29 de jun. de 2019

inverno





queria um inverno bem frio

para que eu pudesse enovelar-me em mim

queria um inverno bem gelado

como desculpa para não pôr os pés à rua

como desculpa para não sair da cama

como desculpa para não sair de mim

um inverno de noites gélidas

de manhãs de café quente e broa de milho

de anoiteceres de leite quente com chocolate

quando pudesse olhar para a neblina através da vidraça

e encontrar apenas o eco dos meus pensamentos

quando pudesse deixar-me viver

na quietude de lembranças profundas

ou apenas no esquecimento de futuros improváveis

queria sim um inverno tão frio

quanto a frieza de meus dias sem fim





25.6.2019

(Ilustração: Sharon York)

27 de jun. de 2019

infame tristeza





bateu no peito uma infame tristeza

de saudade de um outrora de esperança

quando havia mais futuro que passado

mais passos à frente que rastros atrás



bateu sim no peito a infame tristeza

que espalha pelo sangue o impulso fatal

de desonra diante do abismo que se teme

de onde nem mesmo o pai de hamlet voltou

ainda que nos assuste no palco seu fantasma



sabia o sábio shakespeare que era apenas

o truque do desejo de fuga e desespero



se bate no peito essa infame tristeza

não há porto seguro contra o mergulho

nas trevas do canto final da vida



23.3.2019

(Ilustração: Hannah Höch - over the water)



25 de jun. de 2019

geração hippie






1968 em paris e o fogo foi alto e houve gritos de susto

um novo tempo disseram um novo modo de viver disseram

e lutaram e cantaram e bateram e apanharam e morreram

por uma nova vida diziam por um novo mundo proclamavam

e o mundo rodou e girou e passou o tempo do novo tempo

1969 woodstock cantou o barro e a liberdade e o sexo

rolou droga e rolou o rock e jane joplin desceu de uma nuvem

e tantos rolaram e cantaram na chuva na insensatez

a paz a flor a esperança o vento que viria de novo um tempo

um tempo de amor e paz e paz e amor e flor e sexo livre

e a canabis nos lábios róseos e tempo novo e a vida livre

e o mundo rodou e girou e passou o tempo da vida livre

1975 acabou a guerra da indochina a guerra do vietnã

depois de tanta flor em canhão de tanta passeata e tantos

os urros e gritos e as vozes de paris e as vozes de woodstock

exultaram à mentira que era tudo aquilo quantos morreram

quantos pacotes negros chegando do oriente e choraram

todos o sangue que corria e então a guerra acabou

e todos esperavam um tempo de paz apenas um tempo de paz

e o mundo rodou e girou e passou o tempo de paz

plantaram fores no asfalto e criaram colônias de cabeludos

amaram e procriaram e os filhos dos hippies e os netos

dos hippies estão aí estão todos espalhados por aí

mas ah que merda ah que caretas idiotas eles são os filhos

os filhos dos hippies tão cristãos tão tolos e aplaudindo

qualquer pastor cretino qualquer político fascista que

lhes adoçam a boca por alguma arma contra a violência

ah que merda ah que caretas idiotas os filhos dos hippies





26.2.2019

  (Ilustração: Albert Gyorgy,  père et fils)

23 de jun. de 2019

escravos






bateram tambores nas matas das áfricas

bateram o mato os capitães de brasis

a pele do povo preto de lá

a pele do povo preto de cá



povo de raça povo de caça

savanas e matas de áfricas selvagens

povo guerreiro orgulho de reis

na pele as marcas do rito sagrado

batem tambores de troncos

na dança nas festas aos deuses

fogueiras acesas ao pé de baobás

na pele as marcas de espinhos das matas

na pele o orgulho de seres da noite



bateram tambores nas matas das áfricas

bateram o mato os capitães de brasis

a pele do povo preto de lá

a pele do povo preto de cá



a funda senzala ecoa o canto

lá fora a lua chora o sangue do banzo

o tronco não bate o ritmo da mata

no tronco a negra não dança o lundu

no corpo torcido açoita o açoite

o sangue que jorra precisa cobrir

cobrir de vergonha a marca de orgulho

fazer da pele o arauto do acato



já não batem tambores de ritos e deuses

já não dançam mulheres com filhos no colo

já não exibem guerreiros as marcas da caça

já não choram as crianças o medo do escuro

só a pele que brilha na noite da américa

nas sujas favelas de morros fedidos

sabe a sal e salmoura na dor da ferida

negros e negras de pele curtida

não têm mais lembranças dos tempos

dos tempos das áfricas de matas e rios

apenas na pele a marca do açoite

escravos que eram escravos que são 






21.9.2019 

(Ilustração: Samburu tribe of north-central Kenya) 



20 de jun. de 2019

como uma gata






quero você dormindo como uma gata

como uma gata bem preguiçosa

a colear em meus braços dentro da noite

dentro da noite calma e fria de junho

quando lá fora brilha o corno da lua nova



quero você ronronando suave em sonhos

em sonhos inalcançáveis de prazer e gozo

gata em cios de passados que assimilo

gata em leitos tantos aglutinados agora

em purezas inauditas nos braços meus



quero você abrindo os olhos felinos a desejar

os desejos que sonhei em campos de begônias

ou talvez eu queira apenas o seu espreguiçar

em longos e leitosos anseios do momento

para dizer que tanto amo sua felina preguiça

quanto a flor de seu anseio aos beijos meus

no limite do encontro de nossa eternidade





11.6.2019

(Ilustração: Hans Bellmer)

18 de jun. de 2019

belle époque





há exatamente um século na europa destroçada

artistas

poetas

músicos

escultores

fotógrafos

dançarinos

pintores

loucos todos eles pelo absinto

morriam tísicos

morriam com a espanhola

morriam

deixando registros de dor sim

suicídios e lágrimas

lágrimas e suicídios

juventude enterrada em chão de flores

deixando no lodo das ruas as pegadas

inefáveis garantias de futuros

inimagináveis futuros para tantos

que do fundo da terra nunca sonharam

vilipendiados e apupados em vida

pisados os seus talentos em becos sujos

famélicos exércitos a gritar pelas ruas

ouvidos e sentidos e vendidos por milhões

tanto tanto tempo depois do grito

devaneios em dólares e libras e euros vertidos

não sapateie o século xxi sobre seus túmulos

que a mão do mercado conspurcou

deixemo-los cadáveres insepultos vagando ao léu

entupidos de cocaína e absinto e formidáveis visões

das ruas de paris aos becos de londres e nova iorque

que gritem pregões e vozes roucas de leiloeiros

os monstros sagrados já não provocam espanto

passeiam de fraque pelas alamedas de são francisco

comem spaguetti no coliseu ou fodem nas academias

de patetas e poetas anônimos no alto de arranha-céus

das ruas sujas de paris ao bas-fond de buenos aires

cantar e dançar e escrever e pintar que seja tudo

tocado pela mão mágica de financistas e vendido

no altar-mor da capela sistina do mercado mundial

não choremos nós os simples mortais a mortalidade

de uma juventude morta há um século em paris

que o tempo envelhece a si mesmo e come a todos

aqueles que um dia desejaram engaiolar seus segredos





3.6.2019

(Ilustração: Albert Herter - Le départ des poilus - août 1914)

16 de jun. de 2019

autorretrato nº 5







não sou bicho do campo nem da cidade

digo apenas que sou um bicho

um cão sem dono a revirar o lixo

tendo perrengues com a verdade



se às vezes até para mim eu minto

dizendo a todos sou filho de rei

sempre digo a todos com certeza

que viva o quanto viva nada sei

nem de mim nem deste mundo

e se me chamasse raimundo

seria ainda criança dentro de mim

embora olhe para tudo assim sisudo



pareço-me um pouco àquele capim

que nasce no meio de tudo

pobre planta que mata planta

e só se me provocam viro bicho



no mais das vezes sou apenas

aquele mesmo cão a viver do lixo

e assim a cheirar coisas pequenas

viro vira-lata com lua na garganta

velho ranzinza nascido jovem fingido

ouro falso e muito mal tingido

catador de histórias e de poemas

colecionador de sonhos mentirosos

a derreter no verbo todo o espanto

da espera de dias mais ditosos



talvez esse tudo que acima disse

nem seja mesmo o que eu penso

o que sobre mim escrevo e versejo

porque apenas o que sinto e vejo

é que a vida me leva à estultice

como leva o vento um leve lenço



28.4.2019 




(Ilustração: Carl Spitzweg)





14 de jun. de 2019

anacoreta






em tempo remoto meu desejo teu desejo encontrou

marcados ambos por destinos vagos e cruéis o amor

me condenou ao exílio de furnas e desertos por ti

sofrendo o desencanto a dor e o estilhaçamento

do meu coração em pétrea luz de luas crescentes

num riacho de sangue de antinoópolis as feridas

lavadas correram para um mar desconhecido

tão longe de ti estava que numa crise monaquista

encerrei meus mistérios nos mistérios das pedras

percorri com trajos cenobitas os caminhos ascetas

capadócio em terras de capadócios ergui a coluna

como qualquer estilista em busca de deus de carne

a tua carne a atormentar meus grilhões ao vento

à chuva ao escárnio dos corvos a picar meu peito

e tanto sofri no meu desejo de rever teu desejo

que um dia um corvo de mim se compadeceu

picou de vez meu peito e levou para sua furna

um coração ferido que não deixou de ser teu





4.5.2019

(Ilustração: Salvador Dalí)

12 de jun. de 2019

alegria







tiro a foto de mim mesmo 

o que hoje chamam de selfie 

olho-me bem no meu olho 

vejo riso e o sarcasmo 

chega à minha língua 

e me chamo de belo 

(e claro ao cair em mim) 

de perfeito cretino 

e é isso apenas a alegria 

tão breve quanto a vida 





11.3.2019 



(Ilustração: autorretrato - Salvador Dali)



10 de jun. de 2019

agostiníada




 

agostinho saiu da alta idade média

veio caminhando através dos séculos

abrindo abismos por onde ronda a sombra de deus

até que um dia o abismo olhou de volta para agostinho

abriu um sorriso de dentes raivosos por debaixo

de imensos bigodes que nada tinham de amistosos

e os dois se olharam como se olham dois filósofos

odiaram-se à vista primeira de cada uma de suas obras

eivadas todas de complexas razões de vida e de história

não era o filósofo de grandes bigodes nenhum gato

para ser alisado por razões pitagóricas e abanar o rabo

não era agostinho o bondoso antagonista anafórico

a pescar em abismos de deuses mortos e fedidos

tentou escarnecer das dúvidas e da dureza

dos pelos do bigode humano demasiado humano

daquele anti-filósofo que cantava óperas de wagner

sendo que o tal que se dizia santo nunca ouvira

sequer uma orquestra quanto mais uma ópera

mas os séculos tinham seus abismos próprios

e os caminhos todos levavam ao nada

apertaram-se as mãos os dois filósofos em respeito

àquilo que um dia pensaram e escreveram

nietzsche deu-lhe um tapinha nas costas e isso

foi o suficiente para que toda a idade média

saísse-lhe pela boca em gosmas de monges e papas

tomaram depois uma coca-cola e comeram juntos

um hambuguer no mac donald e às gargalhadas

viram o abismo ao pé do santo virar borbulhas

e o bigode do outro ser estampado pelo mundo

afora em camisetas de jovens descolados

que não sabem o que é escolástica nem repetem

uma só palavra do que falava o Zaratustra

porque é assim a humanidade - como as cores

do arco-íris se dissolvem no ar denso depois

da chuva assim se dissolve qualquer filosofia





6.5.2019

(Ilustração: Paul-Delvaux - The skeleton and the shell)


8 de jun. de 2019

acumulador





réu confesso que sou

um acumulador

coleciono obsessivamente

poemas

não só os meus mas de

poetas de todos os idiomas

de todos os lugares

poemas

em que haja a mais fina

poesia

poemas em que haja a mais profunda

filosofia

poemas em que haja amores

permitidos e proibidos

poemas em que haja histórias

edificantes

de flores e fontes

de dores de escravos

de revoltas e solidões

poemas em que haja esperanças

e desesperanças

lamentos por filhos mortos

lamentos por nações mortas

e como dizem muitos

poemas escritos com

sangue

suor

lágrimas

poemas que expressam

desejos e tesões desencantados

poemas enamorados

de fadas em ninhos de arminhos

em rios e mares em ilhas de navegadores

poemas que cantam heróis

poemas que lamentam enforcados

poemas que cantam suicidas

poemas que exsudam loucura

poemas habitados por deuses

que do olimpo olham com desdém

a velha luta pela sobrevivência

poemas que cantam

o inferno

o purgatório

o céu

poemas desenganados por lutas de operários

cheios de todos os sonhos do ser humano

cheios de todos os pesadelos que nos atormentam

cheios de música e aliterações

poemas com asperezas de montanhas

e promessas de luas novas

poemas com ganidos de cães

e ronronar de felinos no plenilúnio

todos os poemas porque confesso

réu no banco das provas que sou

sim

sou um acumulador

de estrelas e cavernas

de mundos e pensamentos

expressos em linhas quebradas

pretensamente ritmadas

profusamente rimadas

ou livres como penas de pássaros

levadas à brisa da manhã

coleciono-os como objetos empilhados

no meu depósito de emoções

acumulados como as pedras das pirâmides

embrulhados como sonhos de padaria

enrolados em sinfonias de mahler

desfiados nas pedras do caminho

coleciono-os a todos

no meu desespero mais desencantado

de buscar num verso ou numa estrofe ou

até mesmo num simples fragmento

o que sou

o que somos

na tormentosa carreira da vida





11.3.2019

(Ilustração: Eliseu Visconti)

6 de jun. de 2019

ábaco






conto os dias

os meus dias idos e vividos

vívidos quase todos eles na memória

acrescento-lhes aqueles momentos

de prazer e alegria autenticamente sentidos

e a soma ao resultado pouco aumenta





conto os dias

os meus dias idos e convividos

elimino deles aqueles de trabalho insano

quando a vida exigia apenas o esforço da sobrevivência

e vejo que é tão ralo o resultado quanto

estão sobre a minha cabeça os fios brancos do tempo





conto os dias

os meus dias idos e divididos

entre o encanto de esperas e sonhos

e a dura caminhada entre pedras e espinhos

constato o quão dura deixou minha pele

o sol quente de verões sem trégua





conto os dias

os meus dias idos e multiplicados

pelos gozos e encantos entre mim trocados

e os muitos orgasmos tantos e provocados

pelas mulheres a quem amei para achar enfim

algum brilho nas pedras do meu ábaco





25.4.2019

(Ilustração: Hannah Höch)

4 de jun. de 2019

1969






o homem pisa na lua

homens de verde pisam

nos nossos pescoços

sugam nossas jugulares

matam nossas flores

bagunçam nosso jardim

a lua é branca e brilha

já as botas são pretas

e cheiram sempre a mesma

merda merda de gato





11.3.2019

(Ilustração: foto da internet, sem indicação de a.)

2 de jun. de 2019

zero




não houve em meus passos o bater de tambores

não se ouve em meus gritos o bater de ossadas

nego o meu campo de centeio em brisa debulhado

assim como nego o teu anseio por novos mundos

caminho apenas e caminhas comigo por vales

que um dia de pressa e de chuvas torrenciais

lavaram e levaram nossos sonhos e travessias

restou apenas de nossos passos a lama podre

presa para sempre na sola dos nossos sapatos

gritamos e não ouvimos nunca de volta o som

de qualquer grito ou de qualquer sonata

quando quedas d’água surgidas de nossos olhos

queimaram a pele que esturricava ao sol

e então minha cara companheira de infortúnio

tudo o que era dia virou apenas o buraco negro

de onde surgiram dragões e fogos infernais

comendo as carnes que antes cobriam ossos

deixando enfim nossas vidas no ponto zero





29.5.2019


(Ilustração: René Magritte - La lampe philosophique; 1936)