30 de abr. de 2016

topless 1







(Foto da internet, sem indicação de autoria)





na praia,


quando tiras o sutiã,


três sóis


iluminam a manhã


8.4.2016

28 de abr. de 2016

nefelibata




(Karena A. Karras - Tabula Rasa - 2007)



tirou-me a vida o chão em que pisava
o sol que me iluminava
o vento que acariciava o meu rosto
deixou-me a vida somente o desgosto
e se ainda ouço algum canto de pássaros
estão eles a cada dia mais distantes

não sou o que era antes
quando ainda podia sonhar alto
meço à noite o passo de amanhã
para que não caia no dia seguinte
nos buracos  do meu caminho

flutuo como um pedinte
entre a rosa e seu espinho
e se meu pensamento às vezes salta
na busca inútil do que um dia fui
é que por falta de chão tornei-me nefelibata
vivendo do sonho que a mim mesmo reflui




13.4.2016

27 de abr. de 2016

a gata



(Foto na internet, sem indicação de autor)






lá vem a gata


felinamente


felinianamente


(im)perscrutável(mente)






10.4.2016

23 de abr. de 2016

grilo



(Teodoro Nuñez Ureta)





eu nunca soube


o que era aquilo






sob as tábuas do assoalho


da velha casa


havia um grilo


havia um grilo sob


as velhas tábuas


do assoalho da casa


da velha casa






havia um grilo cantando


dia e noite


noite e dia


havia um grilo cantando






e deu sim muito trabalho


arrancar tábuas


varrer tudo


perscrutar


procurar e procurar


e nada encontrar


sob o assoalho da velha casa


não se achou o tal do grilo






continou cantando o grilo


noite e dia


dia e noite


o grilo continuou cantando






cantando como canta


qualquer grilo


e nunca se soube


o que era aquilo


15.4.2016

21 de abr. de 2016

Minas




(Foto de Fátima Alves)





Verdes montanhas mareadas

Sonho de liberdades fracassadas

Leito de amores constrangidos

Minas o teu ouro apodrece

Nas latrinas pútridas das europas

Enquanto o teu povo engrandece

Os passos genocidas dos bandeirantes

Minas de gente que dança e alucina

Ao som de tambores e cavatinas

De gente que reza por rosários

De contas marcadas e diamantes

De contos de fadas e tesouros

Escondidos em tuas cavernas

Minas das cruzes e procissões

Teu povo agradece a cada dia

Um deus que inventou traições

Minas de gente que tanto crê

Que até os ateus são católicos

Tuas igrejas barrocas conservam

Ossadas de falsos nobres e mártires

De falsos ouros são os ornamentos

De teus padres que cantam missas

Pelas gastas ladeiras de negros ouros

Minas de grotas profundas

Cavadas com sangue ao pálio das estrelas

Não há mágica nas tuas noites

Quando a lua detalha montanhas

Plenas de verdes e negras memórias

Minas de minas e escravos

Minas de ouro e pobreza

Nos teus rios a cobiça navega

Para os braços de dom Sebastião

E dona Maria a louca colhe jabuticabas

Para a geleia geral da corte lusa

Minas de desejos e beijos e queijos

Alucinados todos pela doçura

De falsas falas e falsos anseios

Desatas os nós da história

Nas pedras do passado

E nos sonhos de grandeza

Por estradas antigas de reis

E negros e traidores e heróis

E guardas teus segredos

No riso escondido de tua gente

Que fia no escuro e se banqueteia

Em mesas de grandes gavetas

Que assa quitandas sovadas

Com polvilho e gema de ovos

De velhas galinhas d’angola

Em fornos de lenha e serragem

Minas de deuses dissolutos

Das noites de grilo e lua

Nos corredores de antigos casarões

De mil janelas vigilantes

Que fingem que olham e não veem

Que teus guardados tesouros todos

Já não estão onde guardaste

E sonhas ó Minas de minha infância

Ó Minas de meus temores e tremores

Que trilhas as trilhas do enforcado

Quando és apenas o velho rascunho

Do aço e da seda de tuas montanhas.





20.4.2016

21.4.2016

20 de abr. de 2016

mulher paulistana




(As três graças - Antonio Mingote - 1994; Juicio Paris)




procuro por ti, meu amor,

pelas ruas loucas

desta cidade insana

são tão poucas as possibilidades

de nos ver de novo

estás em Parelheiros ou em Santana?

misturo-me ao povo

faço promessa, acendo velas,

enfio-me por ruas e vielas

quero pular de um viaduto

curtir meu luto

nas escadas do Bixiga

tomar muita cachaça

puxar faca, puxar briga

acordar na desgraça

numa praça do Mandaqui

lembro que um dia te vi

no Tucuruvi

e por lá me perdi

ou então gasto luas e luas

percorrendo as ruas do Jabaquara

tu não estás aqui e podes estar por aí

e minha corrida não para

pego o metrô, desço em Itaquera

percorro em vão

o que pede meu coração

no velho Centro caminho

pelo Vale do Anhagabaú

e pela Avenida São João

sem eira nem beira busco o teu carinho

em pontos de putas, peões e trambiqueiros

da Vila Buarque e arredores, nas feiras

do sexo e do prazer, destinos corriqueiros

de loucos, desabonados, desesperados

que foram como eu abandonados





depois de tanta espera

na esquina mais famosa

desço para o Ibirapuera e faço a festa

colhendo uma manga rosa

nos jardins do Bandeirantes

formo com os manifestantes

na praça do grande relógio

e só me resta então prender a respiração

nas alamedas da USP

correr da polícia

ah, que delícia invadir a reitoria

depois te buscar

e de não novo não te encontrar

na porta da delegacia,

fazer passeata, cantar serenata,

pôr fogo em ônibus ali no Mandaqui

fugir por aí, por ruas tortas da Vila Mariana

encontrar pessoas mortas

na Consolação

pensar que a menina suburbana

tão doce, tão sem medo

saia curta, chinelo de dedo

desfilando no Paiçandu

eras tu

ah, minha querida, passeias pelas teias

das ruas de Paraisópolis

num shopping de Higienópolis,

rodas bolsinha na Indianópolis,

posas nua na tarde insana

para um pintor sem grana

da Vila Madalena,

de ti ninguém tem pena,

trabalhas das oito às dezoito

no Itaim Bibi,

brigas no ônibus lotado

com o cara folgado

que encosta em ti,

me mandas mensagem pelo telefone

dizes que estás insone

porque um golfinho morreu

numa praia de Santos nessa manhã,

passas pelo Mercado da Cantareira

reclamas do preço da maçã,

uma fruta de que nem gostas,

almoças no terraço do edifício Itália

com o embaixador do Irã,

escondida numa burka preta,

reconheço teus olhos, tua pupila,

requebras numa fantasia violeta

na terceira fila de uma escola de samba

do segundo grupo, bamba que és,

no pátio do colégio do Anchieta

driblas meus anseios

de ver-te ainda à tarde

em ninho de amores clandestinos

no bairro da Liberdade,

teimas em negacear desatinos

ao sol que arde no pico do Jaraguá,

e então, amor, que a noite que virá

implacável com seus mendigos e pedintes

não faça de mim um sem teto e sem destino,

por todas as semanas seguintes

por esta velha São Paulo sem chuva e sem garoa

mais fria neste frio abandono

para este cão sem dono

que corre ruas insanas

ganindo para todas as luas

que sejam Adas, Adamaris,

Maristelas, Stelamaris,

Anas Marias e Marianas,

Luísas, Solanges, Angélicas,

Cidas Rosas e Rosas Marias,

Marias Rosas, Brisas, Betes, Elisabetes,

Rogérias, Futamis, Suélens,

Suelis, Lúcias, Lucinhas, Lucíolas,

Zuleikas, Teresas, Teresinhas,

Helenas, Vanessas, Fábias,

Fabianes, Elianes, Fabíolas,

Érikas, Claras, Marias Claras,

Marias, Margaridas,

Luanas, Elianas, Fabianas,

sejas tu a que eu procuro e reclamo,

pelas ruas e vales e avenidas,

desta cidade insana,

tu, mulher que eu amo,

tu, mulher paulistana


25.2.2016





(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no podcast cujo link é este:





19 de abr. de 2016

autorretrato 1





(Gottardo Ciapanna)





não sou concretista

sou concreto




não pulo muros

escrevo neles




não gosto de cães

rosno só para a lua




não chego ao fundo do poço

cavo um pouco mais




não atiro o pau no gato

sou eu o gato




não durmo de touca

nem com anel no dedo




não corro da polícia

evito-a sempre




não cheiro coca

não fumo maconha

não me benzo com água benta

não chuto macumba

não grito palavras de ordem

não tiro donzelas para dançar

de concreto o que faço

é só escrever umas bobagens

em forma de poesia



28.3.2016

17 de abr. de 2016

estrelas mortas




(Vincent Van Gogh - starry night)




a trilha dentro da noite leva ao alto
caminha contra o vento o caminheiro
a trilha se contorce a cada passo
entre o barranco e o desfiladeiro
ouvem-se sibilos de aves noturnas
estalos de galhos ao passo da onça
faz a trilha o passo do caminheiro
e o passo tropeça nas lascas das pedras
sangra o peito a cada espinheiro
come a sola das sandálias a terra batida
ao vento da noite tresanda a trilha o cheiro
do medo alquimista cosido em retortas
e o medo conduz o velho caminheiro
para o céu salpicado de estrelas mortas

29.3.2016
3.4.2016


16 de abr. de 2016

fazer poesia



(Mapa do inferno de Dante, por Bartolomeo - sec. XV)



fazer poesia é fácil
basta enredar na página
em branco
de papel ou do computador
algumas palavras
que tenham entre si
ligações sub-reptícias
de tal forma que aparentam
que algo profundo
está escondido
na rede entretecida

ah sim
é preciso também
cavar um poço



21.3.2016

15 de abr. de 2016

já estão entre nós os bárbaros



(Gottardo Ciapanna)




digo melhor:


sempre estiveram entre nós os bárbaros


sentam-se à mesa como amigos


parentes ou convidados


comem de nosso feijão


bebem de nossa cerveja


reclamam que não está tão gelada


outros até bebem do nosso vinho


vão às compras com nossas mulheres


vão ao futebol com nossos maridos


acompanham a novela das nove


uns até gostam de teatro


e leem de vez em quando um livro


são gentis com cães e gatos


moram no apartamento ao lado


encontram-se nas filas de cinemas


e restaurantes


namoram nossos filhos e filhas


tornam-se cunhados e contraparentes


nem sempre rosnam palavras de ordem


nem sempre chutam nossas canelas


alguns até beijam a mão do bispo


ou deixam-se batizar numa igreja qualquer


levam os filhos à escola


param o carro para a velhinha atravessar


são bonzinhos os bárbaros


tão bonzinhos às vezes


que nos esquecemos de que são bárbaros


não trazem escrita na testa


a sua ideologia


e poucos


muito poucos ousam tatuar


no peito ou na virilha


uma pequena suástica


28.3.2016


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link:






14 de abr. de 2016

Lucas, três anos






(Já faz mais de um ano que você, Lucas, fez três anos. Ainda o mesmo sentimento me anima. Sua existência deu um novo alento à minha vida. Saiba que, não importa o que aconteça, não importa o quanto a vida lhe reserve de bom e de não tão bom - já que ela, a vida, é assim, muitas vezes cheia de som e fúria, como disse um velho, velhíssimo e sábio avô - estarei sempre com você, assim como estou com todos os meninos e meninas que, como você, dão tanta alegria às pessoas que os amam).




A mim me consome o tempo,
tempo que não mais eu tenho,
a esse amor de doce alento
que tem todo o meu empenho

meu sol desce para o poente
 - eclipsa-se no horizonte -
coração bate potente,
talvez com isto ele conte:

esse amor, nova alvorada
rubra no que era discreto,
 que me assalta e me esbalda
a entregar-me com afeto
 aos três anos desse neto!



13 de abr. de 2016

sobre o tempo



(Katsushika Hokusai)





o tempo


sulca o rosto


arredonda o corpo


enfraquece as pernas


turva o olhar


encomprida os movimentos


provoca ulcerações


e dores






o tempo


castiga o corpo


ultraja lembranças


destrói as pontes


endireita as curvas do caminho


desrespeita precipícios


joga dados nas ondas do mar


enobrece a areia do rio


corre nas veias como cocaína






o tempo


que nos pendura no galho


à beira do abismo


é o mesmo tempo


que sonharmos


é o mesmo tempo


que irá um dia


nos trazer a fortuna


da vida






por isso é o tempo


absolutamente inútil


quando contamos com ele


ele já nos arrolou


como meras testemunhas


de fluxos e refluxos


da maré incessante


da vida





13.2.20116 




12 de abr. de 2016

silêncios



(Edivaldo Barbosa)







queria os silêncios da terceira sinfonia




de Brahms




para ouvir a mim mesmo 




sem queixas




sem imprecações 




contra a vida






queria os silêncios de um poema 




de Fernando Pessoa




para entender o mundo




sem ódios




sem preconceitos




de qualquer espécie







queria sim os silêncios dos lagos




distantes




dos lagos margeados de grandes




árvores




visitados apenas por aves




migratórias




onde os peixes nadam




à superfície




sem bulha e sem receios






o barulho da vida




que entra em meus ouvidos




não traz boas notícias




por isso queria tanto




o silêncio das estrelas




no alto das montanhas




e o canto triste da rolinha




dizendo apenas que




o fogo apagou








16.2.2016

11 de abr. de 2016

militar progressista







um intelectual maluco
(afirmam alguns ter sido o multidelirante Gláuber Rocha)
disse ao general estrelado
bem ao pé do seu ouvido
general
o senhor é um militar progressista


o general pensou
militar eu sou sem dúvida
tenho minhas estrelas
tenho a minha tropa
cavalgo meu cavalo branco
comando
dou ordens
sou militar
sim
sou militar


e cabreolou ainda na cabeça do general
sou progressista
progressista da ordem e do progresso
progressista porque marcho sempre para a frente
não é isso ser progressista?


então na cabeça do general
as duas palavras se enfrentaram
cada uma numa trincheira
lá entre os poucos neurônios do general
inimigas prontas a desencadear
a tempestade mental
a batalha final
a batalha sangrenta
na cabeça do general


eram tão fortes em suas trincheiras
as palavras fatais
militar de um lado com sangue nos olhos
progressista de outro com a faca entre dentes
elas partiram como dois gigantes
para o confronto final
na cabeça do general
elas se chocaram na cabeça general
nunca houve choque igual
na cabeça do general
e o choque foi tão violento
na cabeça do general
que caiu duro o general
nem um músculo nunca mais se moveu


hoje tanto tempo depois
está lá o general estatelado
em sua cadeira de balanço acomodado
com seu olho para sempre arregalado
de sua boca escorrendo a baba branca
vestido com seu melhor fardamento
no peito todas as medalhas
calado para sempre
absolutamente quieto
não há quem lhe solte o breque
apenas um chuchu
um chuchu com seu lindo quepe

22.3.2016


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast indicado à direita, no alto da página)



10 de abr. de 2016

mistérios



(Érika Cardoso - burka)




a mente tem subterrâneos
com minas de ouro e carvão
escondem-se lá os mistérios
de vidas vividas e vidas sonhadas
e não há entre elas
- as vidas reais e as vidas imaginadas –
nenhuma diferença
apenas um certo desconforto


21.3.2016





9 de abr. de 2016

a inspiração



(Sergey Reznichenko)






a inspiração é algo assim


que vem e que passa


e depois que passa


fica a poesia




 21.3.2016


8 de abr. de 2016

salve o planeta










garoto, fique ligado:
punheta no banho,
chuveiro desligado!



31.3.2016

7 de abr. de 2016

A GRIMAÇA






Conversando há poucos dias com meu amigo Adelino, por telefone, recordávamos os tempos do Colégio N. S. Aparecida, em Lavras, onde estudamos e fizemos juntos o antigo ginasial e o colegial. Lembrávamos dos professores, especialmente do saudoso Pe. Luís Things. Não há aluno do Aparecida que tenha estudado com ele que não tenha alguma história ou não imite o seu falar característico, com forte sotaque alemão. Foi realmente uma figura marcante de minha formação, com suas aulas de história, principalmente, dentro de todas as limitações da época.

Lembramos, então, eu e o Adelino, um fato curioso que ocorreu comigo. Estava na quarta série ginasial. Nunca fui um aluno exemplar, fazia algumas traquinagens típicas de moleque de 14 anos, não sendo, no entanto, nenhum mau elemento. Era só um garoto, como se dizia na época, “um tanto desesperado”, meio travesso.

Lembro-me de que estava quieto, prestando atenção não exatamente à aula, mas aos meus sonhos, ao meu mundo interior, numa manhã qualquer de um dia bonito lá fora. Padre Luís escrevia no quadro negro (não se usava a palavra lousa) e a classe estava tranquila. De repente, olhando para meus braços, descubro bem no meio do bíceps uma pequena espinha. Ergo o antebraço e levo a outra mão para espremê-la, num gesto meio distraído, tão distraído quanto estava em lugares longínquos o meu pensamento. No mesmo instante, Padre Luís se volta para a classe e me pega no meio daquele gesto. Num impulso, grita comigo, naquele seu linguajar típico:

- Isaias, forra!!! – seus erres eram sempre dobrados, muito dobrados.

Assustei-me. Caí de meu mundo nefelibata para a dura carteira escolar. E resolvi, num átimo, que devia resistir àquela injusta expulsão. Enfrentei-o:

- Por quê? O que foi que eu fiz?

- Vous estava fazendo grimaça!!! – Padre Luís sempre usava esse tratamento para conosco, esse “vous” que soava “vus”.

Tive um instante de estupefação. Não tinha a menor ideia do que estava falando o professor. Devolvi-lhe:

- Fazendo o quê?

Para delírio da classe, ele repetiu:

- Grimaça! Vous estava fazendo grimaça! Forra!!

- Não estava fazendo nada! E não vou sair!

Criado o impasse. Não ia sair. Já havia sido expulso de classe uma ou outra vez, mas naquele momento não estava fazendo nada e era injusta a minha expulsão. Sempre reagi mal às injustiças, em quaisquer situações. Não fazia parte de meu repertório deixar-me punir por algo que eu nem sabia o que era, a tal grimaça. Fez-se um silêncio tenso na classe. E para regozijo de todos, o Padre Luís contemporizou:

- Vous fica!! - E continuou a aula.

Amuado, assustado, sem saber direito o que fizera, como ousara rebelar contra a autoridade do professor, passei a prestar a atenção à aula, ou mais precisamente, às suas reações. Percebi ou intuí que ele não se contentara com a solução. E que viria algum tipo de punição, posteriormente.

No dia seguinte ou no outro, não me lembro bem, a primeira aula da manhã seria com o Padre Luís. Pensei: ele não vai me deixar entrar. Acontece que os professores, na primeira aula, ficavam à porta da sala recolhendo as carteirinhas, que deviam ser carimbadas pela secretaria com a presença do dia e devolvidas ao final do período. Então, era simples: ele não me deixaria entrar.

Abro um pequeno parêntese: estudava na mesma classe o meu primo Tadeu. Tadeu Arthur de Mello. Éramos ambos muito parecidos. O que nos distinguia era o modo de trajar: enquanto eu usava roupas simples, calça e camisa sem quaisquer atrativos, Tadeu vinha sempre muito bem arrumadinho para as aulas, em terninhos com gravata! Bem-comportado e tímido, não era um menino que chamasse a atenção ou desse qualquer tipo de problema aos professores. Passava quase desapercebido.

Pois bem, naquela manhã, depois de chegar à conclusão de que Padre Luís com certeza não recolheria minha carteira estudantil e, portanto, não me deixaria entrar, aplicando-me uma suspensão pela rebeldia, resolvi dormir um pouco mais, iludindo minha mãe com qualquer desculpa para chegar mais tarde ao Colégio.

E aí entra a narração do Adelino e de outros colegas. Ao apresentar sua carteira para entrar, todo tímido e no seu terninho com gravata, Padre Luís barrou-o:

- Vous não entra! – decretou.

- Mas, Padre Luís, o que foi que eu fiz? – protestou o tímido Tadeu.

- Vous botou paletó e gravata, mas vous não me engana! Vous não entra!

E foi uma encrenca para convencer o Padre Luís de que aquele era o Tadeu e não o proscrito aluno que fizera grimaça na aula anterior e se rebelara ao ser expulso. Ah, sim: só muito tempo depois, quando tive acesso a um dicionário é que descobri o significado de grimaça: trejeito, esgares, careta. Deduzo que, quando ele se voltou para a classe e me viu, pensou que, ao levantar o braço, para espremer a espinha, eu estava lhe mandando aquela famosa “banana” e fazendo caretas para ele.


7.4.2016



6 de abr. de 2016

LUPANÁRIO


43


depois do bar



(Francis Picabia)



batem cinco horas
no relógio da São Bento

encontro-me contigo afinal
depois de muitas ruas
e esquinas

no bar o garçom sonolento
nos recebe com cara
de poucos amigos

peço um uísque
você toma uma coca-cola

paraguaio o uísque
quente o refrigerante

não nos falamos

o garçom nos olha
desconsolados os três
há todo um clima
de noite interrompida
e dia que não vem
ou vem lentamente
no passo trôpego dos operários
que irão daqui a pouco
dependurar-se como fantoches
nos elevadores externos
de prédios em eterna
construção

olho nos teus olhos e
teus olhos não olham
nos meus

somos agora estranhos
que há pouco se conheceram

ficou para trás nossa
história
e nem sei bem por quê

na tela mortiça da tevê
balança os quadris a Beyoncé
não a ouço cantar apenas
vejo-a a rebolar
com mais algumas bailarinas esguias
e um trio de cantoras gordas e felizes

a coca-cola esquenta
entre teus dedos
ligo nas tuas pernas nuas
as pequenas varizes
que tecem desenhos
desenhos de operários
presos por fios azuis
como fantoches

foram tão ferrenhos
nossos dias

no copo em minhas mãos trêmulas
o gelo do uísque derrete
o garçom limpa o balcão e tosse

espera com certeza
que comecemos uma briga
e olha-nos complacente

não tem tempo o tempo
de espera

o relógio da São Bento
martela os quinze minutos
de nosso silêncio

a cidade acorda

levanto e chamo o rapaz que agora
varria a calçada

em passo lento volta ao balcão
anota num pedaço de papel a conta

pago com uma nota velha de cinquenta
recuso o troco
e saio
a Beyoncé e suas bailarinas recolhem
o aplauso
não olho para trás
porque sei que teus olhos
me seguem
que teus olhos me seguem
até que chegue à rua
e depois meus passos chapinharão
na rua molhada há pouco lavada
e depois
e depois teus olhos piscarão

(soube que choraste por mim)

e não haverá mais nada




14.9.2013



FIM