Sempre que surge uma nova mídia, apressam-se os apressados de sempre a decretar a morte da mídia anterior. E, quase sempre, erram suas previsões. A morte da vez é a do livro impresso, que seria morto e sepultado pelo livro eletrônico, com o surgimento de leitores digitais.
Tudo bem, o livro impresso em papel pode até vir a desaparecer algum dia, mas não exatamente por causa do surgimento dos aparelhos digitais que ainda precisam evoluir muito – e parece que estão evoluindo – para se tornarem totalmente confiáveis. Afinal, que bibliófilo confiaria que a bateria de seu aparelho vai continuar sendo produzida pelos próximos séculos? Com a sanha obsoletista da indústria, modelos e mais modelos diferentes acabam sendo produzidos em série, sem que o pobre leitor consiga acompanhar ou mesmo atualizar seu aparelho, como acontece com os telefones celulares, cujo obsoletismo atinge paroxismos impensáveis.
Eu disse que o livro de papel pode desaparecer, isso porque as florestas estão desaparecendo, ou seja, a sanha humana de destruir o planeta pode chegar às bibliotecas, mas não poderá provavelmente impedir que, mesmo moribundo, os nossos queridos exemplares encadernados e devidamente cuidados permaneçam por muitos séculos além do pobre leitor digital, que precisará de transplantes constantes para novos “corpos”, para resistir à passagem do tempo.
Tenho um aparelho desses, um Kindle, e aprecio a possiblidade que ele me dá de acesso a obras que, de outra forma, não teria acesso, ou pelo preço muito alto, ou por estarem esgotadas ou, mesmo, por não saber onde encontrá-las. No entanto, se dentro dele já conto com mais de uma centena de livros que carrego para onde vou, coisa impossível se fossem exemplares de papel, também me preocupo com a fragilidade do aparelho, com a falta de energia elétrica para carregar de novo a bateria, com a duração mesma dessa bateria.
Mas, não é exatamente disso que gostaria de falar, quando se trata de assunto tão atual, complexo e que provoca longas discussões. Sem dúvida, há vantagens e desvantagens em ambas as mídias, e ninguém está seguro de qual lado da balança tem mais peso. Há, no entanto, algo que os aparelhos digitais não têm nem terão nunca: o cheiro. Na sua anódina existência plástica e metalizada, há uma total impessoalidade odorífera. Ninguém cheira um Kindle, a não ser que ele tenha caído em algum lugar fedorento e necessite de uma boa higienização. Ninguém lembraria um momento esquecido no passado, ao cheirar uma tela ligada a um toque, no seu absolutismo existencial de ser apenas aquilo que é, uma tela feita de algum material que não sabemos bem o que é, mistura de plástico e outros materiais, definida por alguém para ser daquela exata tonalidade, totalmente inerte a nossos sentidos. Muito diferente, portanto, da página de papel de um livro, que tem um toque pessoal, ou seja, cada livro tem sua aspereza ou sua maciez característica e única e, principalmente, tem o seu cheiro, diferente de qualquer outro, personalíssimo, como uma impressão digital, de um ser vivo, ou que já foi vivo e parece trazer em si uma história que vai além da história do próprio homem.
Exagero? Tente, então, caro leitor dessas loucas palavras, cheirar um aparelho digital e compare com o cheiro de um livro. Um querido amigo meu, cuja falta sinto até hoje, depois de vários anos, tinha por hábito levar ao nariz todo e qualquer livro que lhe caía nas mãos, mesmo antes de saber do que ele tratava, se era um romance ou um livro didático. Era essa relação íntima, de cheirar um amigo, de cheirar o que se gosta, que o livro nos proporciona. Nossas narinas são um órgão muito especial: guarda cheiros de que nem nos lembramos mais e nos fazem sonhar quando os respiramos de novo. E há cheiros inauditos, cheiros improváveis, cheiros de tempos e de memórias de que não desconfiamos que estão ali, guardados, catalogados, prontos para nos transportar para momentos esquecidos e, às vezes, jamais relembrados, mas que nos emocionam e nos fazem encher de lágrimas os olhos ou nos provocam um sorriso nos lábios.
Ah, os cheiros... Veja bem que estou falando de cheiros, não de perfumes, que esses, os perfumes, são cheiros que pertencem a categorias especiais de especiarias e requintes reportados por alquimistas e químicos, artificializados por pesquisas e experimentos. Já os cheiros, e dentre eles os cheiros dos livros, são categorias espontâneas e volúveis, não provocadas, naturalmente captadas por nossas narinas e devidamente registradas por um determinado acontecimento ou momento de que podemos nos esquecer, sim, podemos esquecer o momento e o acontecimento, mas não podemos esquecer o cheiro daquele momento ou daquele acontecimento. E tantos são os cheiros que nos perseguem pela vida afora quantos são os livros que lemos, mas enquanto estou aqui a falar de cheiros, e lembrando de quantos cheiros está povoada a minha lembrança olfativa, quero terminar dizendo, por isso mesmo, por causa dessas tantas lembranças, que, se tirarem as crianças da sala, posso aprofundar o assunto para outras áreas tão ou mais prazerosas que a leitura.
6.12.2018
(Ilustração: Alexander Bartashevich,1966, Belarusian)