31 de dez. de 2019

Livros lidos em 2019





 


Para quem gosta de ler, uma lista de livros é pode ser um regalo: há sempre a possibilidade de encontrar ali um novo autor ou um título esquecido na memória, um livro que quisemos ler um dia e, por qualquer razão, não o fizemos; há sempre a possibilidade de um título nos chamar a atenção e descobrirmos leituras preciosas que, achamos, deviam fazer parte obrigatória de nossa avidez por leitura. 

Numa dessas listas, encontrei, uma vez um título – O grande massacre dos gatos. “Oras”, pensei, por que diabos houve um dia uma matança de felinos, esses bichinhos tão amáveis e de que tanta gente gosta? Fui atrás e deparei-me não só com a história tenebrosa que dá título ao livro, mas também com uma crônica precisa, interessante, envolvente sobre os usos e costumes de um século que considero fascinante, o século XVIII. 

Todos os que amam os livros lamentam o fato histórico envolvido em lendas que não se comprovam totalmente, mas em todo caso, um fato que virou uma espécie de meme em nosso meio: a queima da grande Biblioteca de Alexandria, com a consequente perda de um acervo imenso de cultura. No entanto, não sabemos ou não nos interessaram milhares de outras destruições de bibliotecas ao redor do mundo, por fogo, inundações, guerras etc. Ao longo dos séculos, tesouros escritos formidáveis foram perdidos, em quase todos os países da Terra. Há uma história dessa calamidade? Sim, há: um venezuelano, Fernando Baez, escreveu a História universal da destruição dos livros. Encontrei por acaso, numa lista, comecei a ler e quase o li de um só fôlego, apesar de ser uma obra alentada. 

Podia-se fazer listas, por exemplo, das peças de teatro vistas durante o ano. Mas, temos aí uma limitação, ou melhor, duas: o local, já que peças de teatro são levadas numa determinada cidade; e a temporada, pois as peças de um ano raramente repetem-se no ano seguinte. Uma lista anual desse tipo, portanto, teria pouco ou nenhum alcance. 

Podia-se fazer uma lista dos filmes vistos durante o ano. Já seria mais interessante, hoje, diante das possibilidades do streaming, e isso agradaria aos cinéfilos, mesmo diante da grande quantidade de lançamentos anuais. 

Enfim, listas que tragam informações culturais são quase sempre interessantes para os aficionados de determinadas áreas. E as listas de livros, eu as considero particularmente fascinantes, pelas razões expostas acima. Mesmo que sejam livros de áreas específicas do conhecimento, às quais em geral não tenho muito acesso, pode ser que lá no meio haja um título, um autor de que já tenha ouvido falar, ou de que tenha lido em algum momento uma resenha, e possa despertar a minha curiosidade. 

O que eu quero dizer, para terminar essa crônica, que já se alonga, é que, como leitor voraz, espero que a indesejada das gentes, quando venha me visitar, me encontre lendo um livro e que eu possa, gentilmente, lhe pedir que espere mais um pouco, até que o termine de ler e que ela, também gentilmente, sentasse ao meu lado e me concedesse esse favor. Afinal, eu acho que até mesmo ela deve ser condescendente com tal pedido, já que deve ser uma leitora voraz do livro da vida. 

Eis, portanto, a minha lista de livros lidos nesse ano que termina, de 2019, com apenas o objetivo de despertar a curiosidade em algum de meus parcos leitores, sem nenhuma pretensão de que sirva – esta lista – como sugestão e, principalmente, espero que não seja interpretada como uma espécie de vão orgulho desse pobre escriba: 



1. O que deu para fazer em matéria de história de amor, Elvira Vigna; 

2. O primeiro homem, Albert Camus; 

3. Uma história do Brasil através da caricatura – 1840-2006, Renato Lemos (organizador); 

4. Beije-me onde o sol não alcança, Mary del Priore; 

5. O elefante desaparece, Haruki Murakami; 

6. O delta de Vênus, Anaïs Nin; 

7. O apanhador no campo de centeio, J. D. Salinger; 

8. A incrível e triste história da cândida Erêndira e da sua avó desalmada, Gabriel García Márquez; 

9. Vagina, uma biografia, Naomi Wolf; 

10. A mulher do tenente francês, John Fowles; 

11. Terra sonâmbula, Mia Couto; 

12. Nome de guerra, Almada Negreiros; 

13. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa, Robert Darnton; 

14. A queda, Albert Camus; 

15. História da loucura na idade clássica, Michel Foucault; 

16. A filosofia na alcova, ou, os preceptores imorais, Marquês de Sade; 

17. Manon Lescaut, Abade de Prévost; 

18. Os 120 dias de Sodoma, ou a escola da libertinagem, Marquês de Sade; 

19. Vigiar e Punir, Michel Foucault; 

20. Idade Média - Umberto Eco (org.); 

21. Pastoral Americana, Philip Roth; 

22. Baú de ossos, Pedro Nava; 

23. O bosque das ilusões perdidas, Alain-Fournier; 

24. O século das luzes, Alejo Carpentier; 

25. De repente, nas profundezas do bosque, Amós Oz; 

26. Judas. Amós Oz; 

27. A elite do atraso: da escravidão à lava jato, Jessé Souza; 

28. História universal da destruição dos livros – das tábuas sumérias à guerra do Iraque, Fernando Báez; 

29. Crônica do Pássaro de Corda, Harumi Murakami; 

30. A Família de Pascual Duarte, Camilo José Cela; 

31. A menina que rouba livros, Markus Zusak; 

32. A casa do incesto, Anïs Nin; 

33. O homem que amava os cachorros, Leonardo Padura; 

34. Bom Crioulo, Adolfo Caminha; 

35. Orgulho e preconceito, Jane Austen; 

36. A cultura no mundo líquido moderno, Zygmunt Bauman; 

37. Na praia, Ian McEwan; 

38. Os cus de judas, António Lobo Antunes; 

39. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, Jonathan Crary; 

40. A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne; 

41. A partitura do adeus, Pascal Mercier; 

42. A morte de Artemio Cruz, Carlos Fuentes; 

43. Éramos seis, Maria José Dupré; 

44. Homo Sapiens, Johan Huizinga; 

45. Quarup, Antonio Callado; 

46. O Castelo de Otranto, Horace Walpole; 

47. Barroco Tropical, José Eduardo Agualusa; 

48. Abaixo as verdades sagradas, Harold Bloom; 

49. O conto da aia, Margaret Atwood; 

50. O coração das trevas, Joseph Conrad; 

51. Os Miseráveis, Victor Hugo; 

52. Trópico de Câncer, Henry Miller; 

53. Cova 312, Daniela Arbex; 

54. O risco do bordado, Autran Dourado; 

55. Coração Satânico, Willilam Hjortsberg. 



31.12.2019

(Ilustração: foto de Chema Madoz)



29 de dez. de 2019

pouca poesia



tantos poetas e tão pouca poesia já disse alguém

é que as musas que de devaneios sobrevivem por aí

não só de lírios dos jardins de edens paradisíacos se alimentam

mas também da folha grossa e verde de couve do rude agricultor

e mais te digo ó rubicundo crítico que as musas nuas e belas

tanto voejam pelos bosques quanto caminham pelos becos

e não se pejam de se entregarem sob dosséis de ouro ou sob

o sol escaldante sobre a lona simples no chão que cobre as

barracas de feira de peixe pelo mundo afora já que as musas

apreciam carnes de cores várias sem qualquer pejo

desde que se lhes despertem o desejo não lhes importa

se com simples beijo ou com moedas de outro lhes paguem

dirás que são putas as musas e te direi que sempre o foram

e nunca deixarão de ser já que às putas e às crianças

está reservado o direito do belo da pureza e da esperança





26.10.2019 

(Ilustração: Henrique Alvim Correa)




28 de dez. de 2019

pote de mel


confesso que gosto de poetas que não se envergonham

de cantar o amor em versos melosos cheios de lágrimas

e saudades como se fosse o mundo um grande pote de mel

esses poetas assim esparramados nos seus arroubos

a escrever cada verso como se fosse uma gota de sangue

como se cada estrofe fosse da amada um beijo perdido

chorando dores de amores de frustrados adolescentes

sim confesso que gosto desses desencantos desesperados

e leio sem escárnio j. g. de araújo jorge ou josé angel buesa

poetas que como tantos e tantos cutucam suas musas

adormecidas no tempo e fazem das pedras as lágrimas

de desespero por amores impossíveis com os corações

destroçados pela traição ou pela indiferença das amadas

porque são poetas assim que abrem as portas dos sonhos

não deixam quietas as inquietações de amores perdidos

e fazem de nós seus leitores cúmplices não declarados

daquilo que somos no mais íntimo de nossos corações

sem que às vezes o ousemos declarar até a nós mesmos

gostemos deles sim gostemos dos poetas desavergonhados

ainda que críticos de empinada erudição detestem seus versos

ainda que corações de pedra torçam para eles seus narizes





21.9.2019

(Ilustração: Ada Breedveld)


26 de dez. de 2019

para meu pai





talvez amanteigasse os meus sentimentos

esse tanto tempo que passou

mágoas pisadas como folhas secas

ao longo dos caminhos e dos dias

o desprezo e a ausência enfim páginas

lidas e esquecidas no fundo da gaveta

talvez até mesmo sua sombra no espelho

onde me olho ao fazer a barba

marcasse um pouco a curva do meu rosto

quem sabe na minha voz um eco da sua

ou em algum gesto que eu repita o seu gesto

ou o seu passo trêfego a marcar os meus

afinal como disse o poeta de tudo fica um pouco

que tenha ficado um pouco do queixo no queixo

do filho pensei e pensei tudo isso um dia quando

há muito você é apenas a asa do pássaro

que cruza assim de repente a minha janela

numa manhã qualquer de qualquer estação

até tentei descobrir a cor dessa asa fluida

quem sabe interromper o voo e fixar

por um breve instante os seus olhos

ou um gesto seu de carinho para poder

acalmar meus sentimentos e derretê-los

um pouco talvez apenas um pouco

da sombra de seu queixo em meu queixo

para quem sabe conseguir superar os longos

os longuíssimos anos de silêncio e indiferença

mas a única palavra que posso dirigir-lhe

é um pedido de desculpas não pela sua distância

não pelo seu silêncio e o seu não olhar por mim

não pelos seus gestos ou sua fisionomia

cuja lembrança há muito esgarçou em mim

não pela sua morte da qual eu pouco soube

apenas um pedido de desculpas envergonhado

por não poder perdoar-lhe jamais – meu pai



21.12.2019




(Ilustração: Hannah Höch)




23 de dez. de 2019

ouvir jazz





ouvir jazz é entrar em sintonia

com todos os demônios que em mim habitam

e encarar suas fauces negras e gozar

o gozo eterno dos condenados sem remissão



ouvir jazz não me faz melhor do que ouvir qualquer outra música

ouvir jazz me faz romper o hímen de minha própria virgindade

e tornar-me a mim mesmo a prostituta de todos os cabarés

inexoravelmente



por isso ouvir jazz sempre

obsessivamente 




11.11.2019 

(Ilustração: Archibald J. Motley Jr. - Blues - 1929)





21 de dez. de 2019

o teu silêncio




sempre esperei o teu silêncio

sempre desejei o teu silêncio

e agora que ele se empedrou

como um meteoro candente em meu peito

assomo à janela e ao vento eu grito

que prefiro a morte ao teu silêncio

encanta-me ainda o som obscuro

de teus anseios mal formulados

os gritos abafados de teus desejos

que nunca chegaram aos meus ouvidos

e eu pensava que os ouvia a todos

que eles arrebentavam meus tímpanos

quando eram apenas suspiros inúteis

murmurados ao vento das madrugadas frias

e agora que tu te calaste para sempre

o teu silêncio grita impropérios dentro de mim

como se fosse eu o teu último algoz



1.10.2019

(Ilustração: escultura de Javier Marín)



19 de dez. de 2019

o que diz o poeta





o poeta sempre diz

o que é preciso dizer

não importa se o que diz

são verdades profundas

ou miseráveis anseios

de vidas enlouquecidas



o poeta diz o que diz

porque calam em seu peito

as memórias de tempos transidos

de tempos silenciosos que gritam

em figuras pétreas de loucos pesadelos

não há esperança para o poeta

as vozes que o despertam repousam

no âmago das montanhas azuis

ou no fundo dos pântanos em flor

ao poeta cabe apenas sonhar palavras

e desconstruir as rimas do tempo

não há mistério nem profecias

no dizer ou desdizer poesias



5.11.2019

(Ilustração: Manet - Mallarmé)



17 de dez. de 2019

o poeta e sua obra






com a paciência do pedreiro que espera a massa secar

e coloca um a um os tijolos de sua construção

o poeta vai construindo sua obra poema a poema

verso a verso

e assim como as catedrais que têm vitrais coloridos

e nichos sombrios e colunas imensas e detalhes de arabescos

a obra do poeta tem sombras e luzes e detalhes inapercebidos

tem versos tortos e alexandrinos perfeitos

derrama-se às vezes em lamentos profundos

ergue-se às vezes em aleluias de anjos barrocos

projeta no vazio a contraluz de suas torres

plange seus sinos em dobres de fim de tarde

marcando os silêncios do tempo da eternidade



e como as catedrais

a obra do poeta é interminável



se o subjuga durante toda uma vida

fica por aí a criar raízes em torno de seu túmulo

e na pedra pome que se amolda ao tempo

ou na pedra sabão que se remodela em novas formas

é o eterno cinzel atado às mãos de novos aleijadinhos

enquanto ao poeta cabe apenas o riso agônico

de ter lançado ao tempo a pedra fundamental



7.11.2019


(Ilustração: Yves Tanguy - 1900–1955: french surrealist painter)

15 de dez. de 2019

novo arrebol





sentei-me na cama e você diante

de mim tirou pela cabeça o vestido

ficou quase nua num rompante

de oferta e recato num riso contido



eu disse quase nua porque ainda havia

entre meus olhos renovados e a nudez

uma última peça que irradiava alegria

e ao mesmo tempo toda a sua insensatez



uma calcinha amarela um raio de sol

a ofuscar-me os olhos e a impedir o total

prazer de encontrar enfim todo o mal

e todo o bem que traz um novo arrebol



4.12.2019 



(Ilustração: Edvard Munch - 1924)



13 de dez. de 2019

nós




nós odiamos o passado

nós odiamos a história



porque tudo o que nos explica nos complica

gostamos de ser o que aparentamos ser

não gostamos de ser o que um dia fomos



odiamos a carne negra dos porões dos navios negreiros

que a despejaram em nossas praias para a libido do branco

não porque odiemos o negro por ser negro mas odiamos

o negro por sujar nosso sangue com seu sangue africano

nós os puros europeus de tragédias migratórias milenares



odiamos a pele que não seja lua branca em noite de cristal

odiamos o gesto da dança nascida à sombra dos baobás

odiamos o canto e a flauta e a batida dos pés no barro

das aldeias a espantar os macacos pelas florestas alagadas

odiamos o que não nos reflete no espelho torto de nossa

vil capacidade de entender o chicote do bandeirante e a reza

no terço de caroços de coquinho queimado das cozinhas

das casas-grandes cheirando a senzalas pelas negras

cozinheiras de angu e pelos negros caçadores de negros

rebeldes a jogar a capoeira em noites de feijão preto e rabo

de porco no caldeirão que cozinha desde tempos imemoriais

nosso olhar de desprezo e nossa empáfia de pele sem cor

odiamos as festas congadas baianas e os tambores de minas

e do nordeste o jeito criativo e arrastado da fala e do olhar



nós odiamos o passado

nós odiamos a história



nosso banquete antropofágico rega-se com vinho e absinto

o vinho da consubstanciação de nossa ignorância europeizada

e o absinto que nos entorpece as mãos na hora de abrir o cofre

palacetes de plástico erguem-se e incendeiam-se na folgança

da nossa especulação falso-financeira e nossos colares de pérolas

são garrotes vis de dívidas impagáveis na farra dos salões sem arte

burgueses sem burgo e estropiados do freudismo cantamos

a valsa vienense nas formaturas de bêbados que percorrem o mundo

a bordo de transatlânticos a passar ao largo de icebergs forrados

com os dólares com que compramos o papel higiênico que limpam

não apenas as bundas sujas da roubalheira mas também as mentes

periclitantes de torneios verbais em festas de roqueiros loucos

a cheirar a droga branca da nossa consciência negra com cartões

de crédito de bancos estrangeiros trazidas por aviões de carreira



nós odiamos o passado

nós odiamos a história



vomitamos o passado em cada pires de leite que não derramamos

pelas fazendas de ouro velho e máquinas azeitadas na abundância

da mão de obra que veio há séculos de áfricas e europas empobrecidas

para talhar o leite e vender esperanças nas feiras livres das periferias

engordamos cidades como engordamos o gado para fazer dos filhos

diletos os novos senhores de engenhos de fogos-fátuos mortos ainda

ao primeiro apodrecer de fortunas acumuladas em bancos suíços

permitimos ao poeta cantar sua ode ao burguês porque não sentimos

que somos burgueses e nossos nós não se desatam com poemas

e canções nem com reza brava de pais de santo e búzios rolados

somos o povo enfim que diz que não é isso ou aquilo mas sempre

esquece que é tudo aquilo que pensa que não é mas é sempre e sempre

por isso odiamos o passado e por isso odiamos ainda mais a história





19.10.2019



(Ilustração: escultura de barro de Javier Marín)








10 de dez. de 2019

navegantes




tantas vezes se morre pela vida afora

que a morte quando na verdade chega

só traz surpresa porque é ela que implora

o nosso perdão por ser assim tão cega

a colher vidas que afloram por instantes

luzes de pirilampos em noites escuras

às tontas pelos caminhos e pelas fissuras

das rochas e das montanhas distantes

sopros de vento a apagar velas nas sepulturas

quando deviam ter caminhado um pouco mais

porém não há desculpas para os sobreviventes

que acordam cada manhã como se fosse a vida

um contínuo sem fim sem dor e sem doentes

vórtice de galáxias num sonho sem guarida

a iludir a si mesmos pensando que a velha trapeira

deles se esqueceu e que portanto sobreviverão

ah pobres dementes a rir à toa pelas proas

sem saber que gargalham da própria doideira

navegantes que viajam na classe de primeira

esperando de alguma estrela guia a salvação

ignorantes que por isso serão os primeiros

a serem enxotados e jogados como embusteiros

do navio fantasma da vida no mais fétido porão



17.11.2019

(Ilustração:Antoine Caron - 1521-1599 - 
Les funérailles de l'Amour)




8 de dez. de 2019

mineirices



 

mineiro tem saudade do mar

mesmo quando nunca viu o mar

mineiro tem fala mansa e enrolada

come final de palavras como come

queijo com goiabada mas sua fala é

poesia mesmo quando conta causos

mentiras de pescador picando fumo

mineiro tem o jeito desconfiado

mas com um dedo de prosa bem prosada

ele lhe serve café ralo e lhe dá sua casa

mineiro tem saudade do mar

toca viola na roça quando é roceiro

pisa nas nuvens quando é da cidade

dizem que tem dinheiro no colchão

mas isso é só para fingir que é rico

tem mesa de jantar com gaveta

para esconder da visita o prato de comida

mas divide com prazer o arroz feijão e angu

se a visita não é nenhum parente

mineiro tem saudade do mar

e chora escondido as suas mágoas

nem sempre tira chapéu para defunto

porque tem apego ao merecimento

reza o terço todo dia e vai à missa

confessa e comunga ainda que ateu

segue procissão na sexta-feira da paixão

e não come carne na semana santa

às vezes come peixe (peixe não é carne)

conta causos compridos e ouve mentiras

com o ar contrito de quem não acredita

mineiro tem saudade do mar

inventa janelas e constrói em tono delas

casarões coloniais e igrejas barrocas

mineiro é mesmo bicho encalacrado

em dobra de morro e beira de rio

se de algo não gosta logo amua

e se gosta fica sempre na sua

tem medo de assombração

em noite em que está cheia a lua

pega na viola e canta sem saber

a mágoa do caboclo e a saudade

do mundo inteiro a se desfazer

no peito imenso em que cabe até

todas as veredas e todas as ruas

ao tomar uma boa xícara de café

mineiro é assim sempre a sonhar

por viver entre tantas montanhas

é que mineiro tem saudade do mar



14.10.2019



(Ilustração: foto de Fátima Alves)





6 de dez. de 2019

milagres do vinho





uma garrafa de vinho faz milagres:

- primeiro milagre: desfaço-me de mim mesmo

- segundo milagre: encontro-me a mim mesmo desfeito

- terceiro milagre: cometo poemas sobre mim mesmo encontrado

- quarto milagre: desencavo coragem para publicar as bobagens que escrevi



outros milagres haveria numa garrafa vinho

estão todos guardados numa sala de ex-votos

por vergonha ou preguiça de exumá-los





11.11.2019 


(Ilustração: Eva Santi - Bacchus/Dionysus)







4 de dez. de 2019

meditação



enleias-me em teus anseios os braços e abraços

busco-te em teus princípios e nos teus entremeios

descrevo parábolas de aflições nos teus seios

descubro anfíbios mundos no fundo do teu ventre

inflo minhas guelras e mergulho nos teus olhos

abro minhas asas em torno de teus assomos

com patas de mil gatas percorro teus labirintos

trânsfuga outrora de minhas poucas possibilidades

encontro-me comigo quando estou dentro de ti



26.10.2019

(IIustração: Sarah Anne-Johnson - Wonderlust)

2 de dez. de 2019

matemática





nunca fui bom aluno de matemática

posso até dizer que era bem ruinzinho

talvez mesmo péssimo



mas um dia resolvi aprender matemática

e tanto estudei todas aquelas fórmulas

e me familiarizei até com o teorema de pitágoras

que acabei [por incrível que pareça]

professor de matemática



mas os números não eram a minha praia

deixei-os lá no fundo da memória

para apenas somar as dívidas de hoje

e diminuir os dias que ainda tenho para viver



mas uma coisa me deram os números

nessa viagem maluca de estudar matemática

contava melhor as sílabas dos versos que compunha

e os números [e até o velho pitágoras e seu teorema]

transformaram-se em sons e sonhos

nas asas tortas do que eu pensava ser um poema



e hoje quando penso em quantos números havia

no voejar desses versos malucos que escrevia

nem penso mais em contar as sílabas dos meus versos

que livres voam sem buscar nem matemática nem poesia




17.9.2019 

(Ilustração: Kurt Schwitters - Das Undbild)




30 de nov. de 2019

mar de lençóis







tantas vezes fizemos sexo e tantas vezes fizemos amor

que não sabemos mais se temos um pelo outro

mais tesão do que amor ou mais amor do que tesão

misturados ambos tesão e amor em nossos gemidos

grudada a nossa pele uma à outra formando um só

pergaminho de suores e humores misturados como

as águas de dois rios que se juntam e fluem para

o mesmo oceano salgado de prazer por isso querida

não há mais saída para esse enrosco senão levarmos

juntos o que nos resta para viver que assim a vida

se tornará para nós não exatamente um mar de rosas

pelo menos um imenso mar de lençóis amarfanhados 





18.10.2019


(Ilustração: Gerda Wegener)

28 de nov. de 2019

lutemos




um batuque que bata no chão

o repique do passo marcado

no caminho da vida o teu canto

no reverso do verso e do pranto

para todos que lutam sem trégua


o poema ganha o passe livre de cantar arrebóis sem tons ou meios tons

vale o que sonha o poeta e vale o que apontam as palavras-pássaros

mas é preciso que o passo marcado não deixe de ver ao longe

o caminho dos que não tiveram caminho

o pranto dos que não tiveram olhos

a luta dos que não tiveram trégua


é preciso que se cante o silêncio atormentado dos suicidas

é preciso que se ouça a voz dos que perderam até mesmo o medo

é preciso que a bala do revólver assassino se derreta no cano da arma

e não atinja o menino de mochila às costas ou a menina que dança à luz da lua

tenha o verso o tempero do tempo e o tempero do canto da primavera

tenham os olhos dos que cavam túmulos a lágrima que propicie a flor

que não haja desistência nas trincheiras da igualdade

que não se soltem as mãos nas trincheiras da fraternidade

que não se deixe de plantar sonhos nas trincheiras da liberdade


os abismos que nos contemplam refletem braços erguidos para a marcha

o tempo crava no peito as chagas e as marcas das tempestades

sopremo-las com nosso canto nos olhos dos opressores

ceguemos seu ódio com o calor que vem dos fogos ancestrais

revolvamos o pó da terra para plantar nossos passos

sigamos o norte apontado pelas estrelas distantes


que o batuque do passo marcado

no reverso da luta e do pranto

nos permita chegar ao momento

da vitória que um dia virá



25.10.2019

(Ilustração: Adolph Menzel - Studentenfackelzug)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

26 de nov. de 2019

lógica







quanto mais vinho 

eu bebo 

de menos vinho 

preciso 






11.11.2109

(Ilustração: foto de Chema Madoz)



24 de nov. de 2019

lagarta listrada





você pode ser assim meio doida

borboleta azul à luz das ribaltas

cantando e dançando tantas vidas

mas ao fechar suas asas no meu leito

você se metamorfoseia em reverso

em lagarta listrada no meu peito

em métrica perfeita do meu verso



8.10.2019 

(Ilustração: Nancy Almazan - l'amour)



21 de nov. de 2019

humanos de rua




cachorros vadios

ou gatos de rua

encontram comida

em qualquer lixeira

humanos de rua

sem eira nem beira

às vezes só comem

pedaços de lua




9.9.2019

(Ilustração: Cândido Portinari - despejados)


19 de nov. de 2019

fugacidade



vida é vento que vai e não volta

vagas sombras vagamos nós por esse mundo

o tempo que nos consome faz piruetas nas galáxias

nós em fios de lã cada momento que enlouquecemos aqui

e assim como os versos se esticam para o fim de uma linha imaginária

tentamos esticar a vida em torno de nossa imaginação que não encontra o fim

apenas o vento da vida

que vai e não vem nunca

de volta ao sopro inicial

somos e somos palindrômicos seres a chorar as lágrimas de deuses estúpidos

vagas sombras

etéreas vagas

sonambulistas consagrados ao espaço e ao tempo que nos sufoca em viagens inúteis

vida é isso e é muito mais do que estremecem dentro de nós os nós de nossos pesadelos

se fugimos do tempo

o tempo nos pega

na curva da lua crescente em noite de lobisomens que somos afinal nós mesmos

sedentos do sangue do tempo que se extingue num relógio torto da parede

de um sobrado em ruínas bem no centro de galáxias em eterna expansão

vida é vento e não volta e não vaga à nossa vontade pelo vórtice dos nossos nós



10.11.2019 

Ilustração: foto de Chema Madoz)




17 de nov. de 2019

folha de pagamento







bem pesada é a vida para quem precisa

colar a folha rasgada do livro do filho

enquanto na mesa de mogno do patrão

a folha de pagamento da firma flutua





22.10.2019


(Ilustração: Francisco Brennand)



15 de nov. de 2019

filosofia





se o filósofo diz

que a vida é foda

você não precisa

mudar de vida

ou de profissão





11.11.2019

(Ilustração: escultura de Fernando Botero)


13 de nov. de 2019

eu menino





eu menino não sonhava caminhos

deixava que a água da chuva levasse

meus barquinhos de papel para destinos

que eu imaginava infinitos e olhava

de vez em quando as estrelas porque

não podia compreendê-las e eu só

entendia dos infinitos das enxurradas

e dos destinos incertos de barquinhos

de papel – não era o céu e seus brilhos

de pérolas distantes ainda o espelho

de minhas lágrimas – viver para mim

era como assim a formiga que carrega

a folha bem maior do que ela – e todo

o meu mundo apertava-se no silêncio

nesse silêncio profundo das noites

quando o frio do inverno fazia carinho

pelas frestas da janela e se insinuava

pelas dobras da coberta fina e eu tinha

febre e chamava minha mãe o porto

seguro de eu menino ainda não imaginava

nem sonhava outros caminhos que não

fossem os caminhos dos cuidados e dos

carinhos de minha mãe no meio da noite

de medo porque era escuro e era inverno

e eu menino ali transido me julgava eterno



9.11.2019


(Ilustração: Cândido Portinari)


11 de nov. de 2019

escória




pior do que ser viado

é ser viado pobre

pior do que ser viado pobre

é ser viado pobre e preto

pior do que ser viado pobre e preto

é ser viado pobre preto da periferia



pior do que ser puta

é ser puta pobre

pior do que ser puta pobre

é ser puta pobre e preta

pior do que ser puta pobre preta

é ser puta pobre preta da periferia



o osso duro de cada dia dá-nos hoje

o senhor nosso da capela florida dos jardins de inverno

que roeremos o osso e também os teus tapetes

quando servirmos os teus lautos banquetes



nosso desejo entorta o cano das armas que nos matam

cada bala em nosso peito é hóstia consagrada

aos desvios nossos de cada dia nas quebradas das favelas

pobres putas e pretos viados caçamos clientes

como somos caçados pelos soldados inclementes

mas mantemos sempre afiados os nossos dentes



na lama do charco nascem flores belas

mas na lama do nosso peito só se cultiva o medo

não o medo de morrer em qualquer esquina

mas de viver cada dia a mais nessa miséria



cantamos e dançamos o canto e a dança da morte

pisando as pedras da rua sem lua e da praça sem jaça

puta que morre não vira estrela – vira lamento

viado que morre não vira purpurina – vira desalento

para quem continua pior que pobre pior que puta

para quem não sabe o que é o dia que amanhece

noite sempre em cada passo noite sempre em cada

canto em cada dança em cada quebrada da vida

se do teu mundo de ouro e prata somos escória

nossos corpos jogados ao léu para repasto de urubu

serão sempre a espada de dâmocles na tua história





23.10.2019



(Ilustração: escultura de Camille Claudel - L’Abandon)


Leia esse poema, na voz do autor, acessando este endereço de podcast:







9 de nov. de 2019

escombros





medo pânico de meus escombros

os restos do naufrágio em praias desertas

no arrojo das ondas os sonhos flutuam

desolados ao sol e às marés bravias

nas águas turvas da vida sem saída

velas destroçadas batendo nas cavernas

os arroubos em queda livre rumo ao fundo

medo pânico dos meus escombros

a ferir-me os brios de capitão sem mar

não há mais oceanos nem estrelas guia

não há mais rotas ou mapas de navegação

apenas escombros e desejos descarnados

o comandante afogado nas ondas revoltas

vertidas dos seus próprios olhos sem brilho





16.10.2019

(Ilustração: Amadeo de Souza Cardoso) 

5 de nov. de 2019

desejo selvagem






uivam lobos no alto da montanha

ganem cães nos canis da cidade

livres os lobos à luz da lua

cativos os cães coléricos cães

laçados da estepe e dos morros

para a rua fétida da humana gente



felizes os lobos na caça o sangue nos caninos

triste os cães à caça de mãos que os afaguem



não sei se sou o lobo solitário

ou o cão que lambe a mão do dono

no peito pulsa o desejo selvagem do lobo

mas quando te vejo enfim em meus braços

entregue ao prazer que me dás e te dou

sou apenas o cão vadio das ruas sujas

a lamber pelas calçadas a sombra entrevista

dos teus passos firmes no meu peito em brasa





28.9.2019 


(Ilustração para uma edição de Fanny Hill; 
autoria desconhecida)