30 de set. de 2021

correntes partidas

 





tantos e tantos nós

desatados ao longo do tempo



nossa vida um rio atroz

de pequenos barcos levados ao vento

contrafortes e cachoeiras vencidas



salvaram-se poucos sentimentos

da indiferença restou pouco mais

que um doce tremor no fundo dos olhos



nada mais há que correntes partidas

e cascos fendidos nos mares de abrolhos



4.3.2020

(Ilustração: Edvard Munch - illustration pour Les fleurs du mal-1896)

27 de set. de 2021

copo de vinho

 




longa é noite quando num copo de vinho

afogo meu desejo de estar contigo

a sonhar prazeres que mal adivinho

os enleios e anseios que persigo

nos sonhos que não se tornam realidade

e assim prevejo em cada gota da bebida

o brilho de seus olhos e a felicidade

que é breve – mas profundamente sentida





18.5.2021

(Ilustração: Safia Bollini)

24 de set. de 2021

concerto sentimental

 




molho o bico da pena com que escrevo este poema

no sangue que escorre dos meus olhos



porra! que merda é essa – poeta?

você escreve no computador

na tela de uma porra de um computador!

e vem agora com esse papo furado

de sangue e pena e olhos?



idiota que sou ou que és – penso

não entendes de metáforas

nem de sentimentos e vens me dar esporro?



não – não entendo de sangue dos olhos

a não ser quando vejo luta de boxe

oh almas penadas de lençóis esbranquiçados

pelejais no limbo do baixo ventre

oh poetas de bobagens românticas

descei dos nefelibatismos agônicos

de instintos vampíricos e sem sentido



repito meu sangue no olho

repito minha pena assustada

e vou ao limbo dos vampiros da noite

e viajo com schumann como um louco

e sou eu – eu apenas e mais ninguém

seu último romântico a chorar dentro da noite

quando ouço com meus ouvidos moucos

seu desconcerto sentimental



26.6.2021

(Ilustração: Adolph Menzel)


Você pode ouvir este poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

21 de set. de 2021

cofre da memória

 



guarda-se o instante no cofre da memória

e joga-se ao vento a chave do mistério

assim se escreve na pedra a história

assim se constrói na mente um império



contemplam-se simples eventos vividos

esquecem-se os momentos marcantes

o cofre não se abre a nossos pedidos

apenas nas faíscas de breves instantes



17.9.2021

(Ilustração: Hieronymus Bosch - Tondals vision)

18 de set. de 2021

ciclo da vida

 




matei mamutes com pedra lascada

morri de frio na idade do gelo

deixei minhas carnes derretidas

nos desertos de áfricas desoladas

bebi cicuta no tonel de sócrates

escolhi a serpente que picou cleópatra

escondi-me em catacumbas de roma

fugindo de leões e de crucificações

lutei ao lado de constantino em bizâncio

torturaram-me por ser bruxa na germânia

queimei na fogueira e ressurgi na austrália

chutei a bunda de cortez no méxico

colhi cabeças guilhotinadas em paris

cozinhei para napoleão em santa helena

cantei e dancei nos cabarés da cidade luz

nos tempos de picasso e erik satie

torrei nos fornos de auschwitz

explodi a bomba atômica em hiroshima

desci aos infernos da ingratidão humana

recolhi despojos de virgens mortas

consolei em vão crianças estupradas

despejei meu sêmen em vasos de cristal

derramei lágrimas em rios de papel

desejei morrer e continuei vivendo

desejei viver e me mataram sem piedade

decorei todos os livros sagrados

concordei com todas as suas lorotas

amei todas as virtudes

vomitei todos os pecados

busquei a cada minuto o sentido da vida



e agora – aqui – quando beijo teu umbigo

tenho em mim todas as estrelas do universo



18.2.2021

(Ilustração: Jindrich Styrsky - the movable cabinet 1934)

15 de set. de 2021

chove dentro de mim


 


quando chove dentro de mim

encharcam-se as memórias

brotam fontes de novas mágoas

florescem angústias embotadas



quando chove dentro de mim

correntezas de maus pensamentos

afloram dos charcos para as trilhas

e todas as palavras umedecem

como lírios em busca da vida



quando chove dentro de mim

dos morros deslizam pedras da saudade

entopem-se as estradas do racionalismo

e choro o choro de chorões encharcados

a rolar pelas cheias de planícies sem fim



quando chove dentro de mim




12.12.2020

(Ilustração: Vincent Van Gogh - Landschaft bei Auvers im Regen)

12 de set. de 2021

cérebro

 



meu cérebro é meu dono

ele é que ordena que eu te ame

nele estão teus arpejos

nele estão teus cabelos e tua pele

teus pelos e teus arrepios

e quantos mil outros detalhes

guardados para o meu espanto de ti

quando me ordena que eu te ame



e então eu penso em ti se estás distante

e então eu anseio por ti se estás ao meu lado

mas o que sinto são pensamentos

assim como são correntes de eletricidade

nossos espasmos de prazer e calor



quando meu dono me adormece

para trabalhar com mais afinco

e guardar em seus cofres como segredos insondáveis

tudo aquilo que em segundos contigo vivi

lá dentro dele se refugiam

meus mais estranhos e nunca declarados sentimentos

que se enovelam entre os neurônios em simples pensamentos

a transmitir aos sentidos o meu desejo de ti




22.6.2021

(Ilustração: Amadeo de Souza Cardoso)

9 de set. de 2021

o catamita - 2

 








preso na gaiola do medo

desde que em suas asas descobriu

a cor que o difere – a cor do seu segredo

os anos de voos rasos

de nada mais serviram

porque todos os ventos de tantos solitários ocasos

seus desejos para o mundo se abriram

e são desejos inexplicáveis

para o espanto dos indesejáveis



porque a gaiola não mais o prende

as asas ele as desdobra e estende

para a liberdade de muitos amores



o medo – aquele medo – em furores

transformado

para sempre agora

- o colibri pode cruzar o arco encantado

escondido atrás da aurora



27.5.2021

(Ilustração: Felix D'eon) 

6 de set. de 2021

carpe diem


 

mitiga o desejo que arde

em tuas entranhas

antes que seja tarde

para práticas estranhas

não deixes que o beijo

esfrie nos teus lábios

aproveita todo ensejo

agora que somos sábios

para encontrar caminhos

para novos prazeres

e tudo quanto quiseres

de todos os carinhos

mitiga o teu fogo agora

sem dó nem pranto

para que fique aceso

se não pela vida afora

pelo menos enquanto

meu pau estiver bem teso

 

31.12.2020

(Ilustração: Frida Castelli)

 

 

 

 

3 de set. de 2021

cantata e fuga

 



ouvir beethoven

ouvir bach

ouvir brahms

tornar-se imortal

comer a dor

beber a tormenta

música eterna música

ouvidos para ouvir

descer da montanha

às profundezas dos mares

nadar entre as estrelas

fulgir dentro da noite

noite dentro do dia

dia dentro do luar

ouvir bach

ouvir beethoven

ouvir brahms

escolher a vida

desejar o sonho

destruir o desencanto

desencantar os demônios

premeditar os anjos

cheirar o vento das nebulosas

ouvir brahms

ouvir bach

ouvir beethoven

despertar o galo na madrugada

convidar para a festa o sabiá

pensar em ovídio e reler dante

escrever cantatas sem pentagrama

assobiar fugas ao pé do baobá

pisar na areia os versos do profeta

badalar bem alto o sino da igreja

na miragem do deserto

viajar pelo rio ao som da lua nova

lamber o vento do oásis

dançar nas exéquias do ditador

ouvir bach beethoven brahms

ouvir

talvez viver

melhor do que morrer




7.10.2020



2ª versão:




ouvir beethoven

tornar-se imortal

comer a dor

beber a tormenta

descer da montanha

às profundezas dos mares

nadar entre as estrelas

fulgir dentro da noite

noite dentro do dia

dia dentro do luar



ouvir brahms

escolher a vida

desejar o sonho

destruir o desencanto

desencantar os demônios

premeditar os anjos

cheirar o vento das nebulosas

dançar sobre as marés

beijar flores de prata



ouvir bach

despertar o galo na madrugada

convidar para a festa o sabiá

pensar em ovídio e reler dante

escrever cantatas sem pentagrama

assobiar fugas ao pé do baobá

pisar na areia os versos do profeta

badalar bem alto o sino da igreja

ouvir bach beethoven brahms

e na miragem do deserto

viajar pelo rio ao som da lua nova

lamber o vento do oásis

dançar nas exéquias do ditador



e assim talvez viver

seja melhor do que morrer



10.10.2022

(Ilustração: Auguste Renoir) 


(Você poderá ouvir essa segunda versão, na voz do autor, no podcast indicado ao lado).

31 de ago. de 2021

busca





como vem a poesia?

pergunto-me às vezes

enquanto no dia a dia

vou cultivando revezes



de onde vem a poesia?

no buraco da minha vida

encontro apenas a pá vazia

de uma esgotada jazida



por que vem a poesia?

consulto-me em mim mesmo

enquanto minha alma vadia

chora pelas trilhas a esmo



quando vem a poesia?

o tempo inconsequente

que o poema sempre trazia

mistura passado e presente



para que vem a poesia?

se viajo na asa dos ventos

busco na esperança tardia

sal para meus sofrimentos



29.12.2020

(Ilustração: Salvador Dalí)


28 de ago. de 2021

brisa

 


 

brisa que arrepia todos os meus pelos

solta o sonho embevecido dos dias fúteis

outonal brisa de anseios múltiplos

a despentear de leve teus longos cabelos

a trazer de novo as esperanças inúteis

de dias e noites perdidos no vazio

no vazio de navios sem portos

no vazio embalado de beijos mortos

à luz mortiça de uma falsa lua

quando nos unia o fervor tardio

que ainda agora ao sopro dessa brisa

no meu pensamento renasce e flutua

 



15.4.2021

(Ilustração: Javier Arizabalo García)

25 de ago. de 2021

bandeiras da morte

 




irrequietam-se as feras nas tocas

o sangue nos olhos para o salto fatal

no silêncio da noite só o pulsar das veias

da presa inocente que caminha para a morte



o salto das feras rompe o vento

o grito da vítima faz tremer as árvores

e a própria terra treme ao rugido mortal

jorra o sangue e encharca o solo



canta o vento a vitória do mais forte

chora a matilha a derrota do líder

sobe ao mastro a bandeira de tíbias cruzadas

ronda os morros e as planícies

o grito dos que não tiveram sorte



pairam no ar o cheiro e o gosto da tragédia

no aqui e agora da luta perdida

há véus negros nos rostos deformados

e rios de sangue nos olhos dos poucos salvados

que agora sem líder fogem para o norte



plantarão novas bandeiras no caminho

pelos mortos sem tumba e devorados

que o choro aqueça cada passo na esperança

de que um dia sejam os dias renovados



4.6.2021

(Ilustração: Adolph Menzel - suits of armor, 1866)

22 de ago. de 2021

bach bem temperado

 





tempero meu verso

como bach temperou

seu cravo bem temperado

com sons batidos na pedra

como carne bem dura

meu verso – carne madura

no universo do pano

do pano pintado no cravo

como se de repente escravo

das teclas pretas do piano

do piano que bach não tocou

quero o tempero azedo

da couve-flor e do azevinho

para compor com o vinho

o verso escrachado

meu verso bem temperado



6.10.2020

(Ilustração: Samuel Eliu - Bach)


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


19 de ago. de 2021

ária perdida

 



o mar revolto revolta meu cérebro

memórias de águas e de algas

maremoto de mares mortos

mortos os mares e as águas-marinhas

ancestrais de dinossauros

os líquens líquidos em águas revoltas

calor de vulcões e frios de geleiras

afrouxados os arrimos do vento

bate a onda sobre a pedra

quebra o mar dentro de mim

forças de sinfonias de pássaros

as asas tortas pelas praias azuis

tantos mundos a conquistar

tantas conquistas sem finalidade

bate o barco no iceberg

quebra o gelo para o coquetel de luxo

dança o mendigo na praça podre

somos o mar e seus marulhos

a quebrar em sombras de passados indistintos

solfejam sopranos a ária perdida

na areia o grão explode em hiroshimas

resta o relho nas costas do ex-escravo

resta o abandono de todos os governos

sobre o pobre o mesmo primeiro dia

de adão expulso do paraíso

e resta apenas o verso insolúvel

nas águas mortas dos mortos de fome

na conta nunca paga da miséria social

 

30.8.2020

(Ilustração: Cândido Portinari -Retirantes. 1944)


 

 

16 de ago. de 2021

ampulheta

 


 

areia moldável a teus sentimentos

escorri ao longo de ti por dias lentos

e sou hoje a teus pés montículo inútil

sob a tua túnica inconsútil

sem esperança de que alguém se importe

em virar tuas âmbulas e me livrar da morte

 

20.2.2021

(Ilustração: escultura de Giambologna:  Rape of a Sabine - detalhe) 

 

 

13 de ago. de 2021

amortecedor

 





amor tece dor

amortece dor a morte e tece

na morte a dor do amor



tece amor morto e adormece

a dor a morte do amor roto



tece amor a morte – tece e

torce a dor do amor a morte



há morte tecida na dor

do amor tecido na dor



amortecedor do amor tecido

a dor dorme e tece a saudade

e quebra ali a aliteração do amor tecido




27.7.2021

(Ilustração: Goya - el amor y la muerte)

10 de ago. de 2021

amores do passado

 


 

numa página em branco um simples rabisco

um nome

a pétala de uma rosa de um jardim de outrora no agora

um arco-íris num fim de tarde sobre morros azuis

o tronco marcado com uma seta dentro de um sagrado coração

o banco da praça coberto de flores

o caminho sem pegadas na noite de lua

os cães que ladram para o pedestre invisível

a chuva intermitente no meio da manhã

na torre da igreja o sino que tange uma ave maria

a lágrima que pinga no teclado e evapora ao calor do verão

e os versos cheios de lugares comuns

um nome

um nome esquecido e não lembrado

 

 

15.9.2020

(Ilustração: Alyssa Monks)


 

 

 

 

 

 

 

7 de ago. de 2021

amor absoluto

 




sou tua puta quando me curvas como uma ponte

e penetras-me por detrás erguendo minha fronte

ao puxar meus cabelos para trás

só tu me fazes o que faz

o bode com as cabras no cio

para ti não tenho receios e nenhum brio

e grito e gemo e gozo na tua vara

até que escorra pela minha bunda

a porra que gozaste na mais profunda

das penetrações lá onde nunca aclara

meu instinto se selvagem se divino

sou tua puta quando me ergues na cama

e levas minha boceta até tua boca

apertas com teus lábios o meu sino

penetras com tua língua minha boceta em chama

e me deixas muito mais louca

do que sou quando trepo em outras varas

que não a tua

fazes que eu me sinta muito mais nua

do que no meio da boate cheias de brilhos e claridades

quando danço a dança de véus e me dispo às claras

para a multidão de homens que gritam obscenidades

à visão de minha vagina lisa e escancarada

sou sim tua puta quando me sinto penetrada

em todos os buracos por teu mastro enorme

e mais do que puta me sinto tão depravada

que comeria tuas fezes de me pedisses

cortaria meus seios e tornaria meu rosto disforme

se fosses louco e me exigisses

escrava do teu gozo sou tua mais depravada puta

serei teu homem e também todas as tuas mulheres

morrerei em teus braços com uma dose de cicuta

ou podes apunhalar-me o peito se o quiseres

e mesmo morta ainda serei sempre a tua puta



31.8.2020

(Ilustração: Raffaele Marinetti)







 

4 de ago. de 2021

amnésia

 


 

não sei quantas vidas vivi

nesta minha única vida

se tudo quanto me lembro

- um oceano de memórias –

talvez seja apenas um laguinho perdido

no alto das montanhas azuis

de meu cérebro

entre circuitos elétricos tempestuosos

como chuvas de verão em tardes de sol

 

mas são essas lembranças não lembradas

a massa amorfa de minha personalidade

talvez um dia de calmas asperezas

resgate células perdidas e carícias negadas

e fique louco como os seixos que rolam

pelos rios caudalosos de minhas montanhas azuladas

 

 

24.11.2020

(Ilustração: Hilton Hassel - Granite Plains