(H. Sorayama)
“Qual é o animal que tem
quatro pernas de manhã, três ao
meio-dia e duas ao anoitecer? ” Esse o enigma proposto pela Esfinge a
Édipo. Referia-se, é claro, ao homem. Engatinha quando criança, anda sobre duas
pernas na maturidade e utiliza-se de uma bengala na velhice.
Há apenas um engano nesse
enigma mítico: na verdade, o homem nunca tem, em sua trajetória, apenas duas
pernas. O homem é um animal de três pernas. E sem a terceira perna ele não
sobrevive.
Senão, vejamos: como todo
animal, enquanto no útero da mãe, é dela que ele depende para sobreviver. Até
aí, nada de mais. Também ao nascer, em seus primeiros vagidos, é a mãe ou algum
substituto que vela por sua segurança. E começam as diferenças entre o
bicho-homem e os demais bichos. Quase todos os nossos demais irmãos vivos já
nascem com alguns dispositivos de sobrevivência bastante desenvolvidos. Embora
dependam dos pais, essa dependência não é absoluta. A maioria bem que
conseguiria sobreviver, se os pais faltassem, pelos menos até encontrar uma família
substituta. O homem, não. Se não tiver outros homens para ampará-lo,
alimentá-lo e protegê-lo, não teria como sobreviver. E aí nasce a terceira
perna. O seio da mãe. O cuidado de alguém. A chupeta. O brinquedinho. O
berço...
Com essa terceira perna, nascem
também os traumas. Os complexos. A dependência de fatores externos que nunca
mais o deixarão. Com marcas indeléveis em sua personalidade. E a terceira perna
muda a cada idade, a cada circunstância, embora esteja sempre presente em todos
os momentos da vida humana. E ela varia de pessoa para pessoa. Pode ser a mãe,
na infância. Ou o professor, na adolescência. O conselho de um amigo, na idade
adulta. Mas essas são terceiras pernas comuns, ou melhor, mais óbvias. Há
outras, muitas outras. Desde aquelas que milhões utilizam até aquelas
específicas de cada um. Idiossincráticas: do indivíduo ou de um povo.
A religião, por exemplo.
Quer terceira perna mais gorda? E mais variada? O cristianismo, o budismo e
vários outros ismos escondem milhares de tipos de terceiras pernas. A pior de
todas, aquela que quase ofusca todo os demais sentidos, não importa em que ismo
esteja, é o fundamentalismo, também ele um ismo. E talvez anterior ao
fundamentalismo, há um outro ismo pior: o monoteísmo. Ao adotar a crença num único
deus, a humanidade inventou a exclusão, o divisionismo, o preconceito, o ódio
por diferença de opinião. E todas as sacanagens possíveis foram cometidas em
nome de um único deus, criado à imagem e semelhança do homem: cruel, vingador,
ciumento de seu rebanho, a ponto de não admitir que ninguém que pense diferente
possa partilhar de suas benesses.
O rol de terceiras pernas
estranhas também é imenso: pertencem às superstições. Ou ao folclore. Pode ser
uma medalhinha de São Jorge ou do seu dragão. Pode ser um brinco no meio da
língua. Ou a crença de que voltará Dom Sebastião de Portugal, para fazer o
sertão virar mar. Ou o mar virar sertão.
Leio no jornal que o homem
mais gordo do mundo, com cerca de 450 quilos, que mora nos Estados Unidos, teve
de ser transportado para o hospital. Além de quase demolirem a casa, para que
ele pudesse sair, os bombeiros tiveram que contar com helicóptero e uma carreta
especial. Seu problema: come demais, quando fica angustiado ou depressivo. A
terceira perna, neste caso, transformou esse coitado num homem elefante.
Uma terceira perna
engraçada, se não fosse trágica, nos dias de hoje: os cursos de autoajuda.
Substituem, por algum tempo, em seus efeitos imediatos, mas que não devem
perdurar mais do que o tempo de esquecer o quanto se pagou por eles, a terceira
perna mais complicada de tratamentos psicanalíticos ou psicológicos. No
entanto, não servem para nada. Aliás, servem: servem para engordar as contas
bancárias de inúmeros prestidigitadores da boa-fé de idiotas que acreditam em
milagres a cem dólares a hora. Nesse caso, a terceira perna desses ilusionistas
é o bolso cheio de dinheiro.
Triste terceira perna é a
das nações. A terceira perna coletiva. Jogos olímpicos, por exemplo. A nações
se empolgam com os feitos de seus atletas, como se de cada medalha dependesse o
seu destino de nação. Os países do terceiro mundo, então, fazem de cada
conquista uma forma de autopromoção que beira o ridículo. É como se uma simples
medalha - de bronze, prata ou de ouro - pudesse pôr de joelhos o “inimigo” mais
poderoso, mais rico ou mais charmoso. No Brasil, esportes como judô, iatismo ou
hipismo (que às vezes ganham medalhas) são festejados como se cada brasileiro
fosse um exímio conhecedor de ippons ou tivesse no quintal de sua casa um haras
com os mais puros-sangues ou vivesse em marinas fantásticas com barcos ainda
mais fantásticos. O povo precisa disso, diriam os menos cépticos. Afinal, é o
circo nosso de cada dia.
Circo onde vivemos e
morremos como palhaços. Desdentados como o idiota do palhaço Tiririca, com suas
musiquinhas preconceituosas, ingenuamente preconceituosas, mas espertamente
utilizadas pela multinacional Sonny, para faturar às custas da ingenuidade de
uns e da estupidez de milhares. Transformam-se os atletas olímpicos em heróis
da mesma forma como se criam os Mamonas Assassinas ou os Tiriricas da vida em
matéria de consumo rápido.
Pobre país, a correr atrás
de heróis para defender sua integridade como nação. País que busca terceiras
pernas no ato isolado de seus cidadãos, para fugir à responsabilidade coletiva
de construir uma nação decente para os seus filhos.
P.S.:
Este texto foi escrito em 1997. Havia referências aos jogos olímpicos de
Atlanta, que eu retirei. Mas deixei as referências aos Mamonas Assassinas, que já
haviam morrido tragicamente num acidente de avião, em 1996, e ao palhaço
Tiririca que, hoje, é deputado federal!