os galhos da velha jabuticabeira viravam
asas de avião que um dia ele pilotou de verdade
levavam – esses galhos nus – o nosso riso franco
para esferas muito além daquele solo
lá embaixo
onde nos esperava a sopa rala de minha mãe
um pedaço de pão com margarina
e o som da singer que ela pedalava para comprar esse pão
a felicidade estava na manga madura
que caía do pé
no jambo bicado que um pássaro guloso
não conseguia levar ao ninho
roubado talvez da fartura do quintal vizinho
no abacate que tínhamos de aparar
antes que se esborrachasse
na terra seca de nosso campinho de futebol
a felicidade estava nas bolinhas de gude
a bater umas nas outras
nas aranhas
que puxávamos das tocas com capim molhado de saliva
e púnhamos para brigar umas com as outras
embaixo do pé de ora-pro-nóbis
era a nossa alegria o quadrinho com o herói do faroeste
pulando sobre o bandido
e os cascos dos seus cavalos ressoavam nas nossas noites de frio
os livros contavam histórias que não entendíamos
e por isso
colecionávamos figurinhas de vinte mil léguas submarinas
em álbuns que nunca se completavam
colávamos em cadernos com cola feita de polvilho e água quente
os maços de cigarro que catávamos pelas ruas tortas
e as tardes todas eram de cantoria de música antiga no velho rádio
de folguedos pelos matos e córregos
e quando fazia calor
íamos nadar pelados na cachoeira atrás do morro
parando pelas moitas
para catar alguma tardia gabiroba
ah meu amigo
tuas asas cresceram
e teus desejos embora incompletos foram pelos ares
por cima do velho chico e por cidades de brinquedo nos rincões do norte
mas naquele tempo éramos apenas meninos vadios a chupar jabuticabas
no tempo de jabuticabas
éramos meninos descalços e felizes a chupar mangas
no tempo de mangas
éramos meninos de olho esperto a soltar papagaios
no tempo de ventos
éramos meninos sem eira nem beira a soltar barquinhos de papel
no tempo das enxurradas
éramos meninos espertos a tentar flertar com as meninas internas
no tempo de jogos
quando o colégio dos americanos e da gente rica da cidade
enchia as quadras de atletas vindos de longe para mostrar a todos
como era bela a burguesia
e como era forte a burguesia
e como era competitiva
a burguesia
de cuja sombria embriaguez nunca nos livramos
e depois rodávamos pelos jardins espiando os casais a trocar carícias
sem sequer imaginar que um dia essas carícias nos fariam falta
pelos caminhos da distância e dos desencontros da vida
ah meu amigo
essas lembranças são pedradas saídas de nossos estilingues
que de repente se cobriram com o sangue de nossos passos
não há arrependimentos
meu caro amigo
há apenas o gosto amargo de um tempo vivido
e agora revivido
quando você já não pode mais ler os meus poemas estranhos
quando você já não pode mais me levar nas suas asas
- porque eram nas suas asas que eu voava pelas montanhas de minas
quando você me convidava a ser seu falso copiloto de nossa aeronave
não mais nos galhos da velha jabuticabeira que não mais existe
e o ronco do paulistinha na tarde de sol
é apenas um grilo
um grilo que um dia cantava sob o assoalho da casa de minha mãe
27.3.2020
(Ilustração: Volpi)
(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no podcast indicado na coluna à direita, acima, ou clique no link abaixo);
Lindo poema! Quem viveu tudo isso, realmente teve uma infância ótima de ser lembrada! A riqueza de detalhes faz a gente viver um pouco desse tempo junto com o poeta! Parabéns!
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