31 de dez. de 2020

pedra de lua

 





inexplicável a montanha ante meus olhos

envolta em bruma envolta em luar

inalcançáveis talvez aos olhos nascentes

as trilhas para seus altos relevos

ferem meus passos no passo lento

vou em busca de mim

vou em busca de ti

nasço em cada horizonte e em cada pedra

peço lua para meus passos e peço sol para os meus olhos

e a bruma envolve meus desejos



há esperança na subida

não há esperança na chegada

apenas o lento caminhar

apenas o arfar do peito já cansado



o querosene queima na lamparina

o menino lê

desenlaça da fuligem poemas que não escrevi

quando a esperança se enrosca num teto podre

só restam as palavras

e os poemas dançam liturgias que matam a fome

há fuligem no teto como há fuligem hoje nos meus passos

ando descalço pelas pedras rotas de ruas tortas

a pipa arrebenta a linha e desaparece ao vento

sonhar é possível e os sonhos são a vida

ou são apenas sonhos como disse um poeta

seca ao sol o sangue dos pés que fica nos veios das pedras

mas o sangue das memórias que pinga no coração

deixa a marca de fantasmas de outrora no sonho de agora



ouço o cantar de sabiás e o ruflar de asas de colibris

os ouvidos ouvem - eles ouvem

o coração segue mudo e incandescente ao luar

sonho contigo menino de pés feridos nos espinhos do ora-pro-nobis

sonho contigo e compreendo hoje o teu lento despertar

ouvias os poetas e não as estrelas até que um dia as estrelas

capturaram para sempre o teu olhar

e agora a montanha está no horizonte indelével

pluma de pipa ou pipa ao vento ou pedra de lua



hás de seguir as estrelas mesmo que não haja

mais estrelas na noite de bruma

vejo a janela semiaberta ao olho curioso

e tu sabes menino de coração mole

que esse olho olha apenas por olhar

não te olha por te amar

sobes às árvores para cantar como os pássaros

mas tuas asas ainda não se cobriram de penas

e o voar é sonho que a montanha enovela em nuvens

o jogo rola e rolam bolinhas coloridas na terra vermelha

o lápis roto copia as letras redondas da cartilha

o índio da capa leva às costas um curumim

e o futuro improvável e sonhado de um país





árvores e pedras

riachos e cachoeiras

mangas e jabuticabas

os caminhos agora levam ao morro não à montanha

a água corre e leva lágrimas e o esperma ralo

na tua [minha] noite de espreitas e suspeitas

há sonhos vagos de virgens na brancura dos lençóis

vento e gritos povoam pulos e perseguem pintassilgos

a tarde se esboroa em torno do campinho vermelho

e a bola de fogo do sol faz mais um gol atrás do barranco

o fogão a lenha esquenta a sopa e a mãe mata o escorpião

tua perna arde ao fogo da brincadeira estúpida

e o trenzinho de caixa de fósforos deixa trilhas de dor

nas tuas longas noites de fogueiras perdidas



adormeces sob estrelas e acordas na noite de fogos

uma tempestade na madrugada e o medo e há também

um grilo que se esgoela sob as tábuas do assoalho

da caixinha de linhas da irmã nascem cisnes numa toalha

a máquina singer sussurra vestidos floridos

na transmissão contínua de suas rodas e roldanas

a vida costurando tramas e enredos

cerzindo buracos de saudade

e cobrindo de cores botões esmaltados de desejos



a noite é negra e quieta quando não há histórias de fantasmas

o grupo escolar tem cheiro de borracha e tinta

e cheiro de algazarra e puxão de orelhas

ano primeiro no velho grupo o teu amigo para sempre

o amigo da carteira ao lado e do lado esquerdo do teu peito

onde ficam para sempre as amizades

como cantou um dia o molequinho de três pontas

que quebrou as esquinas do mundo com sua música

o velho grupo escolar – o teu velho grupo escolar

lembra aquela menina negra de tranças

tão distraída em suas lições que perdeu o lápis

nas tranças negras e a sala inteira procurava

e aquela outra menina por quem teus olhos se encantaram

ah o meu velho grupo escolar

tu estás agora no alto da escadaria e todos olham para ti

lês um discurso menino sem jaça o primeiro talvez o único

teus joelhos tremem e tua voz é a voz do curumim

e o curumim olha a montanha inefável e vai embora

tu tiveste um amigo curumim e com ele folgaste

pelas tardes e pelas noites de cantigas e pique-esconde

perdeu-se em belos horizontes teu amigo índio

perdeu-se para sempre e deixou em ti o rastro

de todos os curumins e de todas as risadas de rio

a praça ainda está lá e não é mais a mesma em seu mutismo



vai mais além no teu caminho grita a coruja ao fim da curva

sim vou sim vou sim eu respondo – tu respondes –

e meu pé - o teu pé – descalço arde na pedra

sombrio o tempo que não percebeste

de pouco pão e muito sibilar das rodas da singer

aos pés da tua mãe noite e dia noite e dia

o pai passado para pátrio poder de outras possibilidades

só o irmão que morava na cidade do morro de três picos

só o irmão que foi o teu pai mais que o pai muito mais

não te esqueças nunca menino de calças curtas

não te esqueçam momentos como raios

momentos como traços de luz



no bico do pássaro o fruto proibido

a porta da fábrica de tecidos

a fábrica a tecer as mãos hábeis

da irmã que bordava – o prédio oval

tu gritas murcha cadela e a sensitiva

ao contato de teus dedos murchava

quanto murcharam depois os anos

a negra bonachona enche a marmita

o cheiro do bife e do arroz com feijão

tantos momentos longos apertados no passo dos pés

que sobem o caminho da montanha

os trilhos lerdos levam o bonde ladeira acima

tilintam campainhas na minha memória

- tu és eu ou sou tu? – não chores menino

sempre há vento em agosto

sempre há festa e jogos nos campos do colégio dos ricos

e meninas bonitas que não se podem namorar



uma vez a noite se encheu de trinos

e a voz do tenor italiano rompeu as paredes do velho auditório

que um dia também recebeu o concerto do jovem pianista que correu o mundo

há frio e lua nas cordas dos violões em serenata

e a canção do adeus agarra-se às folhas das buganvílias



ouve o teu coração menino carente

deixa a angústia de agora para o cimo da montanha

teus amores todos te abandonaram

e a cidade grande comeu teus desejos

calçarás um dia os sapatos que agora te faltam

e serás infeliz assim como todos os que dormem

em lençóis de cetins e travesseiros de penas de ganso

goza agora a tua liberdade menino de nariz sujo

mesmo que as pedras das ruas tortas mordam teus pés



uma caneta tinteiro te fez príncipe e teu amigo invisível

não te conta mais histórias da carochinha

uma garota nua sai de detrás da pedra

o teu primeiro deslumbramento veio do frio do norte

- esconde rápido essa revista menino – esconde

teus olhos piscam – o pecado pisca – o capeta pisca

há cheiro de velas no ar e o altar esplende em rezas

tua mãe se curva com o véu negro da fé

e os missionários tilintam terços negros na noite de esconjuros

a fé não moveu tua montanha e ela está lá – impenetrável



duas aranhas negras se engalfinham aos teus olhos atentos

o mandacaru escancara flores brancas na noite de lua

e o rádio traz notícias da morte do presidente

a criançada espalha-se pela praça pulando a alegria

das aulas suspensas e encontra o cenho carregado dos adultos

o luto está acima de todas as tuas suspeitas – menino liberto

o canto do bem-te-vi não te comove se bica a manga mais amarela

o pôr do sol atrás do morro traz apenas sopa e sono e sonhos

a mãe canta uma canção de tristeza e a noite cai ao peso

do edredom colorido feito de sobras de tecido

tecidos inteiros que passeiam que bailam que viajam

nos corpos interditos vestidos pelas rodas da singer



quando os ponteiros se encontram voltados para o infinito

boa noite amor meu grande amor – canta o cantor ao meio-dia

um rei que morre depois de cantar para todas as crianças

ferve a água para o angu doce

o leite sobe na leiteira e a mãe coa a nata para o pão

o pão de sal com café ralo e doce de carinho de mãe

o gato ronrona entre tuas pernas

o jogo de botão tem lances de copa do mundo

o tempo flui nas florações do manacá

dançam as horas no relógio de parede da casa da tia

corre cotia corre a tia costura o tio os sapatos

cheiro de cola que cola no pelo do gato no teu colo

bota o retrato do velho bota no mesmo lugar

mas o velho se matou e não houve aulas

um cavalo tem uma estrela na testa

cavalga na noite de lua cheia

agosto de novo e a festa e as meninas bonitas na arquibancada

enquanto rola a bola ou voam corpos pelos ares

sonha-se a possibilidade de entrever de uma descuidada

sob a transparência de uma calcinha branca

a sombra negra de um desejo que não sabes bem o que é

e levas para a noite sonhos e temores desconhecidos

que molham tuas pernas



o cristo morto cruza as ruas ao som da matraca

e então a voz da verônica ecoa e o rosto crucificado

tem a tristeza de todas as tardes sem futuro

no meio da redondez da lua nos passos porosos pelos paralelepípedos

soldados romanos marcham marcados passos ao som de tambores

passa a procissão pelos teus olhos de pecador e agora

bandeirinhas tremulam ao dobrado da banda militar

o setedesetembro é apenas pés que pisam com força a pedra da rua

a cidade é longa como o ventre da baleia que engoliu jonas

bebes a foto do papa na revista – um rei sobre um trono suspenso

baba o papa mas sua baba ainda não tem a cor do sangue judeu

tu já sabes ler – menino endiabrado – e um santo louco

abre para ti as portas do seminário de noites solitárias

e tu lês a revista católica da mãe e as revistas de fofocas da cunhada

geme baixinho o filho doente do teu irmão e ele mata o pintassilgo

cantava enquanto o menino parecia morrer

passou a morte e não levou o menino

levou apenas as penas do passarinho



um dia é igual a uma noite e uma noite é igual a um dia

na melopeia do canto do grilo ou do canto da missa do galo

a vida tem o tamanho da mangueira e a inexpugnabilidade

do abacateiro – no quintal um dia um tatu

alguém o matou e hoje tu choras o pedaço de carne que comeste

e também um ouriço na ameixeira e patos e galos e galinhas

há instantes que não passam porque o tempo parou ali

e teus olhos espreitam fantasmas e inventam sombras

as paredes rachadas de uma casa velha escondem sonhos

e o sopro de vida que pode apagar-se à brisa da tarde

cães que ladram para a lua e a lua que ladra para ti

sombras apenas sombras povoam tuas lembranças

uma flor no balcão da varanda da casa da menina todas as noites

e o amor que bate no dedão do pé e arrepia teus cabelos

há uma foto de primeira comunhão de que tu não te lembras

mas vivem os versos de camões do livro que teu padrinho te deu

no dia de tua formatura e teu irmão te disse que um dia

tu serias homem para que ele te desse uma surra

- ele nunca te bateu – e a surra doeu para sempre

memórias breves e sutis perpassam sob tuas pupilas cansadas

há esperança no passado – não há esperança no presente –

não semeias mais esperança de futuro – o tempo

esgota-se na memória o tempo do sonhar e o tempo do viver

a liberdade nas águas da cachoeira e no lambari que se esconde

atrás da pedra há um olho que olha e te diz que o mundo

escorre como a água do riacho para o rio e do rio para o mar

não chores – menino de águas noturnas – não te esperam

ainda os espinhos dos caminhos e tens apenas teus olhos

para descobrir a inefável trilha da montanha

não chores ainda que a vida é apenas a bola

que não entrou no gol e o gol que não viste nem comemoraste



sobe a rua torta – menino – sobe e ouve o piano

é música dos salões que nunca pisarás – dos salões da burguesa gente

ouve apenas que ela – a música – é tudo quanto terás

o caminho para o alto da montanha pontilha notas de sonatas

e os teus pés tropeçam a cada pedregulho que rola abaixo

tens apenas tuas palavras e tua imaginação para voar

e voarás apenas na imaginação das tuas palavras

- menino de sonhos ineficazes – menino de uma cidade encoberta



acordo a minha infância

adormecida em berço de folha seca e solidão

correr de novo a praça de árvores de copas redondas

esconder meu sonho atrás de ciprestes que exalam

o odor da note sem lua

saias que giram ao canto lento

ciranda cirandinha

o cravo a rosa o espinho

a sofreguidão da vida que nasce e renasce

o suspiro estagnado na garganta

os mocinhos matadores de índios que pulam das capas de revistas

cowboy de papel colorido que o tempo redesenhou

o filme proibido na tela do cinema de poltronas de madeira

e gritos da plateia quando a mocinha aparecia quase nua

um balão que não cai nunca na rua do sabão

a jabuticabeira enlouquecida de frutos negros

e o espanto do cão ao provar a jabuticaba – era sua fruta proibida

e ele não sabia – depois passou mal

um paraíso de lata e papelão e mandacaru – o laboratório

misturas estranhas e estranhos cheiros em vidros coloridos

trilhas no mato uma pele esquecida de cobra

e a falsa coral esgueirando-se rápida ao arrepio dos passos

noites longas de chuva e frio

a tosse do avô no quarto ao lado

o cheiro de fumo de seu cigarro de palha

o mundo mínimo de formigas em paus podres

o cheiro do café quente escorrendo no coador

a lenha que crepita e aquece no fogão um pedaço de lua

que teima em espiar pela fresta da porta de madeira velha



esfumam-se os olhos negros nas névoas de junho

distante o som de um piano na noite

só a imaginação do menino as figuras que dançam e bebem e conversam

a aurora de loucos sonhos desmanchada pela hora de ir para a escola

uma pedra filosofal

um veio de ouro

no barranco mágico o colorido da terra e da argila

o vento de âmbar ao som da singer

roda o destino ao corno da lua

cores da noite

cores do dia

o jogo jogado numa só esperança

a semente do homem nos olhos do menino – eu?

de novo os olhos negros no negrume da noite

a janela iluminada ao badalar do relógio de pêndulo

noites de lua e versos

noites de busca da rima que não vem

que não vem

que não vem

e esfuma-se o poema na letra de forma

o menino – eu? – pensa a poesia

a poesia que voa nas asas dos sanhaços

manga madura ao sol da tarde – sol e manga amarelos como a esperança

a esperança que pisa os caminhos tortos

na trilha do cabelo repartido ao meio no alto da cabeça

o gosto de trigo da hóstia que se dissolve na boca

os pecados todos peneirados na tela negra

que separa a voz da salvação do olhar do pecador

os joelhos ralados no genuflexório

promessas que nunca serão cumpridas

no sonho mau das noites de espera

sonhos quebrados e alquebrados nas quebradas do morro

a lenta e leve poeira de ouro do fim da tarde

o ouro do sol contra o azul do céu

sombra que prevalece no verde dançante das folhas de bananeira

haverá sempre estrelas nos olhos do menino

haverá sempre estrelas nos meus olhos

estejamos ambos – eu e o menino –

(e já não sei mais se sou eu o menino ou se o menino sou eu)

rumando ou não a passos trêfegos para o alto da montanha

porque a montanha – sei eu agora o que sempre soube o menino –

representa o que todos dizem ser a metáfora da própria vida

inalcansavelmente inexplicável

inexplicavelmente inalcançável

a montanha ante meus olhos

envolta em bruma envolta em luar

inalcançáveis talvez aos olhos nascentes

as trilhas para seus altos relevos

ferem meus passos no passo lento

inexplicáveis – tolamente inexplicáveis -

as pedras – as pedras – a pedra de lua






26.6.2020

Ouça esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço:

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