talvez amanteigasse os meus sentimentos
esse tanto tempo que passou
mágoas pisadas como folhas secas
ao longo dos caminhos e dos dias
o desprezo e a ausência enfim páginas
lidas e esquecidas no fundo da gaveta
talvez até mesmo sua sombra no espelho
onde me olho ao fazer a barba
marcasse um pouco a curva do meu rosto
quem sabe na minha voz um eco da sua
ou em algum gesto que eu repita o seu gesto
ou o seu passo trêfego a marcar os meus
afinal como disse o poeta de tudo fica um pouco
que tenha ficado um pouco do queixo no queixo
do filho pensei e pensei tudo isso um dia quando
há muito você é apenas a asa do pássaro
que cruza assim de repente a minha janela
numa manhã qualquer de qualquer estação
até tentei descobrir a cor dessa asa fluida
quem sabe interromper o voo e fixar
por um breve instante os seus olhos
ou um gesto seu de carinho para poder
acalmar meus sentimentos e derretê-los
um pouco talvez apenas um pouco
da sombra de seu queixo em meu queixo
para quem sabe conseguir superar os longos
os longuíssimos anos de silêncio e indiferença
mas a única palavra que posso dirigir-lhe
é um pedido de desculpas não pela sua distância
não pelo seu silêncio e o seu não olhar por mim
não pelos seus gestos ou sua fisionomia
cuja lembrança há muito esgarçou em mim
não pela sua morte da qual eu pouco soube
apenas um pedido de desculpas envergonhado
por não poder perdoar-lhe jamais – meu pai
21.12.2019
(Ilustração: Hannah Höch)
Nenhum comentário:
Postar um comentário