30 de dez. de 2023

banzo

 



de repente urgente

aquela lembrança

não sei bem de quê

não sei bem por quê

a dor no peito que me lança

talvez para longe

talvez para perto de você



mas não é de você que vem

essa nostalgia

esse estranho desconforto

parece que chega do além

algo que parecia morto

e me aperta no meio do dia



espinho de rosa branca

espinho de cacto do deserto



um sentimento que me espanta

vindo de longe e estando tão perto

numa urgência de telegrama

como se dizia outrora



uma urgência que me chama

do passado para o agora



seja talvez esperança

seja talvez desespero

o banzo que me alcança

com todo esse exagero

mata minha fome de saudade

e não me traz felicidade



11.2.2022

(Ilustração: escultura de Ralph Brown)

27 de dez. de 2023

banquete

 





sento-me à mesa com seis convivas

que não vieram

que não estão ali



vejo-os no entanto sem que precise imaginá-los

vejo-os

todos alegres e sorridentes

numa ceia de natal



claro que ninguém ali acredita em manjedouras

onde um salvador ergue os bracinhos miúdos

para uma cruz negra que salvará o mundo



trincha-se o peru

serve-se a farofa

prova-se o arroz

comemora-se a fartura

erguem-se brindes

e eu ali à mesa vazia acompanhado de convivas ausentes

o clima de festa instalado

vinho e ceia

ceia e vinho

e eu estou só

e eu estou só

e eu estou só



transformam-se os risos e brindes

em sinos que bimbalham ao longe

e minha solidão voa com os pássaros

cegos pássaros presos à árvore seca





12.8.2022

(Ilustração: Hieronymus Bosch: the ship of fools, c.1500-1510)

24 de dez. de 2023

avenida

 




uma avenida que começa na montanha

termina numa praia à beira-mar

uma avenida que por mais estranha

segue a curva torta do meu olhar



sigo-a às vezes

e sinto-me feliz

quando por vários meses

tiro de mim a raiz

que me prende ao chão

caminho então

por essa avenida

como se fosse a razão

da minha vida

o meu último grito

– e não há nisso nenhum engano –

porque sei que ela busca o infinito

da fímbria do oceano

diretamente do fundo do meu coração



3.10.2022

(Camille Pissarro - 1856)

21 de dez. de 2023

auroras perdidas

 

 


minas tem minas profundas dentro de mim

e quanto mais escavo em busca do ouro que não há

mais se enferrujam as engrenagens da minha saudade

num trem que sai da estação de lugar nenhum

 

para o espanto de minhas lembranças

revejo as ruas longas e tortas de minha cidade

e não sei – quando vejo suas fotos de hoje -

se sinto a dor de não estar lá

ou a dor que teria se lá estivesse

 

o tempo come pelas bordas as minhas recordações

rói o desterro que me impus

de sofrer aqui o que lá sofreria

 

mais o buraco das minas aprofunda o meu desencanto

no cheiro que vem das madrugadas antigas

no grito do bem-te-vi que grita aqui como lá gritava outrora

e o fruto doce da mangueira tem aqui o leve aroma de tardes lentas

quando eu menino me lambuzava de seus sucos trepado nos seus galhos

 

minas e suas minas dentro de mim

o ferro que fundiu meus caminhos para longe

o asfalto que me trouxe para lugares onde me tornei mais triste

tudo impressiona dentro dos labirintos no interior de mim

lá como cá

 

sou o sumo da jabuticaba que o sanhaço não sugou

e caio dentro de mim como o caroço da manga madura

mas não frutificam as sementes que cultivo

apenas a lembrança aquece as noites de insônia

 

quando percorro sempre dentro de mim mesmo as mesmas ruas

cobertas de marcas de passos de antepassados do passado mais remoto

fantasmas de enforcamentos e de procissões em noites de lua cheia

o cristo morto pranteado ao som das matracas e o véu da verônica

erguido mais uma vez na estação dolorida

para que a voz de contralto chegue aos ouvidos de todos os fiéis

baralham-se os rogos inúteis dos passos sofredores

ruma o cortejo para a cerimônia final na praça da igreja matriz

compungidas as beatas

contritos os irmãos da congregação de sagrados corações

balança o rosário no silêncio profundo o pároco

e o eco de todos as demais contas preenche os espaços lunares

prego-me à cruz com o cristo e solto o meu grito de liberdade

ao viajar para os páramos de engrenagens de racionalidade

fujo da fé como fujo de mim e sou aquele que nunca se ajoelhou

 

minas e suas minas

buracos de saudosismo inútil nas asas de borboletas e pintassilgos

a estrada que sobe montanha acima e desce montanha abaixo

os abismos que se encaixam à profundidade de minhas lembranças

 

sou eu só e meus desejos

sou eu só e minhas minas desesperadamente profundas

que sejam elas meu caminho de esperança e de futuro

mesmo que nunca mais eu volte àquelas velhas ruas abandonadas

de minha infância e de minhas auroras perdidas

 

 

19.6.2022

18 de dez. de 2023

ateísmo total

 


penso que poderia

entrar num total desvario

e mostrar todo o meu ateísmo

numa noite de lua nova e muito frio

 

penso que poderia

sorrir um sorriso de doce ironia

e sentar a pua

nos deuses do olimpo e sua periferia

 

penso muito como gostaria

de soltar minhas diatribes e meus miasmas

dançar a dança de fantasmas

para invocar o belzebu

numa total euforia

como se tivesse o diabo como parceiro

- seria isso o mesmo que mandar deus tomar no cu

 

depois dizer bem alto como esse feiticeiro

esse deus que todos cultuam

tem um sido um grande carniceiro

a exigir de cada crente idiotizado

mais do que um sinal de devotado

um sinal em dinheiro transformado

para entrar na sua graça

e à custa de cada desgraça

exigir que ergam para o espaço

catedrais e templos que custam bilhões

bilhões de dólares e de sangue

que deixa o povo idiota mais exangue

sem quaisquer outras condições

que não acender na pira o fogo

onde se queima – como um pérfido jogo –

toda possibilidade de rebeliões

 

quero sim

debochar desse deus que todos os cristãos

cultuam à custa de suas vidas

- fantasma que nunca ninguém viu –

que cresce à custa de muitas feridas

esse deus que eu mando agora

a puta que o pariu

porque sei que ele só existe

- e persiste –

como fruto podre

da louca imaginação de quem enriquece

erguendo templos para o nada

enquanto a turba se ajoelha

ergue os braços numa prece

esperando milagres de fancaria

 

esse deus absurdo como uma girafa de dois pescoços

mais absurdo que um grifo de jardim zoológico

esse deus idiota e idiotizado pelos profetas bíblicos

a descer o cacete nos inimigos

a abençoar incestos e sacrifícios humanos

esse deus que flutua em cima de uma nuvem de gafanhotos

cultuado em templo de ouro e prata por todos os escrotos

esse deus urubu zeloso de sua carniça

que exige orações e salamaleques

esse deus eu quero sim esculachar

e desejar que ele se exploda no inferno abissal

de todo o esquecimento humano para que um dia afinal

seja declarado para sempre o ateísmo total


 

27.3.2021

(Ilustração: Andrei Posea - Lilith)

 

 

 

15 de dez. de 2023

assim, os gatos

 



a vida é cheia

de maus tratos

- recomenda-se na veia

observar os gatos



o seu lento

movimento

de elegância e preguiça

pelos quintais



ao sol – nada atiça

seus instintos animais

- só seus olhos espertos

seus ouvidos atentos

dizem-nos – estão despertos

quando movida pelos ventos

cai uma folha de repente

apenas esperam sem pressa



a eles – os gatos – que nada os apoquente

sua vida sem sustos - boa à beça



não brigue – pois – com

os maus tratos

da vida

- assim como os gatos

deixe que o tempo passe

e teça suas teias

e desenlace

sem sustos - sem pressa

dores e feridas

dê-lhes algumas lambidas

e torne sua vida – como a deles – boa à beça



21.9.2023

(Ilustração: gata Ágata, 01.08.2021, foto de Selene Sidney)

12 de dez. de 2023

assassinato

 




cato poemas que vou encontrando

pelos caminhos de pedras e musgo

como cataria pepitas de ouro entre as pedras do riacho

se fosse eu dono de bateias e de riachos

mas como sou apenas o caminhante solitário

a pisar seixos e musgos pelas estradas da vida

cato poemas mal lavrados

à espera de encontrar

entre tantos versos amealhados

um só lampejo de brilho ou mesmo a efígie de um poeta morto

para lhe oferecer um copo de vinho

e brindarmos como dois amigos que há muito não se veem

à beleza do pôr do sol ou à estupidez de um assassinato



26.2.2022

(Ilustração:  Claude Monet)

9 de dez. de 2023

asas do vento

 





nos eflúvios da embriaguez

não espero a minha vez

de pisar o chão etéreo da ilusão



conheça embora os caminhos

sou o estranho nesses labirintos

dos sonhos vesgos de sábios e adivinhos

que me oferecem taças de vinhos tintos

e prazeres das noites das arábias



levanto o véu da minha pretensa lucidez

para imaginar doutrinas sábias

e buscar a paz numa espécie de viuvez

em que pairam asas do vento eterno

que esparzem sobre as pedras dos caminhos

as cinzas do meu inferno




4.9.2021

(Ilustração: Jindrich Styrsky - na hrobe-1939)

6 de dez. de 2023

as palavras

 




procuram-se umas às outras no poema

as palavras

por afinidade de rimas ou de aliterações

para melhor os sentimentos do poeta satisfazerem



distanciam-se umas das outras nas desavenças de amor

as palavras

por espetarem como espinhos a cada grito

e ferirem por dentro todos os caminhos do encontro

 

 



16.2.2022

(Ilustração: Tetsuya Ishida)

 

3 de dez. de 2023

aos desertores

 

 




com o bronze derretido

das estátuas erguidas

ao soldado desconhecido

modelem com astúcia

o semblante assustado

do desertor conhecido

perseguido e caçado

pelo estúpido

destacamento fardado



que do fogo da forja ressurja

a glória que ilumina a terra

daquele que repudia a guerra



30.7.2022

(Ilustração: Micolas Kernbach, Stuttgart: The Unknown Deserter)

30 de nov. de 2023

ao teu beijo

 





recorte-se o vento

retrate-se o tempo

descole-se o olhar

esfole-se o andar



voemos ambos pelo vento

sorriamos ambos ao tempo

e tudo quanto traz o olhar

vire brisa e atice o mar



sejamos dois passos num só caminho

sejamos dois olhos num só desalinho

façamos juntos a trama do bordado

sonhemos juntos o futuro já traçado



sou teu braço

és meu traço

seguro-te forte

aponta-me o norte

volte o vento ao vão da estrela

que no meio do tempo eu possa vê-la

estrela-guia na via-láctea do meu desejo

o caminho que me leva ao teu beijo




2.12.2021

(Ilustração: Clovis Trouille, The Kiss of the Confessor)

28 de nov. de 2023

ansiolítico

 


 

hoje beberei tanto vinho

até chorar lágrimas tingidas

para expulsar o espinho

e curar todas as feridas

 

não me importa que escorra

com as lágrimas o sentimento

mesmo que depois eu morra

serei cinzas jogadas ao vento

 

e de mim não fique lembrança

nem versos ou marcas na areia

quero da vida a segurança

de haver escapado de sua teia

 


5.1.2023

(Marc Chagall - TheDrunk (LeSaoul)


 

24 de nov. de 2023

angu com carne moída

 




o menino tira da boca a rosa – seu sorriso de dentes pequenos

ainda dentes de leite

não sabe para quem sorri o menino de olhos negros e suaves

sabe apenas que há uma farda e uma sombra negra à sua frente

amigo

amigo

sorri porque a vida ainda é um jardim de grama verde

por onde corre a bola grudada no pé

e o futuro é o gol que o amigo não conseguirá defender

e o abraço que terá dos amigos e depois no barracão

a zanga fingida da mãe e o angu com carne moída

cozido na trempe do fogão de lenha



o menino de riso de rosa cresce

e já na terceira esquina da vida precisa ganhar na cidade

o que cidade nunca lhe deu

ao sol quente do meio-dia no farol da esquina famosa

a cada motorista que para oferece o pouco que vende

a água e o chocolate de origem duvidosa

quem importa?

o menino-quase-homem-feito não se importa

se o dia está quente ou frio – a blusa de sempre

a mochila às costas de vez em quando um grito

vai trabalhar vagabundo

ele não se importa



já quase noite a lua aos poucos no céu

toma o menino-quase-homem-feito o trem para a lonjura do barraco

caminha agora pela rua já deserta

e sonha com o angu com carne moída na trempe do fogão da mãe preocupada

e sonha não com a rosa do seu sorriso de dentes de leite

– sonha com a rosa que tem dentes brancos como os seus

e o mesmo sorriso de esperança

quem sabe um dia

quem sabe - um beijo

quem sabe



e então o susto que assusta a lua

perdeu moleque perdeu

mãos à cabeça

encosta aí

abre as pernas

não olha não olha não olha para trás

cadê o dinheiro do furto

fala logo cadê

que não tenho tempo para tipinhos como tu

cala a boca

cala a boca

cala a boca

deita

deita

não olha

deita

mãos na nuca



no instante de raio de lua em que se volta

para deitar no asfalto frio

os olhos – os olhos – negros como os seus

o rosto – o rosto – negro como o seu

amigo?



o menino-quase-homem-feito não sentiu nada

apenas a lua no céu se escondeu atrás de uma nuvem



no barraco coberto de estrelas sem lua no céu escuro

o angu com carne moída

resta na trempe de fogo já morto

e está seco

seco para sempre

seco



7.3.2022

(Ilustração: José Carlos Miranda Brito)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

21 de nov. de 2023

andar do velho

 





o andar do velho é lento

porque seu tempo é infinito

há nos seus olhos o passar do vento

na sua voz o eco do último grito



passo a passo na calçada

caminha em busca das estrelas

que estão na memória da vista cansada

na esperança de ainda poder vê-las

como sonhos há muito sonhados

esquecidos todos os anos passados




30.12.2022

 (Ilustração: James Coates - Couple walking dog)

18 de nov. de 2023

amores tempestuosos

 






os amores tranquilos

não expostos aos vendavais da vida

passam como a brisa

não marcam nossa mente

com os estilhaços das tempestades

não escarificam nossa pele

com os espinhos de roseiras mortas



os amores sofrem humores

mudanças bruscas de temperatura e pressão

queimam as pontes e as reconstroem

com os destroços de corações deixados pelos caminhos



é preciso viver pelo menos uma vez os amores sísmicos

que eles apenas são passíveis de nos levar ao nirvana do prazer

deixam traumas

deixam mundos e fundos de desespero

deixam cicatrizes indeléveis

desenterram de nossas profundezas as flores mais putrefatas

mas escondem nas raízes os perfumes mais delicados



os amores tempestuosos

são pentes de osso

a desembaraçar sentimentos que se soltam aos ventos



deixam rastros de destruição

sim

deixam sequelas até para vidas futuras se as tivermos

no entanto

se não vivemos e sofremos

uma vez sequer

os amores tempestuosos

a vida fica um mar sem ondas

primavera sem perfume

agosto sem vento

dança sem batuque

doce sem açúcar



31.7.2023

(Ilustração: escultura de Bernini: o rapto de Prosérpina)



15 de nov. de 2023

amor perdido

 




quando acordado o sonho me invade

numa maré marchetada de sal e nuvem

a rima que raro uso em meus poemas – saudade

arrepia a pele do meu braço e levanta a penugem

dos meus arroubos passados me enleva e me leva

por alamedas de dias de sol onde me espera

o vulto adormecido da paixão envolta em treva

que um dia envolveu meu coração como a hera

que cobre de verde o escuro das paredes

dos velhos sobrados destruídos pelo vento

e hoje esse sonhar acordado desperta as sedes

que tive por beber desse amor perdido no esquecimento



27.1.2022

(Ilustração: Edward Hopper - solitude, 1944)


12 de nov. de 2023

amor morto

 





enquanto aguardo o passo trêfego do passado

caminha a morte em linhos envolvida

sobre as tumbas rasas de faraós enlouquecidos

pisando as pedras das pirâmides ancestrais

ao sol poente do deserto amarelo



pela areia fina dos ossos ressequidos

os passos dos camelos bêbados de luz

cruzam caminhos de tapetes e arminhos

pisando corpos de outrora no agora



o vento quente do deserto sopra sem alarido

o pólen das flores murchas das tumbas reais

onde repousam há muitos séculos os meus restos mortais

enegrecidos pelas chamas de um amor não correspondido



1.12.2021

(Ilustração: Alyssa Monks)

9 de nov. de 2023

amor e restos de vida

 




não quero mais escrever sobre o tempo

digo – e o tempo vem e me devora

e toda vez que tento

trazer os dias passados para o agora

desenterro os fantasmas que vêm comigo



vivos, os fantasmas – vivas e doloridas, as lembranças



por mais que deseje e me esforce nunca consigo

renovar todas as minhas esperanças

porque olho para ti e vejo que não pude

estender o tempo e todas as suas temperanças

para trazer de volta a nossa juventude



os dias passados – fantasmas que eu recupero

devoram-me a carne já no corpo quase apodrecida

mostram-me a ruína que eu sou e que tu és nesse entrevero

quando tudo o que restou para nós é essa merda de vida



22.11.2021

(Ilustração: Hannah Höch)

6 de nov. de 2023

amante

 




sinto por você o que sente meu instinto:

a voraz necessidade de carne fresca

misturada ao calor de uma taça de vinho tinto



não importa que você se entregue ou não

ao jogo do meu fogo

o que me basta

é beijar seu ventre

alisar sua cabeleira vasta

regalar-me nas ondas de seus seios

sugar sua vida com meus ardores

esquecido de tudo quanto você passou

esquecido dos seus inesquecíveis amores



nos nossos instantes de delírio sinto apenas

o sabor do seu suor pingando em gotas

de seus lábios frios

como se fosse a fonte de antigos sortilégios

a transcender no movimento de seus músculos pélvicos

todos os meus mistérios



não há nesse desabafo de amor romântico

qualquer esperança de que você transforme

em sonho de seus sonhos

ou em desejo informe

cada espasmo de meu corpo quando mergulho

no fundo dos seus olhos

e no mais profundo do seu corpo



sou seu amante ou talvez até muito mais do que isso

mas você

não sei o que é ou o que deseja ser

a cada vez que nossas vidas desencontradas

revolvem-se sem qualquer culpa em leitos neutros

de falsas estrelas em céus de bronze: sei apenas que

nosso amor viceja a cada toque de nossas mãos angustiadas



5.1.2022


(Ilustração: Jack Vetriano - devotion)

3 de nov. de 2023

ainda

 





passos pesados pelos paralelepípedos

quando há muito eram lépidos passos

por nuvens de futuro

e a sombra que percorre o tempo

pede apenas uma pena de pintassilgo

para levar adiante o espanto de viver



que ainda sejam nuvens os sonhos de amanhãs

que os passos pesados pisem o passado

e abram caminhos de novas auroras boreais



ainda que os ossos estalem

ainda que as carnes enrijeçam

ainda que os olhos enegreçam



24.5.2023

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

31 de out. de 2023

Ah! Mérica!

 





Depois de séculos ajoelhadas as américas latinas

poderão um dia acordar ladinas

e deixar de ser do norte as latrinas?



Fechar as veias de todas as minas?

Mandar caçar pipas o tio sam e suas crenças asininas

que só trazem para as américas políticas assassinas?

Mandar o europeu comer grama de suas próprias campinas?

Quem sabe esquecer o complexo de boas meninas

e colocar atiradores em cada uma de suas esquinas?



E então não mais de joelhos as américas latinas

serão pelo mundo aclamadas como as américas ladinas?



11.2.2022

 (Ilustração: Diego Rivera - detalhe de um mural 
no Palácio Nacional do México)

28 de out. de 2023

abraços

 




aperta-me em teus braços

e detém os meus passos

que me levavam à solidão

no calor dos meus cansaços

esquecera-me o que serão

e o que seriam meus dias

se tu não te encontrasses

no meio de minhas porfias

e se não me abraçasses

o quanto eu precisava

aperta-me forte que dentro

desse abraço que trava

a dor de viver eu aprendo

que a vida que ainda viverei

valerá apenas contigo

se nos teus braços tiver abrigo



25.11.2021

(Ilustração: Leonid Afremov, rainy kiss)



25 de out. de 2023

a cidade

 




mais do que cresce

a cidade apodrece

quando vai ladeira abaixo

para os rios de esgoto

que correm sob seu solo



mais do que engrandece

a cidade desce

ladeira abaixo

para os rios que sofrem

por debaixo

de seus prédios altos

de suas avenidas entupidas

de gasolina e diesel



mais do que aparece

a cidade desaparece

em fumo e sombra

sob o efeito estufa

de fornos atmosféricos

de suas fábricas estúpidas

e dos canos fúnebres

de milhões de veículos



e a cidade empobrece

mais do que cresce

quando sopra a brisa

dos rios fétidos

que tentam sobreviver

sob suas ruas pútridas



essa a cidade que cresce

mais do que recrudesce

para a morte precoce

pelas águas podres

que sua vida empobrece



26.12.2021

(Ilustração: Henrique Manzo - Panorama de São Paulo, 1870)

22 de out. de 2023

AUTOMÓVEL NEGRO

 




A história contada não deve ter sido nunca a história vivida. Do pouco que se soube, muito foi inventado. Diziam uns que fora assim, diziam outros que fora assado. Mas a verdade verdadeira dos fatos nunca ninguém soube ou saberá. Apenas registram as velhas crônicas que, um dia, logo ao amanhecer, a praça pacata da cidadezinha perdida nas montanhas de Minas acordou com os gritos vindos da bela casa branca situada entre a padaria e a casa do barbeiro. Eram gritos horrendos, gritos de mulher. Não pediam socorro nem nada diziam, misturados à voz grossa do homem a berrar palavras que ninguém entendia. Juntou gente. Alguns queriam entrar, arrombar a porta, salvar das mãos do monstro a mais bela mulher da cidade, casada há poucos meses com aquele sujeito estranho e feio, já quase velho, que ninguém achava que se casaria um dia. Falou mais alto o medo e, ainda mais alto que o medo, o respeito. Ele, o monstro, além de rico, tinha fama ruim, fama de brigão, com até morte nas costas, segundo os mais afoitos. Duraram vinte minutos ou mais os gritos, segundo algumas testemunhas; duraram duas horas inteiras de horror, contaram mais tarde os filhos e duraram o dia inteiro de agonia, repetiram os netos. O que se sabe é que não se sabe se tudo realmente aconteceu. Ficou na memória de todos e registrada numa foto já desbotada pelo tempo, tirada por acaso pelo barbeiro, o último instantâneo de um filme meio que esquecido numa velha máquina, a saída triunfal da mais bela mulher da cidade. Todos a viram, altaneira, abrir a porta da casa, dentro de um vestido verde justo e comprido, sob um largo chapéu branco, portando uma valise de mão, os sapatos a quebrar o silêncio dos paralelepípedos com o pisar elegante de seus saltos altos, atravessar a praça, entrar sem olhar para trás num grande e negro Ford que a esperava e que arrancou pela rua acima, rumo à única saída da cidade e desaparecer para sempre na curva da estrada. Nunca mais se ouviu falar dela. O homem, que era feio e casmurro, mais feio e mais fechado se tornou. Nem brigas, nem discussões, nem os poucos amigos o atraíam para fora da casa, de onde só saía uma ou duas vezes por semana, para umas poucas compras ou para caminhar falando sozinho pela praça cujos moradores pouco a pouco foram esquecendo a agitação daquela manhã distante, quando foram acordados por gritos horrendos vindos daquela casa branca entre a padaria e a casa do barbeiro que teve a feliz ideia de tirar a foto famosa como único registro dos fatos que muita gente jura não terem acontecido. O tempo se encarregou de tornar também essa foto uma lenda. Dizem que, por causa da foto, o barbeiro conseguiu eleger-se vereador e quase foi prefeito, mas a política acabou por empobrecê-lo a tal ponto, que só não perdeu a casa e a barbearia para os credores porque, como vereador, conseguiu aprovar algumas leis que beneficiaram pessoas influentes da cidade, em negócios escusos de licitação para construção de obras públicas (o receio ou a gratidão dessas pessoas impediu sua derrocada final, mas isso é outra história). Por isso, antes de morrer, o barbeiro exigiu dos netos que conservassem a foto, embora seus detalhes tenham esmaecido a tal ponto que só restou nítida a figura de uma bela mulher com seu chapéu branco e seu vestido verde que podia estar a atravessar, altaneira, qualquer pracinha de qualquer perdida cidade das Minas Gerais. Só o seu semblante altivo permite perceber que ela, a mais bela mulher da cidade, parece fitar o futuro que, segundo a história, estava dentro de um automóvel rabo-de-peixe estacionado do outro lado da praça para levá-la embora para a capital ou, quem sabe? para os Estados Unidos, conforme se cogitou nas rodas fuxiqueiras, nas mesas de bar, na quermesse da Igreja e nas casas de putas, onde quer que houvesse uma rodinha de prosa. O homem? Dizem uns que morreu e bem morto está no cemitério da cidade. Túmulo, ninguém sabe qual. Não há registros. Dizem outros que ainda vive, centenário, nos escombros da casa que um dia era branca e, hoje, enegrecida pelo tempo, abandonada e assombrada, faz parte do imaginário dos filhos dos netos das pessoas que um dia acordaram assustadas com os gritos de uma bela mulher que foi embora num carro negro.



16.10.97

(Ilustração: August Macke: woman in a green jacket, 1913)



Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, neste podcast:


19 de out. de 2023

xícara de café

 



tomei uma xícara e meia de café

antes de dormir



não dormi



deixei que me visitassem

todos os fantasmas de outrora

espectros de uma vida

que não sei se vivi ou

foi vivida por sonhos de estranha aurora



quando tudo parecia perfeito

um sonho que meu passo

me levou a cair num laço

que há muito estava desfeito

por vidas paralelas à minha vida



ah

a minha vida



não era nada do que vivia

era apenas o sonho que sonhava

enquanto o real que não existia

era apenas um sonho que passava

na tela da sala esquecida

num canto esmaecida

onde um filme de terror

desenhava nos olhos de cada espectador

o buraco negro de meus desejos



era apenas o espectro da liberdade

que um dia senti nos teus beijos

na entrega de uma falsa virgindade

que marcou minha vida de infelicidade





foi a isso o que uma noite insone me levou

quando uma xícara e meia de café

me despertou





26.7.2022

(Ilustração: Krzysztof Iwin - insônia)







16 de out. de 2023

vou-me embora pra pindaíba

 





vou-me embora pra pindaíba

lá sou amigo do rei dos mendigos

e posso ler em paz os meus poetas

lá tenho a cama que eu quero

numa folha de jornal

lá não tem mulher que me aporrinhe

nem homem que me explore

em pindaíba sou feliz e também infeliz

sofro e choro o choro do escravo fujão

rio-me sozinho pescando sem anzol

sem roupa nenhuma deixo o sol me queimar

sem fome nenhuma para me atormentar

como a minha sede no suor no meu rosto

bebo a minha fome cutucando o buraco do dente



fui-me embora pra pindaíba

a buscar meu quinhão de vida sofrida

e quando cheguei lá pobre pobre de marré de mim

fiquei mais puto que os putos do bordel

não tem mais pindaíba

não tem mais nada lá

nem boi mugindo nem boi pastando

só silêncio de piroga afundada

e até em pindaíba uma pobreza igual à minha

está fudida e está lascada

pois não encontra mais é nada



28.9.2021

(Ilustração: Max Klinger)

13 de out. de 2023

vou-me embora pra esbórnia

 





vou-me embora pra esbórnia

lá tenho a mulher que eu amo

na cama do motel mais caro

em esbórnia eu sou mais feliz

que alface sob chuva e lá

sonho os sonhos mais eróticos

do que sonhava o marquês

sou íncubo e às vezes súcubo

sem me importar com rótulos

mexo o rabo como meto o nabo

nos rabos mais rabudos



vou-me embora pra esbórnia

sorrir o sorriso do lagarto

viver dias de vinho e rosas

e sonhar feuilles de roses

em esbórnia o meu prazer

é dar prazer ao meu amor

trepar em cama redonda

mil vezes se quiser

não pensar que sou isto

não pensar que sou aquilo

esquecer que já vivi

tantos anos que esqueci

que trepar sem ter tesão

é o mesmo que chupar manga

sem tirar a sua casca



ah quanta esbórnia se faz

no país chamado esbórnia

tantos beijos e desejos

sem nenhuma consternação

recebo o que preciso

e dou o que mais tenho

só me preocupa em esbórnia

que cada dia seja melhor

que o dia que acabou de acabar



vou-me embora pra esbórnia

para nunca mais voltar



21.10.2021

(Ilustração: Aroldo Bonzagni)

10 de out. de 2023

voo

 






antes que a inércia me pique

quero dançar um tambor de crioula

numa floresta em Moçambique

mascando um chiclete de papoula



descansar mas não para sempre

nas dunas de uma praia sem fim

deixar-me aquecer numa trempe

de fogão a lenha a queimar marfim



que seja a vida um mar de sargaços

e meu navio encalhe numa imensa rede

esteja eu então pronto para os espaços

que se abrirem ao derrubar a parede

que a solidão armou para mim





19.11.2022

(Ilustração: escultura de Francesco Queirolo - desilução ou liberação da decepção)

7 de out. de 2023

você e eu

 




você pensa que somos entidades opostas

a brigar por pedaços de vida

como predadores no meio da selva

mas não

somos seres que se digladiam sem motivo

sem necessidades que não a luta inútil

olhamos um dento do olho do outro

e revelamos como num espelho convexo

apenas as frustrações que explodem em nosso peito

não somos opostos na vida – minha cara -

apenas o sexo selvagem ou o carinho exótico

nos opõem no processo do encontro

mas na vida que nos encerra neste mundo de cada dia

caminhamos como sombra um do outro

ao sol do meio-dia



30.1.2022

(Ilustração: Paul Cézanne - Couple in a Garden)

4 de out. de 2023

vitupérios








um verso dentro da noite esboçado

não registrado e logo esquecido

emerge da memória numa outra noite

para assombrar minha mente:




- quando no céu não brilha a lua

o chão de pedras e espinhos

impede a marcha dos homens cegos

a mordaça na boca das mulheres

impede o grito de socorro




e prossegue o verso ou poema esquecido:

- das trevas de um cérebro de burro

saltam faíscas contra a palavra encantada

o fogo da estupidez e da desídia

queima a memória e a glória dos antepassados




só pode haver ainda sonhos nessa escuridão

se as mãos dos mortos brotarem da terra

e apertarem com a força do estupor

a garganta pútrida de onde saem

todos os vitupérios espalhados na noite




22.9.2021

(Ilustração: George Grosz - the funeral. 1917-1919)