30 de abr. de 2020

movimento do tempo



entre as tuas coxas

no movimento do teu ventre

descobri

o movimento do tempo



o gemido primal do amor

nas dobras da angústia

e do prazer



por entre estrelas e pedras soltas

jorradas de erupções vulcânicas

no meu peito a dor e o ardor da lava



ainda no interior da lagarta

o bater das asas da borboleta

eras tu a valquíria em brasa

e eu escravo remido de tua boceta



14.12.2019 

(Ilustração: Hans Bellmer)



28 de abr. de 2020

motel





o fogo cenográfico na falsa lareira

as velas sem cera na cabeceira

lençóis de linho e colchão de molas

a cama redonda enlaçando corpos

multiplicados em espelhos colocados

por todos os lados – caleidoscópio

o cenário de amores contratados

uma noite apenas e nada mais

detalhes erotizam os sentimentos

torna-os inúteis nas lutas fatais

músculos másculos e formas sibilinas

seios e bundas – a armas femininas

o ventre em jogo coreografado

encena o sexo gemido e gritado



lá em cima no lustre dependurado

em posição mais do que privilegiada

o amor que tudo vê dá muita risada 




14.2.2020

(Ilustração: Tim Olson - Adam and Eve at the Paradise Motel)


26 de abr. de 2020

moinhos




dança a folha ao vento

brilha a prata ao sol

pesa o beijo na boca

quando acaba o desejo



a folha seca some no solo

a prata escurece e perde o brilho

tudo se vira numa outra coisa

tudo no mundo envelhece e envilece

na cama o desejo defunto apodrece

transforma-se o louco amor em ódio

quando o beijo na boca não mais apetece



desonra-me teu corpo

desespera-te o meu engodo

já não há paz de tulipas

nem altares de sacrifícios



segue o teu sangue pelas veias abertas

de feridas escarificadas nos carinhos de agora

seguirei eu o meu curso de rio de montanha

em quedas d’água que movam moinhos de outrora 






13.3.2020 


(Ilustração: Hans Bellmer - peg-top)




24 de abr. de 2020

misterioso amor




para c.m.j.m 



o vento que vem e vai levanta o véu do passado

um tempo de encontros e desencontros

quanto te amava sem poder te amar

quando me amavas entre lençóis e mistérios

num cenário de garoa e ambições perdidas

éramos os dois um único desejo de espanto

a driblar o interdito em quitinetes de sonho

tu bailavas sobre o meu peito a tua nudez

e nossos sonhos somados eram os novelos

de nossos corpos sadios de jovens loucos

que o rio da vida levaria para diferentes plagas

deixando em minha boca o sabor do interminável



11.12.2019 

(Ilustração: Leonid Afremov)


22 de abr. de 2020

medos




passeia o meu medo pelas ruas frias

nas tortas madrugadas de lua nova

quando meus passos tu conduzias

o olho atento em busca de prova

passeia levando pelas mãos geladas

anseios de fantasmas e almas penadas

no canto de muros e nos altos cimos

de árvores curvadas à chuva e ao vento

escorregam-se meus passos nos limos

das pedras por onde caminho e tento

ver nas trevas o teu medo no meu

assim passeamos ambos pelo breu

de muitas noites agora mais mortas

que a curva sinistra das ruas tortas

tu meu amigo e parceiro de medos

arrepias-te da sombra e dos vultos

transformas teu susto em cultos

não há mais que nossos segredos

agora para sempre na noite ocultos

e emparedados como os fantasmas

que saem de nós como miasmas

só o teu medo e os nossos desejos

cabem agora nos passos tortos

somos nós os nossos ensejos

eu e tu - tu e eu - ambos mortos






8.4.2020

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)







20 de abr. de 2020

luto







para luiz carlos lins, 

de quem compreendo o luto 



você partiu

apenas isso – você partiu

e essas duas palavrinhas abriram em meu peito o abismo

talvez nem seja mesmo um abismo talvez

um buraco negro podia eu dizer se contemplasse as estrelas

mas as estrelas se apagaram quando você partiu

então ficou o vazio que eu chamo de abismo

podia dizer que sinto saudade de você

mas saudade é palavra que rola há tanto tempo

que suas arestas se arredondaram

e o espinho que está em meu peito sangra todo dia

espinho no abismo talvez ou talvez abismo de espinhos

brinco com as palavras envergonhado por brincar

a ausência – a sua ausência – não brinca

apenas fica aqui preenchendo o vazio

e como uma ausência é algo que não há mais

o vazio continua um vazio cheio de ausência

se choro – o sofrimento amaina enquanto choro

se penso – o sofrimento se distrai enquanto penso

se trabalho – o sofrimento enraíza na azáfama e fica lá

você continua presente no vazio dessa ausência

todos – todos os dias

todas – todas as horas

todos – todos os minutos

todos – todos os segundos

mesmo quando não estou pensando em você

você está doendo em mim

mesmo quando olho para o lado

é sua sombra que vislumbro passando e sorrindo

o altar de meu tempo e de meu templo com você

tem tantos ex-votos de nossos momentos

que o deus inexistente de minha descrença

passa o dia varrendo lembranças – inutilmente

a palavra que bate no fundo da minha mente

vem do seu canto de abismo que não se cala

pousada em meu ombro e em meus umbrais

e não se calará jamais – nunca mais

never more



22.3.2020 

 (Ilustração: Paul Richmond - Camouflage)




18 de abr. de 2020

lua negra de outubro




numa noite de lua negra de um trinta e um de outubro

fascinaste-me como teu palafrém numa louca aventura

por ares e mares de antigas magias de noturnos sabás

não te cansaste em tuas investidas e eras para mim

a plenitude de danças e mistérios nunca revelados

sei agora o quanto eras tu a lua escondida na nuvem

dos meus sonhos loucos em busca de teus ancestrais

sei que não revolvi todos os teus esconsos nem morri

no sal de tuas preamares e ondas mas enfim descobri

quanto és fogo e quanto és feitiço e quanto és líquida

nas noites em que te entregas às celebrações da negra lua

quando eu te celebro dentro de mim totalmente nua



29.3.2020

(Ilustração: Alméry Lobel-Riche - 1877-1950)





16 de abr. de 2020

lua minguante







a redondez leitosa aos poucos se desfaz

a cada noite

a cada tempo de vento e frio

até que reste apenas um risco no céu

e depois o nada

a treva que faz explodir aos olhos

o brilho das estrelas

o nome escrito na areia para sempre

até que a onda em minutos venha apagar

lembro o poeta parnasiano

“e eu morrendo

e eu morrendo

a delícia da vida

a delícia da vida”

assim o vento frio no tempo certo

faca afiada na noite ao grito final

estamos sós

e a lua minguante

minguada a vida

apenas distantes e frias as estrelas nos olhos

apenas o suspiro

e a delícia de ter vivido

a delícia de ter vivido



20.3.2020


(Ilustração: Catherine Chauloux)

14 de abr. de 2020

liberdade liberdade




joguem no lixo todas as metafísicas

leiam-se como contos de horror e morte

todos os livros ditos sagrados

que todos os deuses se empedrem para sempre

em mármores frios nos museus da estupidez humana

não mais interfiram em nossas vidas

as palavras insanas daqueles que se dizem a voz de algum deus

que todos os templos se tornem palácios de alegria

onde se cantem e dancem a vida – não a morte

e os ventos da paz soprem para longe

todas as maldições de fogos infernais

não mais anjos

não mais demônios

não mais santos e milagres

não mais profetas e suas tolas profecias

não mais pregadores de angústias eternas

a troco de uma bolsa cheia e de uma vida fácil

que esses hipócritas sejam banidos

para uma nuvem de chuva no meio do oceano

instaure-se enfim a liberdade da mente humana

para buscar na realidade das coisas que esse mundo tem

tudo aquilo que lhe cause apenas o bem

banidas as crenças loucas que um tempo de esperança

surja das trevas como o verdadeiro renascimento

não mais lamentos por deuses mortos

nem chorosos cânticos em cerimônias intermináveis

esteja desde já decretada apenas a simples alegria de viver

de viver livre de peias e correntes mentais

e o ser humano grite para as estrelas e para as galáxias

escravo de deus ou de deuses - nunca mais



3.12.2019

(Ilustração: Francisco de Goya)



12 de abr. de 2020

insulae




lá fora arde aos poucos a manhã sonolenta

ao sol do outono ainda em tentativa

olha-se o céu azul do ar mais limpo

à janela aberta ao vento leve

sol e frio

frio é o sentimento de imobilidade

quer-se ir ao vento

quer-se ir ao passo das ruas

sufoca-se na garganta o grito

libera-se com esforço o ar dos pulmões

quer-se ir à asa do canto do bem-te-vi

tudo é silêncio e o silêncio é morte

sente-se o espaço pesado de vontades

e a liberdade sonha no peito opresso

reza-se a ladainha da necessidade possível

ao ver ao vento a folha leviana

que flutua sem medo do inimigo invisível



25.3.2020

(Ilustração: escultura de Anish Kapoor 
- Turning the world upside down  - Israel Museum)

10 de abr. de 2020

infância



os galhos da velha jabuticabeira viravam

asas de avião que um dia ele pilotou de verdade

levavam – esses galhos nus – o nosso riso franco

para esferas muito além daquele solo

lá embaixo

onde nos esperava a sopa rala de minha mãe

um pedaço de pão com margarina

e o som da singer que ela pedalava para comprar esse pão

a felicidade estava na manga madura

que caía do pé

no jambo bicado que um pássaro guloso

não conseguia levar ao ninho

roubado talvez da fartura do quintal vizinho

no abacate que tínhamos de aparar

antes que se esborrachasse

na terra seca de nosso campinho de futebol

a felicidade estava nas bolinhas de gude

a bater umas nas outras

nas aranhas

que puxávamos das tocas com capim molhado de saliva

e púnhamos para brigar umas com as outras

embaixo do pé de ora-pro-nóbis

era a nossa alegria o quadrinho com o herói do faroeste

pulando sobre o bandido

e os cascos dos seus cavalos ressoavam nas nossas noites de frio

os livros contavam histórias que não entendíamos

e por isso

colecionávamos figurinhas de vinte mil léguas submarinas

em álbuns que nunca se completavam

colávamos em cadernos com cola feita de polvilho e água quente

os maços de cigarro que catávamos pelas ruas tortas

e as tardes todas eram de cantoria de música antiga no velho rádio

de folguedos pelos matos e córregos

e quando fazia calor

íamos nadar pelados na cachoeira atrás do morro

parando pelas moitas

para catar alguma tardia gabiroba

ah meu amigo

tuas asas cresceram

e teus desejos embora incompletos foram pelos ares

por cima do velho chico e por cidades de brinquedo nos rincões do norte

mas naquele tempo éramos apenas meninos vadios a chupar jabuticabas

no tempo de jabuticabas

éramos meninos descalços e felizes a chupar mangas

no tempo de mangas

éramos meninos de olho esperto a soltar papagaios

no tempo de ventos

éramos meninos sem eira nem beira a soltar barquinhos de papel

no tempo das enxurradas

éramos meninos espertos a tentar flertar com as meninas internas

no tempo de jogos

quando o colégio dos americanos e da gente rica da cidade

enchia as quadras de atletas vindos de longe para mostrar a todos

como era bela a burguesia

e como era forte a burguesia

e como era competitiva

a burguesia

de cuja sombria embriaguez nunca nos livramos

e depois rodávamos pelos jardins espiando os casais a trocar carícias

sem sequer imaginar que um dia essas carícias nos fariam falta

pelos caminhos da distância e dos desencontros da vida

ah meu amigo

essas lembranças são pedradas saídas de nossos estilingues

que de repente se cobriram com o sangue de nossos passos

não há arrependimentos

meu caro amigo

há apenas o gosto amargo de um tempo vivido

e agora revivido

quando você já não pode mais ler os meus poemas estranhos

quando você já não pode mais me levar nas suas asas

- porque eram nas suas asas que eu voava pelas montanhas de minas

quando você me convidava a ser seu falso copiloto de nossa aeronave

não mais nos galhos da velha jabuticabeira que não mais existe

e o ronco do paulistinha na tarde de sol

é apenas um grilo

um grilo que um dia cantava sob o assoalho da casa de minha mãe



27.3.2020



(Ilustração: Volpi)

(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no podcast indicado na coluna à direita, acima, ou clique no link abaixo);


8 de abr. de 2020

imagem fugidia




quando estou bêbado

podia ligar pra você e dizer te amo

e falar um monte de besteiras

daquelas besteiras que se falam

quando se está bêbado

podia até mesmo dizer que vou me matar

e obrigar você a sair correndo de sua casa

não sem antes ligar para bombeiros e socorristas

e quando toda a vizinhança estivesse alertada

pelas luzes vermelhas e pelas sirenes

eu ia aparecer nu e cantando uma valsa antiga

como se fosse um falso tenor de ópera bufa

dançando num palco de falsas ilusões

e seria detido e levado para um hospital

e internado para tomar um monte de porcarias

na veia para me trazer de volta

à realidade de merda

e essa realidade de merda é apenas um fato

um fato besta e banal que todo cidadão

de vez em quando comete que é ficar bêbado

mas depois de tudo e de todas as explicações

de um sermão da autoridade e de falsas promessas

de que não cometeria de novo o mesmo desatino

de volta à velha solidão de meu quarto

restaríamos apenas eu e meu poço sem fundo

e mergulhado nesse poço sem fundo

estaria eu me debatendo atrás de sua imagem fugidia




11.11.2019

(Ilustração: Francisco Brennand)


6 de abr. de 2020

identidade




escrevo para buscar uma identidade que me parece fluida

sou eu – quem?

o que busco não encontro

ou o que encontro é o que não busco?

sabe-se a fel a vida que se leva

em vozes que ecoam no vazio

basta o sonhado para o sonâmbulo

ou tudo quanto ali está nunca esteve?

flui o vento pelos ouvidos à música da manhã

e não há esferas de luzes pendentes de árvores secas

no espanto de viver não está a vida

está dentro de mim o espinho que me fere

o desencontro de mim para comigo

desata apenas um nó

não desata o desespero do olhar

de quem sobe a montanha e não vê o horizonte



28.3.2020

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portrait)

 

4 de abr. de 2020

houve um tempo








houve um tempo

houve uma praça

houve uma sombra na janela

um relógio antigo a bater as horas

passos nervosos sobre as tábuas longas

porque longas eram as horas da noite

os olhos acesos em longa espera

houve um tempo de beijos mortos

folhas secas pisadas como estrelas secas

flores murchas nos cantos de muro

as trevas da lua nova e dos sonhos inúteis

houve um tempo de sons antigos

e as noites frias refletiam desejos insanos

o pejo e a dor nos pés descalços

pelas ruas mortas povoadas de vultos

de chapéus ao vento e capas longas

e na praça os beijos de angústia

casais estranhos a dançar a valsa dos ventos

nesse tempo estranho de desencantos

um buraco imenso abria o abismo

de uma saudade

nunca mais desapegada de minha sombra





28.11.2019 

(Ilustração: Marc Chagall)


(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no podcast: 

2 de abr. de 2020

harpa


todo o tédio e todas as minhas mágoas

desciam pelo ralo junto com as águas

que escorriam pelos nossos corpos nus

sob o chuveiro onde havia apenas a luz

de nossos beijos loucos e corpos enlaçados

morríamos de prazer em gozos celebrados

certos de que a vida inútil e tão mal vivida

tinha ali naquele tugúrio a única guarida

feliz em teus braços esquecidos os pesadelos

do passado enroscava-me em teus cabelos

molhados no teu ventre os sonhos renovados

quando nesses gozos de prazeres despertados

havia ali apenas o teu corpo ao meu dispor

harpa onde tocava a sonata do nosso amor





29.11.2019

(Ilustração: Carmen Tyrrell - lovers - hot summer love)