nós odiamos o passado
nós odiamos a história
porque tudo o que nos explica nos complica
gostamos de ser o que aparentamos ser
não gostamos de ser o que um dia fomos
odiamos a carne negra dos porões dos navios negreiros
que a despejaram em nossas praias para a libido do branco
não porque odiemos o negro por ser negro mas odiamos
o negro por sujar nosso sangue com seu sangue africano
nós os puros europeus de tragédias migratórias milenares
odiamos a pele que não seja lua branca em noite de cristal
odiamos o gesto da dança nascida à sombra dos baobás
odiamos o canto e a flauta e a batida dos pés no barro
das aldeias a espantar os macacos pelas florestas alagadas
odiamos o que não nos reflete no espelho torto de nossa
vil capacidade de entender o chicote do bandeirante e a reza
no terço de caroços de coquinho queimado das cozinhas
das casas-grandes cheirando a senzalas pelas negras
cozinheiras de angu e pelos negros caçadores de negros
rebeldes a jogar a capoeira em noites de feijão preto e rabo
de porco no caldeirão que cozinha desde tempos imemoriais
nosso olhar de desprezo e nossa empáfia de pele sem cor
odiamos as festas congadas baianas e os tambores de minas
e do nordeste o jeito criativo e arrastado da fala e do olhar
nós odiamos o passado
nós odiamos a história
nosso banquete antropofágico rega-se com vinho e absinto
o vinho da consubstanciação de nossa ignorância europeizada
e o absinto que nos entorpece as mãos na hora de abrir o cofre
palacetes de plástico erguem-se e incendeiam-se na folgança
da nossa especulação falso-financeira e nossos colares de pérolas
são garrotes vis de dívidas impagáveis na farra dos salões sem arte
burgueses sem burgo e estropiados do freudismo cantamos
a valsa vienense nas formaturas de bêbados que percorrem o mundo
a bordo de transatlânticos a passar ao largo de icebergs forrados
com os dólares com que compramos o papel higiênico que limpam
não apenas as bundas sujas da roubalheira mas também as mentes
periclitantes de torneios verbais em festas de roqueiros loucos
a cheirar a droga branca da nossa consciência negra com cartões
de crédito de bancos estrangeiros trazidas por aviões de carreira
nós odiamos o passado
nós odiamos a história
vomitamos o passado em cada pires de leite que não derramamos
pelas fazendas de ouro velho e máquinas azeitadas na abundância
da mão de obra que veio há séculos de áfricas e europas empobrecidas
para talhar o leite e vender esperanças nas feiras livres das periferias
engordamos cidades como engordamos o gado para fazer dos filhos
diletos os novos senhores de engenhos de fogos-fátuos mortos ainda
ao primeiro apodrecer de fortunas acumuladas em bancos suíços
permitimos ao poeta cantar sua ode ao burguês porque não sentimos
que somos burgueses e nossos nós não se desatam com poemas
e canções nem com reza brava de pais de santo e búzios rolados
somos o povo enfim que diz que não é isso ou aquilo mas sempre
esquece que é tudo aquilo que pensa que não é mas é sempre e sempre
por isso odiamos o passado e por isso odiamos ainda mais a história
19.10.2019
(Ilustração: escultura de barro de Javier Marín)
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