15 de mai. de 2018

moto perpétuo







revoguem-se todas as leis todos os decretos todas as portarias

revoguem-se inclusive as leis da física da química e de todas as ciências

revoguem-se as regras de construção e de destruição

revoguem-se as gramáticas e as especulações financeiras

revoguem-se bosques e rios

revogue-se a voz de todos os que vivem no fundo das minas

revoguem-se a mesa da ceia dos miseráveis e o pão ázimo do forno dos poderosos

revogue-se o brilho das estrelas e revogue-se o olhar mais atento do menino que busca o pássaro da felicidade

revogue-se o desejo que brota no cheiro de flores pisadas

pelos pés das moças que buscam o tempo perdido em romances medievais

revoguem-se todas as palavras mesmo as que ainda moram

na memória dos tempos futuros

revoguem-se os pelos pubianos e a queda dos aviões

revogue-se tudo o que disseram os deuses nos templos destruídos

revogue-se a canção que ainda não chegou à lua

revoguem-se os mares e dentro dos mares os navios naufragados

revogue-se a fome dos predadores e revogue-se o beijo

que ficou na boca da prostituta ao se despedir do último cliente

revogue-se o pio da coruja e revogue-se a disputa pelo gol mais bonito

revogue-se o diálogo da borboleta e dos crocodilos

revogue-se a pena dos pássaros e dos condenados

revogue-se o susto dos devorados e dos carrascos

que se revoguem todas as prisões e se arranquem todos os dentes de todos os desdentados do planeta

revogue-se a picada do mosquito

revogue-se o passo trêfego do bêbado

e que se marquem com cruzes negras as portas de todos os que ainda respiram

revogue-se o vento que levanta a saia da menina sem pejo

e dispam-se de inveja todos os músicos que tocam chopin nos sinos das igrejas

que se revogue para sempre o choro das crianças que ainda não provaram

o glacê do bolo de seu primeiro aniversário

revogue-se o sangue que escorre todo mês pelas pernas

das ex-futuras matrizes de todos os deserdados

e que se passem a ferro quente

a língua das serpentes e as cascas de frutas que não amarelaram

revogue-se o teu pedido de clemência

destruam-se depois de devidamente revogadas

todas as pontes que ligam as estrelas e o sorriso do lagarto

revogue-se a cor com que pintaste os teus passos

revoguem-se o esperma do impotente e a bala que se perdeu na favela

e foi encontrada depois no útero da fêmea do javali

revogue-se o homem que gosta de mulher

revogue-se a mulher que gosta de homem

revogue-se também o amor entre os que não se podem amar

revoguem-se as estruturas atômicas e todos os genes gerados em laboratórios

que se revoguem o espaço sideral e os cabos submarinos

revoguem-se os navios e as estradas que conduzem às montanhas

revogue-se o desejo entre os que se aproximam da brasa ardente

revoguem-se as disposições contrárias e a favor

e que se revoguem enfim o brilho da noite e a escuridão dos dias



28.1.2018


(Ilustração: Nicoletta Tomas Caravia_- Menos tu vientre - 2012)


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