há exatamente um século na europa destroçada
artistas
poetas
músicos
escultores
fotógrafos
dançarinos
pintores
loucos todos eles pelo absinto
morriam tísicos
morriam com a espanhola
morriam
deixando registros de dor sim
suicídios e lágrimas
lágrimas e suicídios
juventude enterrada em chão de flores
deixando no lodo das ruas as pegadas
inefáveis garantias de futuros
inimagináveis futuros para tantos
que do fundo da terra nunca sonharam
vilipendiados e apupados em vida
pisados os seus talentos em becos sujos
famélicos exércitos a gritar pelas ruas
ouvidos e sentidos e vendidos por milhões
tanto tanto tempo depois do grito
devaneios em dólares e libras e euros vertidos
não sapateie o século xxi sobre seus túmulos
que a mão do mercado conspurcou
deixemo-los cadáveres insepultos vagando ao léu
entupidos de cocaína e absinto e formidáveis visões
das ruas de paris aos becos de londres e nova iorque
que gritem pregões e vozes roucas de leiloeiros
os monstros sagrados já não provocam espanto
passeiam de fraque pelas alamedas de são francisco
comem spaguetti no coliseu ou fodem nas academias
de patetas e poetas anônimos no alto de arranha-céus
das ruas sujas de paris ao bas-fond de buenos aires
cantar e dançar e escrever e pintar que seja tudo
tocado pela mão mágica de financistas e vendido
no altar-mor da capela sistina do mercado mundial
não choremos nós os simples mortais a mortalidade
de uma juventude morta há um século em paris
que o tempo envelhece a si mesmo e come a todos
aqueles que um dia desejaram engaiolar seus segredos
3.6.2019
(Ilustração: Albert Herter - Le départ des poilus - août 1914)
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