10 de abr. de 2020

infância



os galhos da velha jabuticabeira viravam

asas de avião que um dia ele pilotou de verdade

levavam – esses galhos nus – o nosso riso franco

para esferas muito além daquele solo

lá embaixo

onde nos esperava a sopa rala de minha mãe

um pedaço de pão com margarina

e o som da singer que ela pedalava para comprar esse pão

a felicidade estava na manga madura

que caía do pé

no jambo bicado que um pássaro guloso

não conseguia levar ao ninho

roubado talvez da fartura do quintal vizinho

no abacate que tínhamos de aparar

antes que se esborrachasse

na terra seca de nosso campinho de futebol

a felicidade estava nas bolinhas de gude

a bater umas nas outras

nas aranhas

que puxávamos das tocas com capim molhado de saliva

e púnhamos para brigar umas com as outras

embaixo do pé de ora-pro-nóbis

era a nossa alegria o quadrinho com o herói do faroeste

pulando sobre o bandido

e os cascos dos seus cavalos ressoavam nas nossas noites de frio

os livros contavam histórias que não entendíamos

e por isso

colecionávamos figurinhas de vinte mil léguas submarinas

em álbuns que nunca se completavam

colávamos em cadernos com cola feita de polvilho e água quente

os maços de cigarro que catávamos pelas ruas tortas

e as tardes todas eram de cantoria de música antiga no velho rádio

de folguedos pelos matos e córregos

e quando fazia calor

íamos nadar pelados na cachoeira atrás do morro

parando pelas moitas

para catar alguma tardia gabiroba

ah meu amigo

tuas asas cresceram

e teus desejos embora incompletos foram pelos ares

por cima do velho chico e por cidades de brinquedo nos rincões do norte

mas naquele tempo éramos apenas meninos vadios a chupar jabuticabas

no tempo de jabuticabas

éramos meninos descalços e felizes a chupar mangas

no tempo de mangas

éramos meninos de olho esperto a soltar papagaios

no tempo de ventos

éramos meninos sem eira nem beira a soltar barquinhos de papel

no tempo das enxurradas

éramos meninos espertos a tentar flertar com as meninas internas

no tempo de jogos

quando o colégio dos americanos e da gente rica da cidade

enchia as quadras de atletas vindos de longe para mostrar a todos

como era bela a burguesia

e como era forte a burguesia

e como era competitiva

a burguesia

de cuja sombria embriaguez nunca nos livramos

e depois rodávamos pelos jardins espiando os casais a trocar carícias

sem sequer imaginar que um dia essas carícias nos fariam falta

pelos caminhos da distância e dos desencontros da vida

ah meu amigo

essas lembranças são pedradas saídas de nossos estilingues

que de repente se cobriram com o sangue de nossos passos

não há arrependimentos

meu caro amigo

há apenas o gosto amargo de um tempo vivido

e agora revivido

quando você já não pode mais ler os meus poemas estranhos

quando você já não pode mais me levar nas suas asas

- porque eram nas suas asas que eu voava pelas montanhas de minas

quando você me convidava a ser seu falso copiloto de nossa aeronave

não mais nos galhos da velha jabuticabeira que não mais existe

e o ronco do paulistinha na tarde de sol

é apenas um grilo

um grilo que um dia cantava sob o assoalho da casa de minha mãe



27.3.2020



(Ilustração: Volpi)

(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no podcast indicado na coluna à direita, acima, ou clique no link abaixo);


Um comentário:

  1. Lindo poema! Quem viveu tudo isso, realmente teve uma infância ótima de ser lembrada! A riqueza de detalhes faz a gente viver um pouco desse tempo junto com o poeta! Parabéns!

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