mineiro tem saudade do mar
mesmo quando nunca viu o mar
mineiro tem fala mansa e enrolada
come final de palavras como come
queijo com goiabada mas sua fala é
poesia mesmo quando conta causos
mentiras de pescador picando fumo
mineiro tem o jeito desconfiado
mas com um dedo de prosa bem prosada
ele lhe serve café ralo e lhe dá sua casa
mineiro tem saudade do mar
toca viola na roça quando é roceiro
pisa nas nuvens quando é da cidade
dizem que tem dinheiro no colchão
mas isso é só para fingir que é rico
tem mesa de jantar com gaveta
para esconder da visita o prato de comida
mas divide com prazer o arroz feijão e angu
se a visita não é nenhum parente
mineiro tem saudade do mar
e chora escondido as suas mágoas
nem sempre tira chapéu para defunto
porque tem apego ao merecimento
reza o terço todo dia e vai à missa
confessa e comunga ainda que ateu
segue procissão na sexta-feira da paixão
e não come carne na semana santa
às vezes come peixe (peixe não é carne)
conta causos compridos e ouve mentiras
com o ar contrito de quem não acredita
mineiro tem saudade do mar
inventa janelas e constrói em tono delas
casarões coloniais e igrejas barrocas
mineiro é mesmo bicho encalacrado
em dobra de morro e beira de rio
se de algo não gosta logo amua
e se gosta fica sempre na sua
tem medo de assombração
em noite em que está cheia a lua
pega na viola e canta sem saber
a mágoa do caboclo e a saudade
do mundo inteiro a se desfazer
no peito imenso em que cabe até
todas as veredas e todas as ruas
ao tomar uma boa xícara de café
mineiro é assim sempre a sonhar
por viver entre tantas montanhas
é que mineiro tem saudade do mar
14.10.2019
(Ilustração: foto de Fátima Alves)
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