Ao
som de Liszt
(martin van maele)
Esta noite ao som de Liszt
quero revisitar a cidade em que nasci
percorrer suas ruas compridas
libertar os espectros queridos
trazer de volta emoções sofridas.
Esta noite o vento lá fora
não trará apenas o frio de agora
mas sentimentos de outrora
do poeta jovem a contemplar a aurora
dos anos de dor que ainda não foram embora.
Esta noite é preciso exorcizar
todos os demônios de minha alma.
É preciso rever cada casa
cada planta e cada árvore
que doem no peito ao lembrar
dias idos (serão vividos?) lá.
Esta noite sairão dos túmulos
uma a uma todas as sombras
povoarão cada sonho noturnos
espectrais em mantos tristonhos
os meu próprios fantasmas e sonhos.
Esta noite o delírio de ver
na sombra de
cada rua
o sapateiro o alfaiate o louco
na praça à sombra da lua
o ipê a tipuana as palmeiras imperiais
estátuas rudes e inúteis
monumentos ao próprio destino
a procissão de sexta-feira
o Cristo sempre morto
a fazer soar as catracas
na reza das beatas
e o sonho a lua cheia
a esperança de outrora
os sábios da praça a buscar
a origem das estrelas
enquanto o rádio anuncia
a morte do grande cantor
o suicídio do ex-ditador
a praça a algazarra do fim das aulas
o cipreste esconderijo do brinquedo de pegador
cantigas de roda
medos fantasmas a noite escura
o caminho tortuoso até a casa
ou será até a vida?
no riacho a água ainda é pura
e todos podem nadar
na vida a esperança ainda sonha
com a menina de olhos negros
que nunca mais voltará
meu delírio de louco
ao som de cristais da orquestra
num baile de formatura
ou num uniforme verde-oliva
ao som de tiros de canhão
no fim da liberdade
até que um túnel comprido
com um rio de lama por dentro
deságua nos dias de choro e
ranger de dentes
mortos mortos mortos os libertários
e a minha pequena cidade
cercada de ipês dos meus sonhos
resiste e permanece memória
nos tempos eternos de minha mente
enquanto crio versos inúteis e loucos
como loucos os sonhos de outrora
idos vividos mortos
como mortos estão os parentes
os amigos e conhecidos
como morta a própria vida
parada estagnada na pequena cidade
do interior de minha alma.
28.setembro.87
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