29 de nov. de 2018

grito primal







sobre meus ossos não há barro amassado por mão de nenhum deus

sobre meus ossos há carne que come carne que se rasga como carne

sobre meus ossos há tendões e veias e músculos mesmo que frágeis

sobre meus ossos há a vida que veio das águas há milhões de anos

sobre meus ossos há peles e pelos que se eriçam nas noites frias

sobre meus ossos há desencantos de caminhos errados e perdidos

sobre meus ossos há marcas de chibatas e ódios triturados em surdina

sobre meus ossos há veias por onde corre o sangue do primeiro dinossauro

e dentro de meus ossos há medulas de angústia e enredos do tempo

e dentro de meus ossos há a massa que sonha que pensa que cria e vigia

e de todos os alimentos de que se serviu o meu corpo para sobreviver

somente o que nutre a minha imaginação é o grito primal da total liberdade





19.11.2018


(Ilustração: Doug Johnsonson)




27 de nov. de 2018

forças ocultas





creio nas forças ocultas

explicadas pela ciência



as nuvens que passam

que passam que passam



vou morar num porto invisível

almas penadas flutuam nas árvores



creio nas forças ocultas

quando a ciência não as explica



o rosto de um deus acadêmico

veste a pele cinzenta do albatroz



vou viver para sempre num porto

só visível aos olhos dos impressionistas



não há compromisso entre o vento e a luz

resplende a lua num céu de outubro



ah sim o outubro quando resplende a lua é vermelho



nada me faz lembrar manhãs eternas

o verão escapa em branca espuma



não creio em forças ocultas

dentro da ciência há apenas o átomo



há impressões que não se explicam

e há expressões raivosas no olho cortado



no canto de páginas em branco soam

melodias de debussy ao piano de satie



um galo arrepia a madrugada ausente

a lua de outubro continua vermelha



não descrevo o que vejo e sim

descrevo o que lembro e nem

sempre o que lembro é verdade

e entre a verdade e o que lembro

gosto sempre mais do que lembro



já não creio em forças ocultas

o futuro está em si mesmo

e também no passado




11.11.2018


(Ilustrção: Max Klinger) 





25 de nov. de 2018

eu







capim que nasce

na beira da estrada

resiste ao sol

resiste à seca

capim de beira de estrada

sou eu

enraizado e seco

mas vivo





27.8.2018


(Ilustração: foto de Fátima Alves, Lavras/MG)



24 de nov. de 2018

estranho





acham que eu sou estranho

porque tomo banho todos os dias



acham que eu sou estranho

porque ainda faço ginástica todos os dias



acham que eu sou estranho

porque me deito tarde e levanto mais tarde ainda



acham que eu sou estranho

porque gosto de dormir embora tenha insônias

de vez em quando



acham que eu sou estranho

porque gosto de frango com quiabo arroz feijão e angu



acham que eu sou estanho

porque bebo de vez em quando uma cachaça vagabunda



acham que eu sou estranho

porque uso cabelo cortado rente ou cabelo bem comprido



acham que eu sou estranho

porque não gosto de cachorros e eles não gostam de mim



acham que eu sou estranho

porque falo pouco e tenho poucos e bons amigos

e sou caninamente fiel a eles



acham que eu sou estranho

porque não convivo com vizinhos embora os respeite



acham que eu sou estranho

por leio muitos livros e gosto de poesia e de teatro

e também de futebol



acham que eu sou estranho

porque escrevo versos que alguns pensam que é poesia



ou será que sou mesmo estranho

só porque escrevo poesia?









9.10.2018


(Ilustração: Julia Perret - decrocher la lune)









22 de nov. de 2018

espantalho







no meio do mundo imenso o milharal

no meio do milharal imenso o espantalho

o velho espantalho os braços abertos

rotos os trapos a cabeça pendida

onde fazem festa corruíras e pardais

ponto de pouso de periquitos e araras

empanturrados todos do milho verde

das espigas abertas pelos bicos espertos



não são no entanto tão espertos os pássaros

que comem tranquilos e alegres o seu milho

não sabem eles que passou há pouco por ali

outro pássaro muito mais cruel que gavião

passou soltando fumaça branca das asas negras

o veneno agora nos papos cheios de milho



os pássaros que pulam nos braços do espantalho

calam-se pouco a pouco e o meio do mundo fica

cada vez mais quieto mais mudo mais morto

lá do fundo da terra só os vermes comemoram





4.10.2018


(Ilustração: Pablo Picasso - man with straw hat)


20 de nov. de 2018

desarmamento geral





desarmem-se as forças armadas

que o lírio no brejo não precisa de esterco de corpos humanos

para florescer



desarmem-se todos os cidadãos

que o vento da montanha não precisa de suspiros agônicos

para assobiar



desarmem-se das palavras os pastores

que pregam cristos em cruzes de beira de estrada

para colher seu sangue e beber seu suor



desarme-se do papa a mitra de ferro que condena

o escravo da palavra a continuar sua trilha infame



desarme-se do togado a balança que pende para o lado

que lhe paga mais em sangue e drogas sintéticas de baladas

movidas a dólares e sexo nas noitadas de verão intenso



desarme-se do polícia o cassetete que fura os olhos

dos mendigos que dormem assustados embaixo de viadutos



desarme-se do cidadão dito comum o ódio no olho

que dá o chicote ao seu algoz como um presente de natal



desarmem-se todas as crianças da possibilidade de mestres

que desafiam o horror no circo embalado em papel de bala

a oferecer hóstias consagradas nos porões do terceiro reich



desarme-se a vida que prescreve o cuspe na cara

desarme-se o desencanto dos que nada têm a perder

desarme-se a esperança do pobre que come o resto

que cai do banquete de cabeças cortadas de mesas fartas

desarme-se o verso enfim que balança o tronco podre

de onde caem as folhas mortas da nossa liberdade







16.10.2018

(Ilustração: Francisco de Goya - El Tres de Mayo)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast:





18 de nov. de 2018

cromo








na primavera preguiçosa

silêncio na velha pitangueira

sanhaços ignoram o mormaço

bicam pitangas nervosos

driblando bem-te-vis

de olho no sonho do gato

que o gato ao sol ronrona

coleando num céu

de passarinhos sem asas



não arde a tarde

se há sono de gato

canto de sabiá

grito de bem-te-vi

asas de sanhaços

pulos de grilos

sombra de pitangueira

banquete de primavera 






29.10.2018

(Ilustração: foto do autor - pitangueira)





16 de nov. de 2018

ciclo







quem sabe nós dois

[o asfalto quente

depois a lua fria]



quem sabe nós dois

[abraços que partem

corações aquecidos]



quem sabe nós dois

[a cidade fervente

os beijos molhados]



quem sabe nós dois

[a sessão de cinema

a bala perdida]



quem sabe nós dois

[a vida não espera

talvez outro tempo]



quem sabe nós dois

[o vento no cipreste

a pedra redonda]






31.10.2018


(Ilustração: David Mazza)



14 de nov. de 2018

chacona








bem no meio do mistério da vida está a morte 

e bem no meio da morte está o lamento triste 

de um pássaro no meio da floresta da vida 

o seu canto a marcar o compasso do vento 

entesoura o doce desencanto de viver 

enquanto em meio ao vento a vida lenta 

passa como o voejar da abelha na flor 

o mel do destino a morte e o desalento 

são as esporas a instigar o cavalo alado 

a vida em galope no céu de incredulidades 

em meio às tempestades que o som do vento 

alucina o ser que busca o eterno e encontra 

a finitude de seus desejos no estranho arpejo 

de violinos e cantos que soam ao longe 

traçando horizontes que não se incendeiam 

quando ao por do sol a chuva chega mansa 

e a morte ronda cada rastejante ser da mata 

em meio ao caos o agudo trino do pássaro 

marca a desesperança dos agoniados 

ouve-se apenas o gotejar do mel na flor 

a vida é esse mel que escorre para longe 

para nunca mais o dia de novo surgir do caos 

para nunca mais os olhos se abrirem ao sol 



25.10.2018



(Ilustração: Edvard Munch -starry night-1893)



12 de nov. de 2018

canto da sereia




na tarde morna o quarto escuro o leito tem lençóis amarfanhados

toco de leve os teus seios e tu me sorris e a vida parece nos trilhos

não há nenhuma ameaça iminente em nosso tugúrio de amor

e só os gemidos que damos em nossos gozos enchem o ar viciado

do quarto fechado trancado e escurecido onde apenas bruxuleia

a luz dos teus olhos quando mais uma vez beijo tua boca ávida

e um suave perfume que não é bem um perfume mas o cheiro

de nossos corpos e de nossos fluidos na ânsia do embate amoroso

chega até minhas narinas e o ronronar do ar condicionado acende

mais uma vez o nosso desejo e a cama estranha e redonda é pequena

para os estranhamentos de nossos corpos refletidos nos espelhos

e para o tempo que temos ali a cada gozo e cada gemido e depois

estendidos ambos e extenuados eu ainda tenho a lucidez de contemplar

o teu corpo o teu sexo as tuas pernas esguias e tua bunda crepuscular

há montanhas e vales e isso é apenas uma metáfora idiota que me vem

quando penso que nossos sexos nasceram em épocas tão distintas

e o verbo que arrebenta minhas entranhas na extrema cavalgada

nunca trará a mesma sintaxe de tuas paixões perdidas em outras camas

em outros corpos e outros gozos e isso minha amada não tem qualquer

importância no que sentimos e no que pintamos de quadros eróticos

nas nossas festas de interiores muito mais intensas que todo o passado

somos eu e tu os amantes de primeira hora apenas os amantes que

se conheceram há pouco num baile de debutantes e que se debruçam

às margens ainda não pisadas de desejos desenhados em cavernas

no mais profundo dos vales onde a água mal rumoreja para formar

os rios que inundarão lagos e oceanos e nós somos apenas duas gotas

recém caídas no imenso rio a explorar a corredeira e as cachoeiras

caminhando juntos num momento extremado o leito arenoso do rio

das nossas vidas ainda tão próximas da fonte que os risos e gozos são

nesse quarto escuro de um hotel no meio da cidade no meio da tarde

o concerto de verão de uma orquestra que toca uma só música repetida

à exaustão em nossos ouvidos que apenas têm como diapasão o canto

das sereias a nos levar para o fundo do oceano de onde nunca sairemos






5.10.2018

(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia)



11 de nov. de 2018

canção do silêncio





estou só absolutamente só não há quem beba comigo

uma cerveja não há quem gargalhe comigo por uma

piada suja não quem possa compartir comigo uma confidência

ou um amor desastrado não há quem possa contar e gozar

a última conquista da mais bela fêmea ainda que saibam todos

que é tudo bazófia de macho bêbado em botequim de pé sujo

mas que ao sentido tribal de amigos e parceiros

de copo e de pranto isso não tem a menor importância

não há amigos nem parceiros ao redor da mesa não há

estou absolutamente só comigo mesmo e nem estou

ainda que solitário sentado num banco de balcão de bar

porque estou só no meu cubículo de doze metros quadrados

a beber a cachaça infame do copo único que parece veneno

sou apenas nesta noite fria de primavera [em que até

mesmo a primavera ronda com o frio a minha janela]

o partícipe anônimo da maior tribo de toda a humanidade

sou eu mais aquele que agasalha no peito [e é a única coisa que

me anima] a dor de cantar mais uma vez a canção do silêncio

a canção que não tem voz nem eco nem palavras

os versos desnecessários porque essa tribo que me acolhe

[não sei por que me veio a ideia de acolhimento quando sei que

os braços de cada um são trapos pendentes ao longo do corpo

e os corpos espalham-se por uma vasta extensão que cobre

talvez toda a terra e muito mais] essa tribo imensa de

imensa e triste existência a tribo dos corações solitários





6.11.2018

  
(Ilustração: Edvard Munch -night in St Cloud-1890)




9 de nov. de 2018

aniversários





em janeiro de dois mil e dezessete eu completei

setenta e dois anos de idade e pensei comigo

basta

nada mais de aniversários

nada mais de envelhecer

que eu viva mais dez ou doze ou vinte

ou sei lá quantos mais anos

que eu morra aos setenta e dois anos



e hoje quando mais de ano passado

continuo com setenta e dois anos de idade

e assim continuarei para sempre



e alguém pode até contrapor

por que não paraste aos vinte e sete por exemplo

quando estavas no auge da mocidade

ou pelo menos na maior completude da vida

quando tinhas ainda tantos sonhos a sonhar

tantas vidas a viver



ora digo eu porque aos vinte e sete ou outra

qualquer idade abaixo dos setenta e dois

não teria nenhuma completude porque isso

de estar completo ou exuberante ou jovem

nada tem a ver com a vida vivida e experimentada

aos setenta e dois sou a mais plena incompletude

apesar de tudo quanto tenha vivido ou experimentado

e assim talvez um velho de cabelos brancos eu possa

ao me olhar ao espelho pensar que nada mais

nem de menos se possa esperar de surpresas ou

desencantos e que eu tenha a quietude do regato

ou a placidez dos lagos ou até mesmo a sabedoria

dos animais que vivem apenas sem pensar no futuro

que aos vinte e sete seria o motivo do meu envelhecimento

não tenho mais o que envelhecer e como estou

posso permanecer ao relento à chuva ao sol ao vento

que a pele curtida não tem mais por que se trocar

por células novas que de novo se renovam e eu

um velho não velho um jovem sem ser jovem

permaneço com meu sorriso tranquilo ou não

mas sem qualquer esperança que impeça

que eu sonhe os sonhos mais impossíveis que

nenhum jovem de qualquer idade ousaria sonhar







30.8.2018


(Ilustração: Luis Ricardo Falero)



7 de nov. de 2018

amada adormecida










Eu adormeço às margens de uma mulher: 

eu adormeço às margens de um abismo. 



Eduardo Galeano – O livro dos abraços 





tuas voragens que vêm de vulcões

traçam vultos esquecidos dentro da noite

teus vetores de velocidade variam

os esquecimentos dos meus sonhos

não os guardo [aos sonhos] nenhuma memória

apenas o tremular de penas não sofridas



meus arpejos e desejos misturam-se

nos abismos dos teus cabelos

e tudo quanto possuis de sagrado

são os abismos a que se lançam meus suspiros



há antiguidades não reveladas

em cada moteto ouvido em tuas catedrais

e afundam-se civilizações ocultas

ao simples bater de tuas pálpebras



quando os sinos tangem as meias-noites

o assombro de minhas inquietações

tresandam em rios de lava e fogo



de ti são os fulgores que sobem aos ares

de ti são os rios ferventes a construir

novas paisagens na terra arrasada

e tudo quanto resta ao corpo adormecido

passa pelo crivo de tuas voragens



és enfim [amada adormecida] o porto

inseguro de todas as minhas partidas

e chegadas e o reino deveras desencantado

onde eu nunca serei teu dono





8.10.2018


(Ilustração: Marc Chagall)

5 de nov. de 2018

veracidade







você pode olhar a cidade e não ver a cidade

para ver a cidade é preciso olhar com veracidade

e também com alguma velocidade

que os fatos da cidade passam num flash

o que ali acontece naquela esquina

por exemplo uma batida de um carro com ônibus

já deixou de ser curiosidade porque mais adiante

um motociclista atropelou uma senhora de idade

que levava um buquê de cravos mas na verdade

o que de fato ocorreu é que um moleque de rua

cheirando cola arrancou o colar de falsas

pérolas da dama chic da periferia e o policial

que atendeu à tentativa de suicídio

ali mesmo no velho viaduto do chá

desceu o porrete no estudante que protestava com palavrões

xingando o prefeito o deputado e até o presidente

bem na porta do teatro o mendigo tira o pau pra fora

e começa um longo e fétido xixi e todo mundo que passa

fica horrorizado e ninguém faz nada porque na cidade

cada um cuida de seu xixi e cada um cuida de si

no beco ao lado do cinema pornô um prostituto gay

abaixa a calça do garçom do bar da esquina

e faz-lhe um boquete de cinquenta contos mas o moleque

só lhe dá vinte e ainda ameaça chamar a polícia

o vento levanta a saia da prostituta na praça

e todo mundo vê que ela tem algo mais entre as pernas

a verdade é que ninguém sabe quem é quem

o distinto cavalheiro todo engravatado pode ser

aquele golpista que mata velhinhas para roubar

suas aposentadorias e ainda posa de bom moço

o atendente da farmácia que à noite vira michê

para sustentar a mãe doente que mora no interior

e a mocinha toda estilosa em seu tailleur azul

acaba de surrupiar a carteira do visitante caipira

que olhava com espanto os cartazes do cinema

que só passa filme pornô enquanto o porteiro

do velho hotel de encontros enxota o cachorro

que havia urinado em seu pé quando ele cochilava

os mendigos da praça ficam todos de olho

em qualquer passante que tenha jeito de otário

mas por ali só passa pé de chinelo e operário

com cheiro de graxa e macacão azul com a marca

no peito da empresa que explora seu trabalho

numa loja de doces e bombons alguém coloca

um disco da cantora sertaneja do momento

e uma mendiga descabelada e suja começa

a dançar bem em frente espantando a freguesia

na boca do metrô o cheiro de pobre e creolina

avança pela manhã enquanto os empregados sérios

dos escritórios de advocacia e de contabilidade

olham espantados para o alto do edifício itália

onde um objeto estranho tremula ao vento

e sem poder saber se aquilo seja um extraterrestre

ou apenas uma nova bandeira do corinthians

eles correm para os elevadores entupidos

atrasados que estão para começarem a tocar

milhares e milhares de documentos que vão

correr pela cidade nas mochilas dos motoboys

a mulher que varre as ruas junta num montinho

um maço de cigarros e duas camisinhas usadas

para que o seu parceiro venha sem seguida

e com uma pá longa coloque tudo num carrinho

e leve para algum lugar onde se junta todo o lixo

da cidade formando uma montanha bem alta

e ninguém sabe o que fazer com aquilo tudo

mas a vida segue e todo mundo joga na rua

o palito do picolé e o tíquete inútil da loja

de brinquedos em cuja vitrina o superman

abre os braços para cada moleque espantado

num desejo que se forma como luz de natal

na avenida larga os carros não mais buzinam

parados no imenso congestionamento

estão todos os motoristas tão absortos

mexendo em seus telefones celulares

que a vida que passa a seu lado nem importa

e só o que importa é alguém em algum lugar

dizendo que o trânsito está ruim e vai chover

o banco fecha as portas e deixa do lado de fora

o contínuo atrasado com as contas do patrão

alguém pede desculpas à mulher pelo esbarrão

mas ninguém liga e ela também não

continua seu caminho sem perceber que

sua bolsa está mais leve e o aposentado

que carrega o cartaz onde se lê compra-se ouro

acende um toco de cigarro e olha em volta

para em seguida tomar o ônibus lotado

que o levará para a miserável sopa num subúrbio

desgraçado de longe e tão miserável quanto ele

as luzes aos poucos vão-se acendendo amarelas

como a vida que passa e que se vai para longe

nos passos apertados de cada cidadão de cada

habitante desconhecido a ver a cidade cada um

de seu jeito de tal forma que ela a velha cidade

parece um turbilhão de microscópicas vidas

a girar dentro de um tubo de papelão com vidros

coloridos a vida que se vive na grande e velha

cidade é mesmo um estranho caleidoscópio



2.10.2018

3 de nov. de 2018

um violino




um violino o ar da tarde afina com o frio e a chuva

a tentação de escrever num verso um concerto de debussy

o aperto no cérebro e o peito arde e o vento sopra

a folha morta dentro do peito o coração não sossega

não espanta o frio o verso vagabundo que vai

pouco a pouco num poema triste como a vida

virando e se virando na palidez de sensações

sentidas na tarde fria o frio o sonho o vento

há poucos momentos de vida calma na vida

que vai se esvaindo aos poucos ao frio da tarde

o que faz essa canção um concerto de violino

ao entardecer o vento o frio a nostalgia de onde

de onde não sei talvez de mim mesmo um dia

em que era eu apenas o olhar que olhava a vida

e a vida agora é que me olha ao vento tão só

tão só o espanto de ainda viver e o vento voa

com o som do violino apenas um breve concerto

só a vida não tem jeito de ter algum conserto







18.10.2018

(Ilustração: Gustave Caillebotte)



1 de nov. de 2018

últimas bodas









- enfim sós (ela)

- enfim sós (ele)

- missão cumprida (quem falou?)



durante longos anos só os passos longos

de chinelos de feltro quebraram o silêncio

dentro daquele pesado casarão





18.9.2018 


(Ilustração: Suzanna Schlemm)