13 de dez. de 2019

nós




nós odiamos o passado

nós odiamos a história



porque tudo o que nos explica nos complica

gostamos de ser o que aparentamos ser

não gostamos de ser o que um dia fomos



odiamos a carne negra dos porões dos navios negreiros

que a despejaram em nossas praias para a libido do branco

não porque odiemos o negro por ser negro mas odiamos

o negro por sujar nosso sangue com seu sangue africano

nós os puros europeus de tragédias migratórias milenares



odiamos a pele que não seja lua branca em noite de cristal

odiamos o gesto da dança nascida à sombra dos baobás

odiamos o canto e a flauta e a batida dos pés no barro

das aldeias a espantar os macacos pelas florestas alagadas

odiamos o que não nos reflete no espelho torto de nossa

vil capacidade de entender o chicote do bandeirante e a reza

no terço de caroços de coquinho queimado das cozinhas

das casas-grandes cheirando a senzalas pelas negras

cozinheiras de angu e pelos negros caçadores de negros

rebeldes a jogar a capoeira em noites de feijão preto e rabo

de porco no caldeirão que cozinha desde tempos imemoriais

nosso olhar de desprezo e nossa empáfia de pele sem cor

odiamos as festas congadas baianas e os tambores de minas

e do nordeste o jeito criativo e arrastado da fala e do olhar



nós odiamos o passado

nós odiamos a história



nosso banquete antropofágico rega-se com vinho e absinto

o vinho da consubstanciação de nossa ignorância europeizada

e o absinto que nos entorpece as mãos na hora de abrir o cofre

palacetes de plástico erguem-se e incendeiam-se na folgança

da nossa especulação falso-financeira e nossos colares de pérolas

são garrotes vis de dívidas impagáveis na farra dos salões sem arte

burgueses sem burgo e estropiados do freudismo cantamos

a valsa vienense nas formaturas de bêbados que percorrem o mundo

a bordo de transatlânticos a passar ao largo de icebergs forrados

com os dólares com que compramos o papel higiênico que limpam

não apenas as bundas sujas da roubalheira mas também as mentes

periclitantes de torneios verbais em festas de roqueiros loucos

a cheirar a droga branca da nossa consciência negra com cartões

de crédito de bancos estrangeiros trazidas por aviões de carreira



nós odiamos o passado

nós odiamos a história



vomitamos o passado em cada pires de leite que não derramamos

pelas fazendas de ouro velho e máquinas azeitadas na abundância

da mão de obra que veio há séculos de áfricas e europas empobrecidas

para talhar o leite e vender esperanças nas feiras livres das periferias

engordamos cidades como engordamos o gado para fazer dos filhos

diletos os novos senhores de engenhos de fogos-fátuos mortos ainda

ao primeiro apodrecer de fortunas acumuladas em bancos suíços

permitimos ao poeta cantar sua ode ao burguês porque não sentimos

que somos burgueses e nossos nós não se desatam com poemas

e canções nem com reza brava de pais de santo e búzios rolados

somos o povo enfim que diz que não é isso ou aquilo mas sempre

esquece que é tudo aquilo que pensa que não é mas é sempre e sempre

por isso odiamos o passado e por isso odiamos ainda mais a história





19.10.2019



(Ilustração: escultura de barro de Javier Marín)








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