.2018




(Ilustração: Doug Johnsonson)



2 de jul. de 2018

quando se casa um príncipe







a realeza toda fica em festa

quando um príncipe se casa

e o povo que é feito de besta

nem se dá conta de que é ele

quem paga a conta da mordomia

sustentando uma aristocracia

que come e bebe e viaja e dança

e se diverte e prolifera

e nunca trabalha na vida

tudo à custa do suor dos tais súditos

que verão de longe a bela festa

sem poder nem cheirar nem provar

um só doce da grande comilança



então proponho que quando um príncipe

de qualquer nobreza nojenta e decadente

faz festa de casamento em seu castelo

que todo o povo possa cantar e dançar

não de alegria e de contentamento

mas a dança de guerra de bravos guerreiros

e todos – homens e mulheres e outros gêneros –

possam invadir a tal festa de casamento

rasgar o vestido da noiva

jogar para os gansos no lago o buquê

e prender o príncipe bem no alto

de uma torre como antigamente fazia

com seus inimigos a própria nobreza

e beber toda a beberagem destinada

aos poucos convidados escolhidos

e comer os docinhos requintados

e embrulhados como se fossem balas

do camelô ali da esquina

e chutar todos os traseiros

dos guardas empenachados

soltar dos arreios os cavalos

botar fogo no coche real

mijar na mitra do cardeal

pisar nos arranjos florais

subir nos altares e pisar no calo

dos músicos e cantores reais

pregar pregos nos assentos

da tal nobreza agora assustada

e fazer dançar a corte imperial

ao som de batuques bem batucados

entoar seus hinos de liberdade

no lugar dos cantos nupciais

quebrar bem quebrados os protocolos

de tal forma que nunca nos assombrem

e exilar para uma ilha bem distante

a rainha mãe e o rei já quase gagá

condenados para sempre a trabalhar

para pagar o que comem e consomem

e assim no casamento do tal príncipe

que não haja mais plebeus ou nobres

nem tronos nem coroas de brilhante

porque quando se casa um príncipe

é a hora da vingança do povo esquecido

dessa gente que vive e se lambuza

do sangue e suor do povo

que eles sempre pisotearam






17.5.2018


(Ilustração: Nancy Farmer - royal wedding)