30 de mai. de 2018

LAGO







“UMA TRISTEZA É UM LAGO MORTO DENTRO DE NÓS”. 

Fernando Pessoa 





Tenho dentro de mim um lago 

azedo 

de aziagas águas 

e criaturas mortas. 



Lá navegam fantasmas 

de gente amiga e gente amada, 

sombras etéreas de eternas saudades. 



Secá-lo não posso, 

nem contemplá-lo por muito tempo. 

Deixo-o escondido no peito 

a lembrar que um dia 

será ele tão imenso 

quanto meu próprio ser.



(Ilustração: Honoré Daumier)



25 de mai. de 2018

furna







numa funda furna de meu ser

encontrei escolhos inabaláveis

desejos ocultos e anseios desgarrados

pedaços de antigas paixões

e no meio de tudo o meu profundo desencanto



naquela furna de meu ser o meu cérebro

embaralha vidas vividas e há tanto tempo desfalecidas

que o abalo de as lembrar enterra um pouco mais

o espinho das longas caminhadas por estradas sem fim



descubro nessa furna o meu entristecer de águas

que não moveram moinhos nem se encachoeiraram

transformadas em lagos escuros e fundos onde corroem

os sentimentos que julgava os melhores da minha existência



não desejo o vento que vem com venenos de antanho

mas lá está a brisa constante a soprar aos meus ouvidos

que não terei um segundo de paz nesta vida se não remover

os escolhos e os restos naufragados nessa funda furna de meu ser



2.3.2018



(Ilustração: Alyssa Monks)



24 de mai. de 2018

internacional







abram-se todas as fronteiras a todos os povos

que venham e vão os passos dos inconformados

o mundo é vasto e nele devem caber todos os homens e todas as mulheres

nele devem viver sem peias e sem arames farpados e sem muros

todos os que professam humanidade

derrubem-se de sua arrogância todos os tiranos

desçam dos palácios todos os que assinam tratados

não há lugar no mundo para os donos do petróleo

não há lugar no mundo para os que exploram o ouro

não há lugar no mundo para os que espalham a morte

abram-se mentes e cantos a todas as marchas

os ventos de cada bandeira agitada derrubam as incompreensões

falem todos uma só língua em seu próprio idioma

pobres e miseráveis não contemplem de longe as mansões

ruas se tornem rios de gritos e vitórias do prazer de viver

não importa quem você leva para sua cama

não importa quem você convida para o seu banquete de arroz com feijão

não importa quem dança com quem na festa do harpejo sem dono

derrubem por favor todas as fronteiras a todos os povos

para que os passos não marchem numa só batida do tambor

para que os olhos não olhem todos numa só direção



7.4.2018


(Ilustração: Manabu Mabe - Grito,1958)


Você pode ouvir este poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no podcast:


- no youtube:


23 de mai. de 2018

fruta







sabe a vento 

a fruta negra ao galho presa 

sabe a cheiro de mato 

a cheiro de riso 



e só ela sabe 

do belo que contêm 

a negra forma 

o redondo olho 

de doce prazer 

que explode no céu 

no céu do sabor 

em orvalho de mel 



sabe a sucos 

que só se revelam 

no último êxtase 

e o mel que escorre 

sabe a rios que correm 

nas babilônias 



sabe a vento 

a vento de Minas 

a negra filha 

que d’África não veio 

a negra fruta 

da jabuticabeira


22 de mai. de 2018

caçador de poesia








li algures o nome de um poeta britânico que viveu em majorca

fui então atrás de robert graves e encontrei laura riding

duas vidas cruzadas e descruzadas com uma tentativa de suicídio no meio

duas vidas de poetas tão diversos e tão parecidos

nascido o primeiro na ilha de todas as ilhas

ela do continente chamado brooklin família de judeus

dois poetas que se amaram e se desamaram entre oceanos

separados unidos jungidos versificados consagrados



fiquei pensando eu caçador de poesia e de poetas mensageiro

às vezes eu que escrevo aquilo que chamo de versos e nem sei

se são mesmo versos o que absolutamente não importa

eu caçador de metáforas em poemas alheios um dia será

que alguém irá procurar por mim na grande enciclopédia virtual

e se procurar vai encontrar apenas a minha pobre poesia

e nunca haverá outro poeta ou outra poeta por trás de mim

ou será ou não será não sei talvez haja talvez não

para um caçador de poesia como eu o rastro que deixo

talvez nem seja assim um rastro que fique nem que provoque

alguma curiosidade de um futuro que não sei prever

poeta não profeta embora o nome me traia nem judeu eu sou

e sigo perseguindo a musa dos outros a musa fugitiva entre

as pedras do caminho que a poesia sempre ela ilumina e faz

que eu seja o que sou e me torna só um pouco menos infeliz

assim como laura e seu amante assim como graves e sua amante

de ambos a poesia a unir e separar entre tantos sonhos inúteis





10.5.2018



(Ilustração: Marco Ortolan - Ridi, Pagliaccio e ognun applaudirà)



21 de mai. de 2018

vida junkie






a vida é junk picada no veio da veia o veneno da vida

corrói por dentro o sangue que pulsa o ar dos pulmões

o pensamento em circuitos em curto circuito o sonho

brilho de cometa em céu de brigadeiro bem doce

o rio a correr em águas de mel e fel pelas fendas

de morros e vales onde cavalos selvagens relincham

junkies loucos a dançar na lua a pedra verde em luz

à luz do ventre da terra o recheio da desesperança

lenta a viagem através do vácuo em ventosas velas

enfunadas aos mares bravios de terras longínquas

a vida flui junk de cheiro de canela e cocares

à dança do vento no cio da montanha em fogo

picadas no veio em busca de ouro e de egos

selfs de sílfides nuas em riachos de outrora

a verdade saindo nua de um poço profundo

e as estrelas caindo de um céu de trevas e futuros




15.5.2018

(Ilustração: Alyssa Monks)


20 de mai. de 2018

rezar ou trepar








se você está em dúvida entre rezar e trepar

saiba minha querida

que fará melhor negócio sair comigo

e ajoelhar-se e rezar e gozar

com meu caralho

se você for rezar

quem sabe um dia irá para o paraíso

mas é uma promessa que você

não gostaria de cobrar

e não é assim tão certo que o seu deus irá perdoar

a todos os outros pecados devidos e não remidos

no entanto na minha igreja de paixão e tesão

prometo-lhe aqui mesmo o paraíso

sem nenhum outro sacrifício

que não sejam beijos e carícias

trepemos pois meu amor em rezas e ofícios

que a paixão a tudo perdoa e lava bem lavado

todos nossos pecados de amor e tesão



18.4.2018


(Ilustração: Luc Lafnet -1899-1939)

19 de mai. de 2018

poeta marginal










não sou um poeta marginal

sou apenas uma das margens de mim mesmo

escrevo versos que parecem versos que parecem prosa

que parece de novo um verso torto

entorto o estro e a vida

que me leva para o delírio da rotina

o rio passa em águas barrentas

o lago ao luar retém minhas tormentas

que não são assim tão estrondosas

ferem apenas a superfície de meu ser

a margem que me resta

esboroa em torrões e lodo bruto

e isso é o meu verso em prosa

ou minha prosa de mineiro esquecido

a caminhar sobre as águas turvas

como se profeta fora de um mundo

que o ignora como eu mesmo o olho à distância

com meus olhos corroídos por dentro

na escavação que turva a cada dia um pouco mais a paisagem 





18.5.2018


(Foto de Fátima Alves; Lavras/MG)



18 de mai. de 2018

necessidade da poesia









perguntam-me para que serve a poesia para que isso

e tudo o que posso dizer é que a vida não pode ser apenas isso

essa pressa essa loucura de todos se abraçarem como ouriço

a vida precisa de sonho a vida precisa de um pouco de feitiço



nem que seja o feitiço de palavras de amor e viço

que floresçam a cada manhã até mesmo num cortiço

ou no lodo do coração fechado do homem submisso

preso à tragédia do dia a dia e do inútil compromisso 





12.5.2018


(Ilustração: Henri Matisse 1898 - femme lisant en robe violette)



17 de mai. de 2018

liberdade







como são frágeis as asas da liberdade

a voar sobre operários e camponeses

qualquer aragem que sopre da boca dos malditos

faz que ela caia e arrebente com todas as lutas



soltamo-la à liberdade de nossas gaiolas e de nossas gargantas

não conseguimos no entanto manter o seu voo de fênix

e se a vemos como fênix é para que nunca deixemos

de aquecê-la em nosso peito como aos filhos que procriamos



como são frágeis as asas da liberdade

quando a soltamos de nossas gargantas

qualquer sopro da boca de um canhão

derruba seu voo e destrói nossos sonhos



acolhemo-la à liberdade após cada voo em nossas casas

aquecemos suas asas quebradas com o fogo de nossos anseios

esperamos que se cicatrizem suas feridas e suas desesperanças

e soltamos de novo suas asas para que ela voe sobre nós



como são frágeis as asas da liberdade

depois de tantos voos e sobrevoos

as asas e os olhos feridos de traições

acendem de novo nossos corações



tantas vezes voa a frágil liberdade levada por ventos

que brotam de nossas angústias e de nossa persistência

que mil vezes esquecemos de contar nossos mortos

e enterrar nossos filhos para seguir com os olhos o seu voo

e se são frágeis as asas da liberdade

que voa e sobrevoa sobre nós

fortaleçamos nossos braços e nossa luta será

também a fênix que sempre renasce






27.4.2018




(Ilustração: Debora Arango, 1907-2005 - huelga de estudiantes)


(Ouça esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:


16 de mai. de 2018

amor perigoso







periga o amor bater de frente logo ali no bar da esquina

com a turma da pesada e dançar um funk ou um blues etílico

e acabar destroçado num show de rock num estádio de futebol

periga o amor acabar quadrado numa cama de motel

entre espelhos de cristal vagabundo tomando uísque falsificado no paraguai

cheirando calcinha ou usando cuecas transparentes

calmo o amor nunca foi em sua ânsia de poder e foder

mas periga agora sentir o peso do passado podre

e acabar à deriva num bote em plena preamar

e à luz do luar dançar pular gozar um cancã

como se nunca houvesse mais o tal amanhã

chega o amor para destronar o rei

e encontra o rei jogando pelada na várzea

a coroa debaixo do banco dos jogadores reservas

vai o amor para o campo e busca o cheiro de rosas

mas a vagina aberta de putas de bordel de terceira

atrai mais que mosca em torno de matéria podre

e o amor afunda seu destino estranho em gozos de antanho

e prazeres de cada momento o seu olho castanho mergulhado

em piscinas de ópio e danças macabras o amor é assim

e periga sempre não saber para onde vai cada passo torto que o leva

para cada homem ou cada mulher que não variam seu repertório

e dançam sempre a mesma melodia e o mesmo bater de tambores

e o amor amplia seu repertório na cama redonda de casais que não se amam

envia mensagens a todos componentes de seu grupo

dizendo que vai se suicidar às três horas da manhã bem defronte

ao palácio do governo como protesto a tudo o que sabe que não existe

e periga o amor acabar seus dias toscos como todos os que se suicidam

nas masmorras fedorentas da polícia federal se não houver quem lhe diga

que ninguém mais acredita que ele ainda seja capaz de alguma coisa

nesse mundo

e o amor

ora o amor

quem ainda acredita no amor ou na capacidade de quem quer que seja

de beijar sua boca no asfalto quente depois que ele fingir um orgasmo

e engasgar a última mensagem para todos os membros de seu grupo

nas redes antissociais do estranhamento e da bomba de hiroshima




5.5.2018


(Ilustração: Alexey Vasiliev - libélula)



15 de mai. de 2018

moto perpétuo







revoguem-se todas as leis todos os decretos todas as portarias

revoguem-se inclusive as leis da física da química e de todas as ciências

revoguem-se as regras de construção e de destruição

revoguem-se as gramáticas e as especulações financeiras

revoguem-se bosques e rios

revogue-se a voz de todos os que vivem no fundo das minas

revoguem-se a mesa da ceia dos miseráveis e o pão ázimo do forno dos poderosos

revogue-se o brilho das estrelas e revogue-se o olhar mais atento do menino que busca o pássaro da felicidade

revogue-se o desejo que brota no cheiro de flores pisadas

pelos pés das moças que buscam o tempo perdido em romances medievais

revoguem-se todas as palavras mesmo as que ainda moram

na memória dos tempos futuros

revoguem-se os pelos pubianos e a queda dos aviões

revogue-se tudo o que disseram os deuses nos templos destruídos

revogue-se a canção que ainda não chegou à lua

revoguem-se os mares e dentro dos mares os navios naufragados

revogue-se a fome dos predadores e revogue-se o beijo

que ficou na boca da prostituta ao se despedir do último cliente

revogue-se o pio da coruja e revogue-se a disputa pelo gol mais bonito

revogue-se o diálogo da borboleta e dos crocodilos

revogue-se a pena dos pássaros e dos condenados

revogue-se o susto dos devorados e dos carrascos

que se revoguem todas as prisões e se arranquem todos os dentes de todos os desdentados do planeta

revogue-se a picada do mosquito

revogue-se o passo trêfego do bêbado

e que se marquem com cruzes negras as portas de todos os que ainda respiram

revogue-se o vento que levanta a saia da menina sem pejo

e dispam-se de inveja todos os músicos que tocam chopin nos sinos das igrejas

que se revogue para sempre o choro das crianças que ainda não provaram

o glacê do bolo de seu primeiro aniversário

revogue-se o sangue que escorre todo mês pelas pernas

das ex-futuras matrizes de todos os deserdados

e que se passem a ferro quente

a língua das serpentes e as cascas de frutas que não amarelaram

revogue-se o teu pedido de clemência

destruam-se depois de devidamente revogadas

todas as pontes que ligam as estrelas e o sorriso do lagarto

revogue-se a cor com que pintaste os teus passos

revoguem-se o esperma do impotente e a bala que se perdeu na favela

e foi encontrada depois no útero da fêmea do javali

revogue-se o homem que gosta de mulher

revogue-se a mulher que gosta de homem

revogue-se também o amor entre os que não se podem amar

revoguem-se as estruturas atômicas e todos os genes gerados em laboratórios

que se revoguem o espaço sideral e os cabos submarinos

revoguem-se os navios e as estradas que conduzem às montanhas

revogue-se o desejo entre os que se aproximam da brasa ardente

revoguem-se as disposições contrárias e a favor

e que se revoguem enfim o brilho da noite e a escuridão dos dias



28.1.2018


(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia_- Menos tu vientre - 2012)


14 de mai. de 2018

raiz







se amarga a raiz

não será doce o tempero



buscar ser feliz

sobre o próprio desespero

sem arrancar do chão a erva daninha

é como semear girassóis

na pedra dura da montanha



enquanto teu passo te encaminha

em busca de arrebóis

solta o grito que tua garganta arranha



pisa as pedras de tua estrada

sem medo de nada

que a amargura de tua raiz

está para sempre fadada

a não deixar que sejas feliz



tempera o tempo de espera

e deixa a que vida flua

só é doce a vinda da primavera

quando só desejas que no céu a lua

os teus passos e caminhos ilumine

antes que tua vida inútil termine 





10.5.2018

(Ilustração: René Magritte)






13 de mai. de 2018

profissão de fé









não me irrites com teus cantos mágicos

não firas meus ouvidos com tuas preces trágicas

não tentes minha inteligência com teus santos trêfegos



teus deuses que me importam teus deuses

mortos a pauladas ou crucificados em madeiros podres

são todos eles tão patéticos em suas dores impávidas

deixa-os em seus túmulos ou em suas moradas etéreas

mortos estão e mortos devem permanecer indômitos

criaturas de tuas entranhas e de tuas próprias tragédias

falsos mágicos em tua mente a dominar o mundo



não me venhas com teus mistérios falsos

não me convences com teus milagres encomendados

os teus deuses são seres trágicos de tua mente trêfega



calo-os a todos distantes de minha mente libertária

jogo-os a todos na vala comum dos mortos não identificados

quero-os a todos bem longe de minha vida e sentimentos

e dou a todos enfim os meus mais sinceros pêsames




2018


(Escultura de Benvenuto Cellini)


12 de mai. de 2018

tua nudez










desculpa minha bela

mas tua nudez só se completa numa tela

de esplendor e rara beleza

na retina de meus olhos e na expressão sublime do meu desejo

tuas formas são a delicadeza

que minha imaginação tece em doce ensejo

quando nua te vejo

perfeição que construo linha por linha no enleio

de fazer de cada curva do teu seio

o arrebol de cores e paixões mais secretas

não tens minha querida os olhares de estetas

nem de poetas

que não o meu olhar para medir o teu encanto

e se teu corpo me causa assim tanto espanto

a ponto de curvar-me em total adoração

aprecia essa beleza toda em cada verso do meu canto

e mantém acesa a chama da minha paixão







4.5.2018 


(Ilustração: Gerda Wegener)




11 de mai. de 2018

e aí mana cante sua canção, de Harryette Mullen - tradução





 
e aí mana cante sua canção

falsa loira dona rubia

passou o dia inteiro

dando um trato na sua núbia



ela sabe o lugar é o de sempre

com ou sem ele

é preciso gritar quando

você dita o entra-e-sai



quem dança não cansa

dê prática à sua teoria

ela quer saber é coisa de homem

ou coisa sua



desejando-lhe sorte

ela lhe dá limões para chupar

e lhe diz vamos lá querido

melhore sua embocadura




*************




go on sister sing your song (*)



go on sister sing your song

lady redbone señora rubia

took all day long

shampooing her nubia



she gets to the getting place

without or with him

must I holler when

you’re giving me rhythm



members don’t get weary

add some practice to your theory

she wants to know is it a men thing

or a him thing



wishing him luck

she gave him lemons to suck

told him please dear

improve your embouchure

______________



(*) Do livro Recyclopedia, reedição, em um só livro, de Trimmings, S*PeRM**K*T, and Muse & Drudge, Graywolf Press.



(Ilustração: Frank Morrison – dynasty)

Nota: eu e meu amigo Wagner Mourão Brasil fizemos uma tradução a quatro mãos, um pouco diferente desta que eu apresento aqui, eu meu blog. Confira em:

https://poemstraduzidos.blogspot.com/2020/07/harryette-mullen-estados-unidos-1953.html



9 de mai. de 2018

equilíbrio instável










instável o equilíbrio do ser diante da vida

nada é aquilo que devia ser ou nada parece

aquilo que devia parecer e segue a girar

a esfera em torno de si mesma enquanto

os seres humanos se estiolam em espirais

que levam ao caos e ao desalento profundo

na noite eterna de estrelas já mortas

os olhos humanos não buscam campos

de girassóis durante solstícios de verão

queimam-se energias díspares e os ventos

que sopram das gélidas montanhas

redemoinham nas mentes tortas em serpentinas

de frágeis anseios que nunca se realizam


7.3.2018



(Ilustração: Paul Bond - A Delicate Perch)

8 de mai. de 2018

vida inconsútil







um manto de magma e sal

jardim de fontes e nenúfares

tece o tecido em teias

pelas quais passeias e tateias

ó homem dos deuses esquecido

e o manto em inconstantes tentáculos

sustentam teu mais sinistro dogma

do sal o alarde e tudo quanto arde

do magma o horizonte que desponte

em novas e tremendas esperanças

inconsútil a trama entre as lanças

e pontas de agulha o teu olhar

vences batalhas e deixas tuas tralhas

ao luar de ventos ardentes e sóis

não encontras no manto o magma

de noites nem de arrebóis

mata a morte e mata teus medos

enrola em ti mesmo o manto estelar

disputa com o instante os segredos

e não te esqueças de que estás só

vive tua vida aqui onde ficarás

que és do universo menos que pó





16.3.2018 

(Ilustração: Claude Monet)


7 de mai. de 2018

viuvez








eras meu tronco e raiz 

a seiva que me levavas 

meus sonhos sustentava 



sem ti sou folha ao chão 

para ser morta e pisada 

em adubo transformada 

e ao pó dos ventos levada 



meus frutos forçavas 

meus sumos sonhavas 

agora sem ti sou menos 

muito menos que nada 








23.4.2018

(Ilustração: Alyssa Monks)





6 de mai. de 2018

vida eterna









diz que fez com deus a reserva

para ganhar a vida eterna



mas depois de morto

jogaram seu corpo

dentro de uma cisterna

no mais fundo do poço



não restou nenhuma história

nem existe mais memória

não se encontrou um só osso

nem carniça pra urubu



mas é isso o que se chama

virar pó virar lama

neste mundo tão imundo

e tomar bem lá no fundo

bem fundo do próprio cu 






14.4.2018


(Ilustração: Bernard Buffet - 1928-1999)

5 de mai. de 2018

un faune









sigo com os olhos le prélude de l’après midi d’un faune

o tronco rugoso a escalada as mangas o lusco-fusco

o pequeno fauno descansa num galho e sonha

a noite vem lenta e a lua lentamente enluara o vale

sonha o sonho que sabe a manga madura o pequeno fauno

os olhos atentos os ouvidos a ouvir os grilos

o som do vale e da vida pululando em chaminés longínquas

o cheiro da folha da mangueira a manga madura no galho mais fino

os grilos o cicio dos pássaros o arrulhar do vento

a noite que chega o pequeno fauno lento em seu sonhar

não havia ali nenhum debussy só o farfalhar do luar

o bem-te-vi talvez algum ninho de colibri

nas folhas folhosas da mangueira o cheiro da lua

o vento e sonhos que o vento leva para sempre





17.3.2018

(Ilustração: foto de Fátima Alves; Lavras/MG) 




4 de mai. de 2018

Um dia levados







Um dia levados

pelos demônios fardados

seus filhos sumiram



em sujos porões

- torturados -

seus filhos e irmãos cumpriram

a saga dos ladrões.



Seus corpos lacerados

por fundas províncias

largados

como inúteis fardos

em terra maldita.



Sua vida, seus sonhos,

em louca desdita

massacrados

pelos demônios fardados.



Libertários do mundo!

Antes que a dor arrefeça,

é necessário buscar o fundo

sentimento do mal,

exorcizar os demônios

e já, agora, como o raio

realizar com justiça os sonhos

das loucas da Praça de Maio.




S/data 


(Ilustração: madres y abuelas de plaza de mayo)



3 de mai. de 2018

poeira de estrelas









ouvi várias vezes mestre chico de assis dizer

que não deves dormir em teu quarto

mas entre as estrelas da galáxia



do velho mestre farei o caminho de volta



não deves acordar nas galáxias

deves despertar de teu sono cada manhã

bem na terra de chão batido de uma tortuosa

estrada de minas

nas areias de uma praia deserta

junto às raízes de árvores amazônicas

cheirando o cheiro do estrume

e das águas mornas das cacimbas

sentindo nos pelos os ventos dos pampas

ouvindo o cantar da seriema

nos alagados do pantanal



deves despertar de teu sono de estrelas e luas jupterianas

pronto para as tormentas dos teus passos

num cavalo bravio a voar vestígios de vozes

de mil mortes em madeiros podres



deves tu saber que assim como o vento sopra bravio

e depois em brisas se esvai

a tua vida é sopro ou suspiro de néctar no bico do colibri



deves por ela passar ao compasso breve do pio da juriti

o pó das estelas de sonho leve

cobrirá teus olhos para tudo que ao teu redor palpita e vive

e tudo

tudo que palpita e vive em torno de teus suspiros de outono

continuará vivo e palpitando depois de ti



27.3.2018


(Ilustração: August Macke)

(Ouça este poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:




2 de mai. de 2018

passeia a lua









na noite sem nuvens passeia a lua 

sobre nossos sonhos sem saber que somos 

a sombra sem sono que vagueia sem rumo 

pelas planuras do planeta solitário em busca 

de algo mais que a vida que não vivemos 



o brilho dos rios à luz do luar e o lago opaco 

transformam raios aos olhos tortos toda a face 

de nosso desencanto de seres rastejantes 

dentro de um universo que não compreendemos 



que passeie a lua sobre o tempo dos homens 

que passem as estações e sobre elas todas as vidas 

as estrelas do universo já se apagaram há muito 

e só resta na noite o brilho da lua que passeia 



os loucos fingem sua loucura e os poetas sonham 

ao brilho opaco do diamante bruto que sai da montanha 

e a lua sem pejo anoitece os pensamentos humanos 

como pássaros de fogo no seu derradeiro voo 



passeia lua passeia e desilude o passo trêfego 

que não deixa marcas na pedra rude 

contém teu brilho no brilho de cada olho podre 

que teu caminho não tem marcas nem escolhas 



25.4.2018



(Ilustração: Robert Fisher Moon Dance Coober Pedy) 




1 de mai. de 2018

o ovo






palindromicamente o ovo

quietamente ovoide

quietamente em si mesmo

sem colombos e sem estremecimentos

o ovo palindrômico

serve apenas a si

serve apenas ao desejo de vida

se quieto em espaçosa espera

rola em si a bifurcada língua

espera

a vida que lá dentro acende o olho

o olho quase palíndromo como o ovo

não morre em si como o ovo

o olho do ovo

o ovo do olho

o olho da serpente

dentro do ovo que trinca

o ovo da serpente

quando o vento que sopra

sopra a seu favor




24.3.2018



(Ilustração: Banksy)