27 de abr. de 2018

mineiros





o mineiro só é solidário no câncer

a frase de otto lara resende imortalizou nelson rodrigues

ou vice-versa

que ninguém sabe mesmo quem a disse

e levou ao ridículo a mineirice dos mineiros que não a entenderam



o mineiro é realmente apegado àquilo que não passa

às montanhas inamovíveis

aos céus de plangentes noites que parecem eternas

e geme ao som da viola pelas veredas e pelos rios

ao passo lento do boi no campo



rumina o mineiro o cheiro do ora-pro-nobis refogado

canta o canto do escravo escondido nas minas que não há

leva no peito o jeito do sorriso de lado

desconfiado

sentido lamento do vento em cada mangueira

caminha assim como quem não vai nunca a lugar algum

e semeia minas por todos os cantos do mundo



solidário somente no câncer de seu próprio corpo

engrandece as manhãs e os entardeceres úmidos

com doce de leite e goiabada com queijo



joga fora conversa descansada com pinga da boa

e deixa o torresmo mais duro para aquele que não tem dentes

foge do fogo da mata e conta que abraçou a onça

trapaceia no truco e confessa ao padre que gosta

da morena bonita que casou com o vaqueiro amigo

sonha o sonho do mundo e sai por aí a toda

volta todo ano dizendo que fica e sempre se vai

porque sabe que minas é montanha de bagagem



mineiro é trem bão desgovernado

beijando a mão de qualquer autoridade

sabe da vida o que a vida nunca lhe deu

e olha o mundo de cima de morros tão velhos

que o ouro duro deixou buracos e marcou seus olhos

endureceu carinhos e caminhos de mineiridade

que só o vento de veredas e as trilhas dos vales

pode trazer de volta num verso do poeta

ou num canto de carro de boi tão velho quanto o tempo



23.4.2018







(Ilustração: Rui de Paula - Um dia na roça)


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