inexplicável a montanha ante meus olhos
envolta em bruma envolta em luar
inalcançáveis talvez aos olhos nascentes
as trilhas para seus altos relevos
ferem meus passos no passo lento
vou em busca de mim
vou em busca de ti
nasço em cada horizonte e em cada pedra
peço lua para meus passos e peço sol para os meus olhos
e a bruma envolve meus desejos
há esperança na subida
não há esperança na chegada
apenas o lento caminhar
apenas o arfar do peito já cansado
o querosene queima na lamparina
o menino lê
desenlaça da fuligem poemas que não escrevi
quando a esperança se enrosca num teto podre
só restam as palavras
e os poemas dançam liturgias que matam a fome
há fuligem no teto como há fuligem hoje nos meus passos
ando descalço pelas pedras rotas de ruas tortas
a pipa arrebenta a linha e desaparece ao vento
sonhar é possível e os sonhos são a vida
ou são apenas sonhos como disse um poeta
seca ao sol o sangue dos pés que fica nos veios das pedras
mas o sangue das memórias que pinga no coração
deixa a marca de fantasmas de outrora no sonho de agora
ouço o cantar de sabiás e o ruflar de asas de colibris
os ouvidos ouvem - eles ouvem
o coração segue mudo e incandescente ao luar
sonho contigo menino de pés feridos nos espinhos do ora-pro-nobis
sonho contigo e compreendo hoje o teu lento despertar
ouvias os poetas e não as estrelas até que um dia as estrelas
capturaram para sempre o teu olhar
e agora a montanha está no horizonte indelével
pluma de pipa ou pipa ao vento ou pedra de lua
hás de seguir as estrelas mesmo que não haja
mais estrelas na noite de bruma
vejo a janela semiaberta ao olho curioso
e tu sabes menino de coração mole
que esse olho olha apenas por olhar
não te olha por te amar
sobes às árvores para cantar como os pássaros
mas tuas asas ainda não se cobriram de penas
e o voar é sonho que a montanha enovela em nuvens
o jogo rola e rolam bolinhas coloridas na terra vermelha
o lápis roto copia as letras redondas da cartilha
o índio da capa leva às costas um curumim
e o futuro improvável e sonhado de um país
árvores e pedras
riachos e cachoeiras
mangas e jabuticabas
os caminhos agora levam ao morro não à montanha
a água corre e leva lágrimas e o esperma ralo
na tua [minha] noite de espreitas e suspeitas
há sonhos vagos de virgens na brancura dos lençóis
vento e gritos povoam pulos e perseguem pintassilgos
a tarde se esboroa em torno do campinho vermelho
e a bola de fogo do sol faz mais um gol atrás do barranco
o fogão a lenha esquenta a sopa e a mãe mata o escorpião
tua perna arde ao fogo da brincadeira estúpida
e o trenzinho de caixa de fósforos deixa trilhas de dor
nas tuas longas noites de fogueiras perdidas
adormeces sob estrelas e acordas na noite de fogos
uma tempestade na madrugada e o medo e há também
um grilo que se esgoela sob as tábuas do assoalho
da caixinha de linhas da irmã nascem cisnes numa toalha
a máquina singer sussurra vestidos floridos
na transmissão contínua de suas rodas e roldanas
a vida costurando tramas e enredos
cerzindo buracos de saudade
e cobrindo de cores botões esmaltados de desejos
a noite é negra e quieta quando não há histórias de fantasmas
o grupo escolar tem cheiro de borracha e tinta
e cheiro de algazarra e puxão de orelhas
ano primeiro no velho grupo o teu amigo para sempre
o amigo da carteira ao lado e do lado esquerdo do teu peito
onde ficam para sempre as amizades
como cantou um dia o molequinho de três pontas
que quebrou as esquinas do mundo com sua música
o velho grupo escolar – o teu velho grupo escolar
lembra aquela menina negra de tranças
tão distraída em suas lições que perdeu o lápis
nas tranças negras e a sala inteira procurava
e aquela outra menina por quem teus olhos se encantaram
ah o meu velho grupo escolar
tu estás agora no alto da escadaria e todos olham para ti
lês um discurso menino sem jaça o primeiro talvez o único
teus joelhos tremem e tua voz é a voz do curumim
e o curumim olha a montanha inefável e vai embora
tu tiveste um amigo curumim e com ele folgaste
pelas tardes e pelas noites de cantigas e pique-esconde
perdeu-se em belos horizontes teu amigo índio
perdeu-se para sempre e deixou em ti o rastro
de todos os curumins e de todas as risadas de rio
a praça ainda está lá e não é mais a mesma em seu mutismo
vai mais além no teu caminho grita a coruja ao fim da curva
sim vou sim vou sim eu respondo – tu respondes –
e meu pé - o teu pé – descalço arde na pedra
sombrio o tempo que não percebeste
de pouco pão e muito sibilar das rodas da singer
aos pés da tua mãe noite e dia noite e dia
o pai passado para pátrio poder de outras possibilidades
só o irmão que morava na cidade do morro de três picos
só o irmão que foi o teu pai mais que o pai muito mais
não te esqueças nunca menino de calças curtas
não te esqueçam momentos como raios
momentos como traços de luz
no bico do pássaro o fruto proibido
a porta da fábrica de tecidos
a fábrica a tecer as mãos hábeis
da irmã que bordava – o prédio oval
tu gritas murcha cadela e a sensitiva
ao contato de teus dedos murchava
quanto murcharam depois os anos
a negra bonachona enche a marmita
o cheiro do bife e do arroz com feijão
tantos momentos longos apertados no passo dos pés
que sobem o caminho da montanha
os trilhos lerdos levam o bonde ladeira acima
tilintam campainhas na minha memória
- tu és eu ou sou tu? – não chores menino
sempre há vento em agosto
sempre há festa e jogos nos campos do colégio dos ricos
e meninas bonitas que não se podem namorar
uma vez a noite se encheu de trinos
e a voz do tenor italiano rompeu as paredes do velho auditório
que um dia também recebeu o concerto do jovem pianista que correu o mundo
há frio e lua nas cordas dos violões em serenata
e a canção do adeus agarra-se às folhas das buganvílias
ouve o teu coração menino carente
deixa a angústia de agora para o cimo da montanha
teus amores todos te abandonaram
e a cidade grande comeu teus desejos
calçarás um dia os sapatos que agora te faltam
e serás infeliz assim como todos os que dormem
em lençóis de cetins e travesseiros de penas de ganso
goza agora a tua liberdade menino de nariz sujo
mesmo que as pedras das ruas tortas mordam teus pés
uma caneta tinteiro te fez príncipe e teu amigo invisível
não te conta mais histórias da carochinha
uma garota nua sai de detrás da pedra
o teu primeiro deslumbramento veio do frio do norte
- esconde rápido essa revista menino – esconde
teus olhos piscam – o pecado pisca – o capeta pisca
há cheiro de velas no ar e o altar esplende em rezas
tua mãe se curva com o véu negro da fé
e os missionários tilintam terços negros na noite de esconjuros
a fé não moveu tua montanha e ela está lá – impenetrável
duas aranhas negras se engalfinham aos teus olhos atentos
o mandacaru escancara flores brancas na noite de lua
e o rádio traz notícias da morte do presidente
a criançada espalha-se pela praça pulando a alegria
das aulas suspensas e encontra o cenho carregado dos adultos
o luto está acima de todas as tuas suspeitas – menino liberto
o canto do bem-te-vi não te comove se bica a manga mais amarela
o pôr do sol atrás do morro traz apenas sopa e sono e sonhos
a mãe canta uma canção de tristeza e a noite cai ao peso
do edredom colorido feito de sobras de tecido
tecidos inteiros que passeiam que bailam que viajam
nos corpos interditos vestidos pelas rodas da singer
quando os ponteiros se encontram voltados para o infinito
boa noite amor meu grande amor – canta o cantor ao meio-dia
um rei que morre depois de cantar para todas as crianças
ferve a água para o angu doce
o leite sobe na leiteira e a mãe coa a nata para o pão
o pão de sal com café ralo e doce de carinho de mãe
o gato ronrona entre tuas pernas
o jogo de botão tem lances de copa do mundo
o tempo flui nas florações do manacá
dançam as horas no relógio de parede da casa da tia
corre cotia corre a tia costura o tio os sapatos
cheiro de cola que cola no pelo do gato no teu colo
bota o retrato do velho bota no mesmo lugar
mas o velho se matou e não houve aulas
um cavalo tem uma estrela na testa
cavalga na noite de lua cheia
agosto de novo e a festa e as meninas bonitas na arquibancada
enquanto rola a bola ou voam corpos pelos ares
sonha-se a possibilidade de entrever de uma descuidada
sob a transparência de uma calcinha branca
a sombra negra de um desejo que não sabes bem o que é
e levas para a noite sonhos e temores desconhecidos
que molham tuas pernas
o cristo morto cruza as ruas ao som da matraca
e então a voz da verônica ecoa e o rosto crucificado
tem a tristeza de todas as tardes sem futuro
no meio da redondez da lua nos passos porosos pelos paralelepípedos
soldados romanos marcham marcados passos ao som de tambores
passa a procissão pelos teus olhos de pecador e agora
bandeirinhas tremulam ao dobrado da banda militar
o setedesetembro é apenas pés que pisam com força a pedra da rua
a cidade é longa como o ventre da baleia que engoliu jonas
bebes a foto do papa na revista – um rei sobre um trono suspenso
baba o papa mas sua baba ainda não tem a cor do sangue judeu
tu já sabes ler – menino endiabrado – e um santo louco
abre para ti as portas do seminário de noites solitárias
e tu lês a revista católica da mãe e as revistas de fofocas da cunhada
geme baixinho o filho doente do teu irmão e ele mata o pintassilgo
cantava enquanto o menino parecia morrer
passou a morte e não levou o menino
levou apenas as penas do passarinho
um dia é igual a uma noite e uma noite é igual a um dia
na melopeia do canto do grilo ou do canto da missa do galo
a vida tem o tamanho da mangueira e a inexpugnabilidade
do abacateiro – no quintal um dia um tatu
alguém o matou e hoje tu choras o pedaço de carne que comeste
e também um ouriço na ameixeira e patos e galos e galinhas
há instantes que não passam porque o tempo parou ali
e teus olhos espreitam fantasmas e inventam sombras
as paredes rachadas de uma casa velha escondem sonhos
e o sopro de vida que pode apagar-se à brisa da tarde
cães que ladram para a lua e a lua que ladra para ti
sombras apenas sombras povoam tuas lembranças
uma flor no balcão da varanda da casa da menina todas as noites
e o amor que bate no dedão do pé e arrepia teus cabelos
há uma foto de primeira comunhão de que tu não te lembras
mas vivem os versos de camões do livro que teu padrinho te deu
no dia de tua formatura e teu irmão te disse que um dia
tu serias homem para que ele te desse uma surra
- ele nunca te bateu – e a surra doeu para sempre
memórias breves e sutis perpassam sob tuas pupilas cansadas
há esperança no passado – não há esperança no presente –
não semeias mais esperança de futuro – o tempo
esgota-se na memória o tempo do sonhar e o tempo do viver
a liberdade nas águas da cachoeira e no lambari que se esconde
atrás da pedra há um olho que olha e te diz que o mundo
escorre como a água do riacho para o rio e do rio para o mar
não chores – menino de águas noturnas – não te esperam
ainda os espinhos dos caminhos e tens apenas teus olhos
para descobrir a inefável trilha da montanha
não chores ainda que a vida é apenas a bola
que não entrou no gol e o gol que não viste nem comemoraste
sobe a rua torta – menino – sobe e ouve o piano
é música dos salões que nunca pisarás – dos salões da burguesa gente
ouve apenas que ela – a música – é tudo quanto terás
o caminho para o alto da montanha pontilha notas de sonatas
e os teus pés tropeçam a cada pedregulho que rola abaixo
tens apenas tuas palavras e tua imaginação para voar
e voarás apenas na imaginação das tuas palavras
- menino de sonhos ineficazes – menino de uma cidade encoberta
acordo a minha infância
adormecida em berço de folha seca e solidão
correr de novo a praça de árvores de copas redondas
esconder meu sonho atrás de ciprestes que exalam
o odor da note sem lua
saias que giram ao canto lento
ciranda cirandinha
o cravo a rosa o espinho
a sofreguidão da vida que nasce e renasce
o suspiro estagnado na garganta
os mocinhos matadores de índios que pulam das capas de revistas
cowboy de papel colorido que o tempo redesenhou
o filme proibido na tela do cinema de poltronas de madeira
e gritos da plateia quando a mocinha aparecia quase nua
um balão que não cai nunca na rua do sabão
a jabuticabeira enlouquecida de frutos negros
e o espanto do cão ao provar a jabuticaba – era sua fruta proibida
e ele não sabia – depois passou mal
um paraíso de lata e papelão e mandacaru – o laboratório
misturas estranhas e estranhos cheiros em vidros coloridos
trilhas no mato uma pele esquecida de cobra
e a falsa coral esgueirando-se rápida ao arrepio dos passos
noites longas de chuva e frio
a tosse do avô no quarto ao lado
o cheiro de fumo de seu cigarro de palha
o mundo mínimo de formigas em paus podres
o cheiro do café quente escorrendo no coador
a lenha que crepita e aquece no fogão um pedaço de lua
que teima em espiar pela fresta da porta de madeira velha
esfumam-se os olhos negros nas névoas de junho
distante o som de um piano na noite
só a imaginação do menino as figuras que dançam e bebem e conversam
a aurora de loucos sonhos desmanchada pela hora de ir para a escola
uma pedra filosofal
um veio de ouro
no barranco mágico o colorido da terra e da argila
o vento de âmbar ao som da singer
roda o destino ao corno da lua
cores da noite
cores do dia
o jogo jogado numa só esperança
a semente do homem nos olhos do menino – eu?
de novo os olhos negros no negrume da noite
a janela iluminada ao badalar do relógio de pêndulo
noites de lua e versos
noites de busca da rima que não vem
que não vem
que não vem
e esfuma-se o poema na letra de forma
o menino – eu? – pensa a poesia
a poesia que voa nas asas dos sanhaços
manga madura ao sol da tarde – sol e manga amarelos como a esperança
a esperança que pisa os caminhos tortos
na trilha do cabelo repartido ao meio no alto da cabeça
o gosto de trigo da hóstia que se dissolve na boca
os pecados todos peneirados na tela negra
que separa a voz da salvação do olhar do pecador
os joelhos ralados no genuflexório
promessas que nunca serão cumpridas
no sonho mau das noites de espera
sonhos quebrados e alquebrados nas quebradas do morro
a lenta e leve poeira de ouro do fim da tarde
o ouro do sol contra o azul do céu
sombra que prevalece no verde dançante das folhas de bananeira
haverá sempre estrelas nos olhos do menino
haverá sempre estrelas nos meus olhos
estejamos ambos – eu e o menino –
(e já não sei mais se sou eu o menino ou se o menino sou eu)
rumando ou não a passos trêfegos para o alto da montanha
porque a montanha – sei eu agora o que sempre soube o menino –
representa o que todos dizem ser a metáfora da própria vida
inalcansavelmente inexplicável
inexplicavelmente inalcançável
a montanha ante meus olhos
envolta em bruma envolta em luar
inalcançáveis talvez aos olhos nascentes
as trilhas para seus altos relevos
ferem meus passos no passo lento
inexplicáveis – tolamente inexplicáveis -
as pedras – as pedras – a pedra de lua
26.6.2020
Ouça esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço:
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