o mineiro só é solidário no câncer
a frase de otto lara resende imortalizou nelson rodrigues
ou vice-versa
que ninguém sabe mesmo quem a disse
e levou ao ridículo a mineirice dos mineiros que não a entenderam
o mineiro é realmente apegado àquilo que não passa
às montanhas inamovíveis
aos céus de plangentes noites que parecem eternas
e geme ao som da viola pelas veredas e pelos rios
ao passo lento do boi no campo
rumina o mineiro o cheiro do ora-pro-nobis refogado
canta o canto do escravo escondido nas minas que não há
leva no peito o jeito do sorriso de lado
desconfiado
sentido lamento do vento em cada mangueira
caminha assim como quem não vai nunca a lugar algum
e semeia minas por todos os cantos do mundo
solidário somente no câncer de seu próprio corpo
engrandece as manhãs e os entardeceres úmidos
com doce de leite e goiabada com queijo
joga fora conversa descansada com pinga da boa
e deixa o torresmo mais duro para aquele que não tem dentes
foge do fogo da mata e conta que abraçou a onça
trapaceia no truco e confessa ao padre que gosta
da morena bonita que casou com o vaqueiro amigo
sonha o sonho do mundo e sai por aí a toda
volta todo ano dizendo que fica e sempre se vai
porque sabe que minas é montanha de bagagem
mineiro é trem bão desgovernado
beijando a mão de qualquer autoridade
sabe da vida o que a vida nunca lhe deu
e olha o mundo de cima de morros tão velhos
que o ouro duro deixou buracos e marcou seus olhos
endureceu carinhos e caminhos de mineiridade
que só o vento de veredas e as trilhas dos vales
pode trazer de volta num verso do poeta
ou num canto de carro de boi tão velho quanto o tempo
23.4.2018
(Ilustração: Rui de Paula - Um dia na roça)
Nenhum comentário:
Postar um comentário