30 de out. de 2015

1964




(Botero - Abu Graib)






Sob a égide da constelação estrelada,

nas noites claras de um sonho tropical,

figuras sinistras conspiravam.




E permitiram-lhes os deuses todos os poderes

para o bem e para o mal.




No entanto, enquanto no canto do céu,

a ponta da cruz indica o sul,

um canto de dor dobrava o corno da lua nova.




Figuras famintas fugidas do inferno

batiam dentes sob o açoite do torturador,

sob a égide da constelação estrelada.




Abril apenas o outono mediara,


e o inverno descia rigoroso


nos cárceres da infâmia e do grotesco.




E o sonho da igualdade penhorada

jazia na tumba de falsas promessas

sob a égide da constelação estrelada.





BH – 21.9.1978

29 de out. de 2015

AS LOUCAS DA PRAÇA DE MAIO



(Foto da internet, s/indicação de autoria)



Um dia levados
pelos demônios fardados
seus filhos sumiram

em sujos porões
- torturados -
seus filhos e irmãos cumpriram
a saga dos ladrões.

Seus corpos lacerados
por fundas províncias
largados
como inúteis fardos
em terra maldita.

Sua vida, seus sonhos,
em louca desdita
massacrados
pelos demônios fardados.

Libertários do mundo!
Antes que a dor arrefeça,
é necessário buscar o fundo
sentimento do mal,
exorcizar os demônios
e já, agora, como o raio
realizar com justiça os sonhos
das loucas da Praça de Maio.


S/data (provavelmente, c.1983)


28 de out. de 2015

OUTONAIS (POEMAS... BREVES POEMAS DE OUTONO)


 

OUTONAIS






(Lena Karpinsky - chanson d'automne) 



(POEMAS... BREVES POEMAS DE OUTONO)



  
isaias edson sidney





1.    neste outono






neste outono
não quero tristezas
não quero abandono
não quero asperezas
das pedras dos caminhos

neste outono
o meu sonho preferido
será perceber nos ninhos
não o pássaro ferido
mas a rima de bem-te-vis

neste outono
meu amor será mais doce
de tudo quanto me fiz
de tudo quanto você me trouxe




2. meu olhar é leve





meu olhar é leve
mais que o voo breve
do pássaro azul
pelo céu de jade
de norte a sul
dessa cidade




3. tive um dia muita saudade





tive um dia muita saudade
de uma paixão que já passou
foi numa triste e bela tarde
de um outono que me restou



4. fim de tarde





fim de tarde
é apenas um fim de tarde
não importa se verão
inverno ou primavera
fim de tarde de outono
é apenas um fim de tarde

ou não?



5. amigo meu de toda hora





amigo meu de toda hora
faça-me nesta tarde um bom favor
leve já com você embora
de alguma forma de algum jeito
esse estúpido e inoportuno amor
que cismou de arrebentar meu peito



6. se sonho





se sonho
o meu sonho
em sonho se transforma
se penso
o meu pensamento
em lembranças se transtorna

(culpa do outono)



7. modorra de tarde de outono






modorra de tarde de outono
na rede o corpo a balançar
modorra de tarde de outono
na mente um sonho a lamentar



8. tão bom tão bom tão bom





tão bom tão bom tão bom
nada ter para fazer ao passar das horas
numa tarde que parece outono




9. queria tanto tanto





queria tanto tanto
que estivesses a meu lado
secando o meu pranto
cantando um doce fado
nesta tarde de outono

(que sono!)




10. sabes a mel





sabes a mel
sabes a fel
e sais
que louca
a tua boca
tem flores
outonais



11. não rimas





não rimas
se não limas
os versos
tão perversos
que escreves para mim

não estranhes
meu estro rude
fiz o que pude
para achar o termo exato

se quebras o que eu quebro
se destróis o que eu te peço
se amplias o que eu te gozo
não esperes rimas ricas
não esperes loucos versos

somos flores
somos árvores
somos prédios
somos prados
e somos sempre no outono
a tarde morna
do fim do tempo



12. era tão bom o teu outono





era tão bom o teu outono
era tão calmo o teu gozo
era tão fresca a tua boca
era tão negro o meu desejo

(fugaz!)



13. chegaste enfim como o outono





chegaste enfim como o outono
vieste calma após as chuvas
não sei se quero o que me trazes
não sei se trazes o que eu morro

(apiedas-te de mim, talvez?).



14. voas o último instante





voas o último instante
do vento que vem
voas o alento final
do desejo que me trai

(ai!)



15. compartilho contigo o meu anseio





compartilho contigo o meu anseio
entrego a ti o meu mais antigo enleio
encontro enfim tudo em que creio
ao encostar a cabeça em teu seio

(adeus!)




16. teus caminhos deviam ser





teus caminhos deviam ser
os meus caminhos
também

os teus anelos deviam ter
os meus anelos
também
os teus suspiros deviam vir
com meus suspiros
também

tu que não vieste
não precisas desculpar
o outono é frio
e os deuses
estão todos a dormir

(para sempre!)




17. tudo bem contigo?





tudo bem contigo?

tudo, tudo bem comigo...

por favor não te zangues
se te penso correndo nua
deusa em campo de trigo

(ou foi na lua?)



18. ah! o outono... não importa





ah! o outono... não importa
se cedo ou tarde:
tudo quanto penso
tem cheiro e é doce e arde...



19. lá fora o azul





lá fora o azul
lá fora a luz
lá fora o pó
e aqui, numa sala taful
(só para esnobar a rima)
sinto-me tão só...

(teu vulto na sombra não basta)



20. folha seca na terra seca





folha seca na terra seca
cai o galho no lago seco
cai saci numa peneira
greta o brejo e o sapo ronca
fende o tronco da paineira
seca a boca de beijos secos
não seca os olhos a saudade



21. quando outono





quando outono
é bom o espreguiçar depois da lida
numa rede
numa rede de saudade entretecida



22. fosses calma como o outono





fosses calma como o outono
fosses lago em vez de rio
fosses tronco em vez de folha
fosses brisa em vez de vento

fosses vida em vez de sombra
fosses tarde em vez de noite
fosses mel em vez de pólen

fosses tu mesma em cada gesto
fosses tu mesma em cada beijo

e seria eu a tua sempre primavera



(Ilustrações: Andrzej Malinowski)


Quinta-feira, 8 de junho de 2000



CIDADES DE MINHA INFÂNCIA




 (Lavras/MG: praça dr Jorge, década de 60)





Resgato da memória um poema perdido


para tentar lembrar os dias passados:


cidades da minha infância,


nomes estranhos na poeira da memória


- Lavras, Três Pontas, Três Corações.


Rios que as banharam


continuam não os mesmos


dos tempos idos


e vividos.


Os passos descalços do menino de rua


perderam-se no asfalto da grande cidade.


Os ecos dos cantos de seus pássaros


são hoje cantigas que não relembro.


O cheiro do mato, seus morros tão verdes


são o tesouro escondido no fundo da dor.


Saudade!


As casas baixas de janelas para a rua,


os becos escondidos, os frutos proibidos,


fundem-se todos em massa disforme.


Nem a saudade que sinto é a mesma saudade


dos tempos em que ainda me permitia


cantar os loucos suspiros


ao luar.


E enquanto escrevo (preso às palavras),


como dói este poema inútil!


Como dói no fundo de meu ser!


Antes deixara perdidas na bruma


as cidades amigas/amargas


de dias felizes que não revisitarei.


Cidades de minha infância,


acordaram suas lembranças


ao poeta que sonhava


ou sobrevivia


ao pesadelo sempre igual dos dias cinza.


O poeta que, de tanto levar porrada na vida,


já se sentia liberto


de uma infância talvez não vivida.


E assim, de repente, surge funda uma saudade.


E assim, de repente, emergem das brumas,


ruas, becos, vales e montes


perdidos como perdida uma vida,


doendo fundo nas veias,


resgatando sonhos e esperanças.


E as sensações sentidas,


mais do que as vividas,


antes presas, amordaçadas,


rompem diques


e arrastam a memória cansada


por caminhos esquecidos.


E a realidade que explode à volta


faz-se grão e pó e nada.


Fantasmas,


loucos dias de um remoto tempo,


pássaros negros num fundo azul,


riachos podres em vales perdidos,


tudo o que um dia julgara sepulto,


vive, revive, revolta


o momento eterno da dor.


Cidades da minha infância,


não são nem um retrato na parede.


São apenas a dor esquecida


e um dia lembrada


em momentos de loucura e depressão.


E qualquer som, imagem ou perfume


que as tragam de volta


são apenas sensações da memória.






S.P. 16.3.83



27 de out. de 2015

GERÂNIOS NA JANELA





Gerânios na janela
convidam ao sonho
 de casa distante
numa rua
(ou beco)
sem saída
de um bairro qualquer
da grande cidade.

Sonho absurdo
cada vez mais difícil
na verticalização
das favelas financiadas
em vinte e cinco anos
e uma vida.

Gerânios na janela
quem ainda os terá
daqui a alguns anos?


Santo André, 19.10.82

23 de out. de 2015

um poeta de minha geração






Um poeta de minha geração (?) enviou-me

um belo soneto

com palavras complicadas

e rimas altissonantes.

Depois de várias consultas a dicionários

nada compreendi do que estava escrito.

Entreguei-o, então, à leitura

de uma jovenzinha imatura

de dezesseis anos.

- Pô! - disse-me ela.

Concordei com a exclamação

com todas as letras

da sutil observação.





Santo André 19.10.82

(Ilustração: Balthus)